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Processo nº 765/01
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 375, foi proferida a seguinte decisão sumária
«1. Pelo requerimento de fls. 366, foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional em nome de 'A e outra', ao abrigo do disposto na alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro , 'tendo por base a arguida e suscitada inconstitucionalidade do disposto nos arts. 653º, nºs 2 e 3 e 668º, nº1, al. b), do Cod. Proc. Civil perante os arts. 205º, nº 1, e 16º da Constituição da República Portuguesa (...) considerando o Acórdão recorrido que apenas a total ausência de fundamentação, que não a sua mera deficiência ou incompletude, pode produzir a nulidade da sentença ou acórdão proferido sobre a matéria de facto'. O recurso foi admitido, em decisão que não vincula o Tribunal Constitucional
(nº3 do artigo 76º da Lei nº 28/82 ).
2. Notificado o advogado das recorrentes para vir esclarecer quem era a recorrente identificada como 'outra', uma vez que consta dos autos o falecimento de A e a habilitação de herdeiros, de fls. 344, de B e C, veio o mesmo indicar que o recurso se deve considerar interposto apenas por B.
3. O acórdão recorrido, de fls. 349, foi proferido no julgamento do recurso de revista interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que, por sua vez, negara provimento à apelação interposta da sentença do 7º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, que julgara procedente a acção de despejo proposta por D e outros contra B e E, por falta de residência permanente no local arrendado (para habitação). Para o que agora releva, o Supremo Tribunal de Justiça não deu razão ao ora recorrente quando sustentou que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de fls. 294, não tinha julgado correctamente quando entendeu não ocorrer, nem falta, nem deficiência, obscuridade ou contradição na fundamentação no acórdão que julgara a matéria de facto, que o recorrente acusa de 'não permit[ir] aferir qual a análise crítica que sobre os depoimentos prestados em audiência de julgamento e sobre os documentos juntos aos autos incidiu, de forma a alcançar-se a convicção do tribunal, em violação do disposto nos arts. 653º e
712º, nº 4, do Cod. Proc. Civil, carecendo, em consequência, a sentença proferida em 1ª instância de fundamentação de facto, em termos de gerar a nulidade da mesma nos termos do artigo. 668º, nº 1, al. b) do Cod. Proc. Civil'
(conclusão 1. das alegações apresentadas no recurso de revista).
Com efeito, ao fazer a lista das questões que ia apreciar, o Supremo Tribunal de Justiça apontou estas duas:
'(...) II. A decisão da 1ª instância é nula, nos termos do artigo. 668º, nº 1, al. b), do C. Proc. Civil, já que a fundamentação do acórdão acerca da matéria de facto mostra não ter havido análise crítica da prova produzida como preceitua o art.
653º do mesmo código, situação que deveria ter sido considerada pelo acórdão impugnado? III. Tal acórdão, ao sustentar que a sentença da 1ª instância se encontra devidamente fundamentada, confere aos arts. 668º, nº 1, al. b) e 653º, nºs 1 e
2, do C. Proc. Civil, uma interpretação inconstitucional porque violadora do disposto nos arts. 205º e 16º da Constituição?'
