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Processo n.º 121/13
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - Relatório
1. Nestes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, A. interpôs recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante designada por LTC).
2. No requerimento de interposição de recurso, o respetivo objeto é delimitado nos seguintes termos:
“(…) apreciação de várias inconstitucionalidades na interpretação de normas aplicadas ou omissas (…):
das normas contidas nos art.ºs 119.º, alínea e), e 41.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, bem como das que lhe são concomitantes e complementares, devendo ter sido tidas em consideração e aplicadas, as dos art.ºs 40.°, alínea c) e 41.°, n.º 1, também estas da citada lei processual penal, na interpretação imperfeitamente expressa mas percecionada e subentendida no próprio sentido das decisões e processado respetivo de que, em suma, o facto de estarem a decorrer dois julgamentos em processos distintos cujo tipo de ilícito e factos consubstanciadores da acusação são os mesmos, ainda que praticados em momentos distintos por agentes diferentes e num deles por o arguido o ser por ter prestado depoimento sobre os factos corporizantes do outro, não constitui razão bastante para que o processo de formação de convicção do juiz natural possa afetar a indispensável imparcialidade, vista a conexão fáctica, inexistindo, por isso, motivo legalmente válido e adequado ao impedimento do juiz num desses processos criminais e a correspondente violação das regras de competência do tribunal, tampouco constituindo nulidade;
da norma do art.º 126.°, n.º 3, do mesmo Código de Processo Penal, na interpretação – que melhor se alcança do texto tirado sobre o requerimento de correção do acórdão TRL – de que as missivas naturalmente confidenciais e cujo conteúdo faz presumir uma natural expectativa do seu autor em que não sejam reveladas, de acordo com as regras dos art.ºs 75.º e 78.º do Código Civil, podem ser admitidas como prova em julgamento criminal se já constavam nos autos nas fases anteriores de inquérito e instrução, não podendo ser consideradas meio proibido de prova por intromissão na correspondência e vida privada desse seu autor;
dos normativos conjugados dos art.ºs 133.º, n.º 1, alínea a), 315.º, n.º 1, e 316.º, n.º 1, também da lei processual penal, na tese – com explicitação aperfeiçoada no derradeiro acórdão do TRL – de que, em suma, inexiste conexão processual para efeitos de admissão de testemunhas mesmo se os factos básicos do processo em que a testemunha vai depor são os mesmos daqueles em que é arguida noutros autos, bem como de que mesmo que não exista rol de testemunhas dado com a contestação do arguido, este pode ainda indicá-las em sede de alteração ou aditamento;
das regras penais dos art.ºs 31.º, n.º 2, e 180.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, em concomitante correlação com as dos art.ºs 91.º, n.º 1, e 134.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, na inusitada tese jurídica, mal detalhada mas percetível do conjunto de textos decisórios aqui sindicados, de que o tempo decorrido entre os factos testemunhados e o depoimento ajuramentado pode afetar a memória da testemunha e tal possibilidade beneficia de valoração desculpabilizante na aferição das contradições, mesmo que evidentes e percecionáveis, logo beneficia também de exclusão de ilicitude penal, mesmo quando legalmente a testemunha pode recusar a prestar depoimento e está expressamente advertida da cominação criminal da falta à verdade constante na fórmula do juramento exigido por lei expressa.”
3. Nos termos do artigo 78.º-A, n.º 5, da LTC, foi o recorrente notificado para apresentar alegações, onde conclui, nos termos seguintes:
“1.ª A filosofia que preside ao instituto do impedimento de juiz, previsto e imposto nos art.ºs 40.º, alínea c), e 41.º, n.ºs 1, pretende assegurar que ao juiz natural não cheguem argumentos e provas externos ao processo que julga e nele não estejam incorporados formalmente, de forma a que possam, mesmo que inconscientemente, influir na formação da convicção discricionária própria do ato de julgar, pois que, por não estarem autuadas, fogem ao conhecimento dos demais sujeitos processuais, violando os princípios do valor extraprocessual das provas, da lealdade processual e dos direitos de defesa que aos assistentes estão também cometidos.
2ª Ao que acresce que a regra da alínea c) do art.º 40.º do C.P.P. impõe o impedimento do juiz que tenha participado em julgamento anterior sem definir se este deverá ter já acabado ou possa estar a decorrer ainda, pelo que a circunstância de que o juiz não só tivesse participado em julgamento anterior como o estava ainda, de memória fresca e com possibilidade efetiva de ampliar a prova de um com recurso à do outro, adulterando o processo de formação da convicção, derroga tal cautela que o legislador pretendeu assegurar e que gera nulidades, segundo os ditames dos art.º 41.º, n.º 3, e 119.º, n.º alínea e), da mesma lei adjetiva.
3ª A posterga de uma tal conduta processual, fundada na errada interpretação das normas assim arguidas de inconstitucionalidade, as dos art.ºs 40.º, alínea c), 41.º, n.ºs 1 e 3, e 119.º, alínea e) do C.P.P., viola as prorrogativas legalmente impostas quanto às exceções ao princípio do juiz natural, que conjugadamente emergem dos preceitos dos art.ºs 9.º, alínea b), 20.º, n.º 4, 32.º, n.º 9, 202.º, n.º 2 e 203.º da Constituição da República Portuguesa, como se arguiu desde sempre nos presentes autos.