E decidiu o seguinte:
'II. Dispõe o n° 2 do art. 653° do C.Proc.Civil que ‘a matéria de facto é decidida por meio de acórdão ou despacho, se o julgamento incumbir a juiz singular; a decisão proferida declarará quais os factos que o tribunal julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas e especificando os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador’. O dever de motivação da decisão de facto, mais do que visando facilitar o controlo da decisão pelo tribunal de recurso, tem como ‘principais objectivos o de aprimorar, na medida do possível, e o de robustecer, desse modo, a força persuasiva do julgamento dos factos, junto das partes e seus patronos. Tanto um como outro dos objectivos da motivação requerem, sem dúvida, a identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do julgador. Mas exigem outrossim, para plena eficácia do requisito formulado, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto4’. Claro que a falta ou deficiência de fundamentação, que tem como consequência, pouco relevante, apenas a faculdade de a Relação, nos termos do art. 712°, n° 5, do C.Proc.Civil, ordenar que o tribunal fundamente devidamente a sua decisão, porque necessariamente se inclui na apreciação da matéria de facto (respectiva fundamentação) não deve ser objecto de censura pelo Supremo – já atrás se afirmou a impossibilidade de sindicância por este tribunal do não uso pela Relação dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 712° do C.Proc.Civil5. Ainda que, todavia, assim se não entendesse, sempre se dirá que não ocorre qualquer falta ou deficiência de motivação na decisão do colectivo acerca da matéria de facto. Com efeito, citando o acórdão recorrido, ‘verifica-se, no caso em apreço, que o tribunal a quo fundamentou as respostas dadas aos quesitos em depoimentos orais de testemunhas, prestados na audiência de julgamento, e em documentos juntos aos autos, conforme acórdão de fls. 187 a l88. Ou seja: mostra-se, pela fundamentação dada ao acórdão sobre a matéria de facto, que foram criticamente analisadas pelo tribunal colectivo todas as provas produzidas, designadamente através de depoimentos oralmente prestados’ (fls. 299 e 300). Sendo certo, aliás, que há muito se vem considerando na jurisprudência que apenas a total ausência de fundamentação, que não a sua mera deficiência ou imcompletude, pode produzir a nulidade da sentença ou do acórdão proferido sobre a matéria de facto (arts. 668°, n° 1, al. b) e 653°, n° 2, do C.Proc.Civil)6. Desta forma manifestamente improcede a pretensão, nesta parte, deduzida pelos recorrentes.
* III. Não existe, em nossa opinião, qualquer inconstitucionalidade na interpretação que foi dada à norma do art. 653°, n° 2, do C.Proc.Civil, na justa medida em que teve em consideração haver sido feita a motivação através da indicação dos depoimentos orais prestados e dos documentos juntos ao processo, efectuada que foi a análise crítica da prova, designadamente referindo a natureza segura, isenta e imparcial daqueles depoimentos e apontando a razão de ciência que lhes transmitiu credibilidade. Com efeito, se é certo que o art. 205°, n° 1, da Constituição consagra o princípio de que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas, não deixa de remeter para a lei ordinária a determinação da forma dessa fundamentação.
Na verdade, ‘o mandato constitucional de fundamentação das decisões do julgador é aberto, limitando-se a exigência constitucional na matéria a devolver ao legislador ordinário o encargo de definir o âmbito e a extensão do dever de fundamentar, conferindo-lhe ampla margem de liberdade constitutiva
(sem, evidentemente, significar discricionaridade que postergue, no espaço das decisões judiciais não meramente de expediente, o dever de fundamentar, como garantia integrante do conceito de Estado de direito democrático’7. Assim, quando o tribunal se pauta na sua actuação por estrita obediência ao comando do n° 2 do art. 653° do C.Proc.Civil, na interpretação que lhe deu o acórdão recorrido – aliás mais rígida do que, por norma, se vem entendendo – através da indicação dos depoimentos ( e outros meios de prova) que alicerçaram a sua convicção, bem como da referência concreta à razão de ciência justificativa da respectiva credibilidade – está a cumprir o dever de fundamentação do acto judicial na sua dupla função: ‘por um lado, numa lógica endoprocessual, como instrumento de realização técnica do processo, permitindo o controlo da decisão às partes e em sede de recurso, através da reconstituição do percurso lógico a que ela conduziu; por outro lado, e desta feita exteriormente ao processo (numa lógica extraprocessual) e tendo como destinatária a própria sociedade, possibilita esse mínimo de controlo externo e geral do fundamento factual, lógico e jurídico da decisão, garante da independência e imparcialidade dos juízes8. Daí que o entendimento do Tribunal Constitucional venha sendo 'o de que a norma do n° 2 do art. 653° do C.Proc.Civil, ao obrigar à indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador relativamente aos factos julgados provados – ou seja, aqueles que recebendo uma resposta positiva ou especificada são instrumentos da decisão final – assegurando minimamente as indicadas funções endoprocessual e extraprocessual, respeita o que podemos qualificar como sendo o núcleo essencial mínimo da exigência constitucional de fundamentação estabelecida no art. 208°, n° 1, da Constituição9. Não ocorre, assim, aplicação de norma materialmente inconstitucional (n.º 2 do art. 653º do C.Proc.Civil), já que não existe violação de qualquer princípio constitucionalmente consagrado, in casu designadamente o da utilização de processo equitativo (portanto dotado de contraditório) a que alude o art. 20º, n.º 4, da Constituição, com o sentido e alcance pretendidos pelo art. 16º do mesmo diploma.
4. Da leitura do requerimento de interposição de recurso verifica-se que o recorrente considera inconstitucional – e pretende que o Tribunal Constitucional assim a declare – a norma decorrente da conjugação do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 653º e na alínea b) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de que só se verifica a nulidade por falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto quando ocorre 'total ausência de fundamentação', e não quando existe uma 'mera deficiência ou incompletude' dessa fundamentação. Ora basta ler a transcrição feita do acórdão recorrido para se concluir que o Tribunal Constitucional – a quem está vedado, como se sabe, ir apreciar da suficiência da fundamentação em causa – não pode conhecer do objecto do presente recurso, por falta dos necessários pressupostos.
5. Com efeito, o que o Supremo Tribunal de Justiça começou por dizer, em primeiro lugar, foi que não cabia no âmbito dos seus poderes de cognição conhecer da existência da eventual 'falta ou deficiência de fundamentação' da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto; ora o recorrente não questiona a regra aplicada para alcançar esta conclusão. Em segundo lugar, o Supremo Tribunal de Justiça, admitindo que 'assim se não entendesse', pronunciou-se no sentido de que tal decisão revela, pela sua fundamentação, que foi efectuada uma análise crítica das provas produzidas, nos termos legal e constitucionalmente exigidos, como resulta da mesma transcrição.
6. Assim, e em rigor, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto deste recurso porque a ratio decidendi do acórdão recorrido foi a exclusão do
âmbito dos seus poderes de cognição da possibilidade de apreciar da falta ou insuficiência da fundamentação da decisão da primeira instância sobre a matéria de facto, e não a norma impugnada (cfr., por exemplo, o acórdão nº 367/94, publicado no Diário da República, II Série, de 7 de Setembro de 1994). Ainda, todavia, que se devesse considerar, diferentemente, que o Supremo Tribunal de Justiça tinha efectivamente aplicado, como ratio decidendi, as normas relativas ao dever de fundamentação e à nulidade das decisões, contidas nos preceitos legais indicados pelo recorrente, a verdade é que as não teria interpretado e aplicado com o sentido que o mesmo recorrente considera inconstitucional, o que igualmente impede o conhecimento deste recurso de constitucionalidade (cfr., por exemplo, os acórdãos nºs 311/94 e 366/96, publicados no Diário da República, II Série, respectivamente, de 1 de Agosto de
1994 e de 10 de Maio de 1996). O Supremo Tribunal de Justiça apenas se lhe refere, claramente, como obter dictum, depois de ter justificado por que razão considera que o dever de fundamentação foi devidamente cumprido, utilizando, para o efeito, uma interpretação não coincidente com tal sentido.
Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Assim, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs»
2. Inconformado, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do nº
3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, nos seguintes termos:
«1 – A decisão sumária em apreço coloca e equaciona dois aspectos essenciais, retirados e extraídos directamente da decisão recorrida proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
2 – O primeiro prende-se com a circunstância de o Supremo Tribunal de Justiça haver excluído do âmbito do seu conhecimento a questão da falta ou insuficiência da fundamentação que integrava a decisão proferida em 1ª instância.
3 – Ora quanto a esta parte, o que foi suscitada foi uma questão de inconstitucionalidade de uma norma nos termos em que a mesma foi aplicada, depois de equacionada, pelas instâncias.
4 – A situação de o Supremo Tribunal de Justiça poder ou não conhecer da matéria de facto é, desde logo, em relação à suscitada nos presentes autos, perfeitamente colateral.