4.ª As epístolas de lavra do recorrente, contendo uma delas uma pagela de cariz religioso, que foram admitidas como prova e objeto de impugnação, têm inquestionavelmente uma natureza confidencial segundo o predeterminado nos art.ºs 75.º a 78.º do Código Civil, considerando-se mesmo a presunção dessa ser a justa expectativa do seu autor, naturalmente compreensível em vista da necessidade de preservar abusos de direito atentatórios da dignidade da pessoa humana, cerceando ou restringindo a possibilidade de devassa maliciosa da vida privada dos cidadãos, da sua honra, bom nome e consideração.
5.ª A utilização pública dessas cartas carecia de autorização expressa do prosador ou do suprimento judicial justificado por razões superiores e em função da legitimidade de quem pretende esgrimi-las, mesmo que o Ministério Público, sem que se possa dizer, como se disse nas decisões recorridas, que se tornaram acessíveis ao público pois que uma tal tese sempre contraria e ofende os princípios gerais da publicidade do processo penal e da obtenção de certidões tal como está exigido no art.º 90.º, C.P.P., cuja autorização compete ao magistrado titular do processo a consultar ou certificar, conduta que não resulta comprovada nos autos.
6.ª Esta particular qualificação de missivas confidenciais referentes à vida íntima
do recorrente, nas vertentes familiar, sexual e religiosa, impede que pudessem ser, como foram, usadas como prova relevante, por via do dispositivo do art.º 126.º, n.º 3, do C.P.P., cujo teor é uma clara submissão aos princípios gerais de direitos de personalidade e reserva probatória garantidos pelos art.ºs 26.º, n.º 1, e 32.º, n.º 8, da Constituição, que assim saem violados no modesto entendimento do recorrente, desde o início expresso.
7ª Defende também o recorrente que existe conexão, tal como é configurada na norma do art.º 24.º, n.º 1, alínea c), do C.P.P., quando as condutas ilícitas em juízo estão factualmente interligadas, a fortiori se um arguido pratica esse ilícito no ato de 1.º julgamento do processo onde é julgado o beneficiário do seu depoimento, donde resulte o impedimento de testemunhar previsto e imposto no art.º 133.º, n.º 1, alínea a), 315.º, do mesmo Código de Processo Penal, como sempre se defendeu e foi desatendido pelas instâncias ordinárias.
8ª Tal como para existir alteração do rol de testemunhas previsto no art.º 316.º, n.º 1, da mesma lei processual, tem este de preexistir por apresentação formal no prazo e forma previstos no seu art.º 315.º, n.ºs 1 e 3.
9ª A interpretação que é expendida nas decisões judiciais em apreço quanto às sobreditas normas dos art.ºs 133.º, n.º 1, alínea a), 315.º, n.ºs 1 e 3, e 316.º, n.º 1, do citado codice, violam direitos fundamentais do assistente, aqui recorrente, designadamente o de intervir no processo criminal como resulta do art.º 32.º, n.º 7, da Lei Fundamental, necessariamente segundo equidade e igualdade, que os art.º 13.º e 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, complementam.
10ª Por outro lado, salvo comprovadas razões médicas que justifiquem anormal estado de amnésia, as testemunhas que, mesmo que com a faculdade de se eximirem ao dever por via das regras dos art.º 134.º, n.º 1, alínea a), da citada lei processual, optem por depor, estão obrigadas a fazê-lo segundo a fórmula do juramento imposto pelo seu art.º 91.º, n.º 1, perfilando-se como errado o entendimento permissivo e bonómico plasmado nas antecedentes decisões, até em razão da inexistência de qualquer exclusão de ilicitude, quer por via do dispositivo do art.º 31.º, n.º 2, do Código Penal, quer, também e principalmente, em face da voluntária e consciente apresentação a na forma de simples suspeita se aderir ao perigo de ofender, ainda mais por se tratar de atentado à natural reserva da vida privada e familiar, como emana do n.º 2 do art.º 180.º da referenciada lei substantiva penal.
11ª Na certeza de que a inusitada teoria jurídica do esquecimento das testemunhas em razão do tempo decorrido, expendida pelas instâncias a quo sempre faria naufragar qualquer processo criminal, tendo que se ater como razoável para conservação da memória um prazo jamais inferior aos previstos para a prescrição das correspondentes incriminações, com interrupções e suspensões.
12ª Razões estas que sustentam a convicção do recorrente em que essas interpretações normativas dos art.ºs 91.º, n.º 1, e 134.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, e art.ºs 31.º, n.º 2, e 180.º, n.º 2, do Código Penal violam os princípios constitucionais que as sustentam, nomeadamente os dos art.os 9.º, alínea b), 13.º, 18.º, 20.º, n.ºs 1, 4 e 5, 25.º, n.º 1, 26.º, n.º 1, 32.º, n.º 7, 202.º, n.º 2, e 203.º da Constituição da República.”
4. O Ministério Público igualmente juntou alegações, concluindo da seguinte forma:
“1.º - Quer no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, quer “durante o processo” (na motivação do recurso para a Relação), não vêm enunciadas questões de inconstitucionalidade de natureza normativa, passíveis de constituir objeto idóneo do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC.
2º Por outro lado, o que vem afirmado no requerimento de interposição do recurso não corresponde ao que sobre tais matérias foi consignado na decisão recorrida e que constituiu a sua ratio decidendi.
3º Consequentemente, não deverá conhecer-se do objeto do recurso, em relação às quatro questões de constitucionalidade que o recorrente identificou.”
Os restantes recorridos não juntaram alegações.
5. O recorrente, apesar de notificado das alegações apresentadas pelo Ministério Público, para, querendo, responder às questões obstativas de conhecimento do recurso, suscitadas na referida peça processual, optou por não exercer tal direito.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentos
6. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem pressupostos gerais de todos os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; a natureza jurisdicional da decisão impugnada e o caráter instrumental do recurso.
Os pressupostos específicos do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, correspondem, por sua vez, à obrigatoriedade de esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC) e ao cumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
Nestes termos, torna-se necessário analisar o preenchimento de tais pressupostos, uma vez que a admissibilidade do recurso depende da verificação cumulativa dos mesmos.
Tendo o recorrente referido, no requerimento de interposição de recurso, os dois Acórdãos proferidos no Tribunal da Relação de Lisboa, entender-se-á que pretendeu recorrer de ambas as decisões, pelo que a análise de cada uma das questões, que integram o objeto do recurso, será feita nessa dúplice perspetiva.
7. A primeira questão é identificada pelo recorrente da seguinte forma:
“ (…) interpretação (…) das normas contidas nos art.ºs 119.º, alínea e), e 41.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, bem como das que lhe são concomitantes e complementares, devendo ter sido tidas em consideração e aplicadas, as dos art.ºs 40.°, alínea c) e 41.°, n.º 1, também estas da citada lei processual penal, na interpretação imperfeitamente expressa mas percecionada e subentendida no próprio sentido as decisões e processado respetivo de que, em suma, o facto de estarem a decorrer dois julgamentos em processos distintos cujo tipo de ilícito e factos consubstanciadores da acusação são os mesmos, ainda que praticados em momentos distintos por agentes diferentes e num deles por o arguido o ser por ter prestado depoimento sobre os factos corporizantes do outro, não constitui razão bastante para que o processo de formação de convicção do juiz natural possa afetar a indispensável imparcialidade, vista a conexão fáctica, inexistindo, por isso, motivo legalmente válido e adequado ao impedimento do juiz num desses processos criminais e a correspondente violação das regras de competência do tribunal, tampouco constituindo nulidade”
O primeiro pressuposto de admissibilidade do recurso, que se justifica analisar, desde já, prende-se com a natureza do objeto do recurso.
O Tribunal Constitucional apenas pode sindicar a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas e não de decisões, nomeadamente jurisdicionais, não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional, pelo que a admissibilidade do recurso de constitucionalidade depende da enunciação de uma verdadeira questão normativa.
Nestes termos, impende sobre o recorrente o ónus de enunciar uma norma ou interpretação normativa, reportando-a, de forma certeira, a uma concreta disposição ou conjugação de disposições legais, em cuja literalidade o critério normativo enunciado encontre um mínimo de correspondência.
Acresce que tal enunciação deverá ser apresentada em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Ora, no presente caso, é manifesto que o objeto da primeira questão de constitucionalidade colocada não corresponde a um verdadeiro critério normativo ou sentido interpretativo, extraído da conjugação dos preceitos indicados pelo recorrente, não existindo um mínimo de correspondência entre a enunciação de tal objeto, construída pelo recorrente, e a literalidade dos preceitos indicados.
Na verdade, a formulação do objeto de recurso, plasmada no requerimento de interposição respetivo, é construída com base na menção de casuísticas circunstâncias concretas - selecionadas pelo recorrente de acordo com o seu juízo subjetivo, quanto à relevância das mesmas para apoio da tese que defende – deixando transparecer que o recorrente pretende, não a sindicância de constitucionalidade de um verdadeiro critério normativo – enquanto regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica - cujo conteúdo seja reconhecível na literalidade das disposições legais que invoca, mas a sindicância da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que, analisando as circunstâncias do caso, concluiu que a situação concreta não se subsumia à previsão legal da alínea c) do artigo 40.º do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, face à ausência de natureza normativa do objeto desta primeira questão do recurso, conclui-se, desde já, pela inadmissibilidade do mesmo, nesta parte.
8. Relativamente à segunda questão, a delimitação do recorrente é efetuada do seguinte modo:
“ (…) norma do art.º 126.°, n.º 3, do mesmo Código de Processo Penal, na interpretação – que melhor se alcança do texto tirado sobre o requerimento de correção do acórdão TRL – de que as missivas naturalmente confidenciais e cujo conteúdo faz presumir uma natural expectativa do seu autor em que não sejam reveladas, de acordo com as regras dos art.ºs 75.º e 78.º do Código