5 – O que se pondera – e sobre tal aspecto recaiu, de facto, como a decisão reclamada reconhece – é a situação de a uma norma haver ou não sido dada uma interpretação constitucional ou inconstitucional.
6 – Tal o objecto do recurso, como, aliás, do requerimento de interposição do mesmo decorre evidentemente.
7 – Não ocorrendo obstáculo à apreciação do recurso, salvo melhor opinião, por via da circunstância de o Supremo Tribunal de Justiça se não considerar competente – nesta parte –, aliás, em directa decorrência do art.
722º do Cod. Proc. Civil – para conhecer da matéria de facto.
8 – Tal norma, contudo, reitere-se, de forma alguma obsta a que seja ponderada a questão da arguida inconstitucionalidade de dadas normas – o que o Supremo Tribunal de Justiça efectivamente fez.
9 – Quanto ao sentido com que as normas em relação às quais é imputada a inconstitucionalidade suscitada, da transcrição constante da decisão reclamada evidente é que todo o Acórdão recorrido vem na linha do ali conclusivamente afirmado nos termos do qual apenas a total ausência de fundamentação, que não a sua mera deficiência ou incompletude, pode produzir a nulidade da sentença ou do acórdão proferido sobre a matéria de facto.
10 – Evidente se revela que a fundamentação produzida em 1ª instância no que concerne à decisão ali proferida não contém os elementos mínimos objecto de invocação em sede de alegações de recurso.
11 – Mesmo que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça afirme que foram criticamente analisadas as provas produzidas, facto é que a afirmada análise não foi comunicada ou transmitida, em termos mínimos, ao seu destinatário.
12 – Estamos perante uma mera aparência que não afasta a efectiva ponderação, que o Acórdão não esconde, de que os autos foram objecto.
13 – Ponderação essa perfeitamente inconstitucional. Termos em que deve ser a presente reclamação deferida, com as legais consequências». Os reclamados não responderam.
3. A reclamação é improcedente, pelas razões já constantes da decisão reclamada.
Cumpre, porém, repetir que, como então se disse, não cabe no objecto possível de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas a avaliação da suficiência da fundamentação concreta da decisão da primeira instância relativa à matéria de facto e, consequentemente, à apreciação das provas produzidas; o Tribunal Constitucional apenas pode julgar a questão da constitucionalidade do critério normativo utilizado pelo Supremo Tribunal de Justiça para a apreciação que, a título adjuvante, faz do cumprimento da obrigação de fundamentar, imposta pelo nº 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil. E a verdade é que esse critério, aliás desenvolvidamente explicado pelo acórdão recorrido, não corresponde ao que o reclamante acusou de ser inconstitucional. Ainda que assim não sucedesse, e como se observou na decisão reclamada, a razão em que realmente assentou o mesmo acórdão recorrido foi a da falta de poderes do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer da questão da suficiência da fundamentação; não integrando o objecto do recurso de constitucionalidde a norma em que a decisão, neste ponto, se baseou, nunca qualquer juízo sobre o referido nº 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil poderia ter utilidade. O reclamante sustenta que deve ser conhecida esta questão de constitucionalidade por ser 'colateral (...) em relação aos presentes autos' o que designa de
'situação de o Supremo Tribunal de Justiça poder ou não conhecer da matéria de facto'. Ora é exacto que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu não ter competência para apreciar a suficiência ou insuficiência da fundamentação da decisão da 1ª instância porque tal questão 'se inclui na apreciação da matéria de facto', não podendo, portanto, ser por ele censurada. Mas é igualmente exacto que, como se disse já, não tendo o recorrente incluído no objecto do recurso de constitucionalidade a norma em que o Supremo Tribunal de Justiça se baseou para afastar tal competência, e não podendo o Tribunal Constitucional ampliar esse objecto, sempre seria inútil conhecer da inconstitucionalidade referida ao nº 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil – ainda que tal norma tivesse sido interpretada e aplicada com o sentido que o recorrente acusa de ser inconstitucional.
Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão reclamada. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 16 de Outubro de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida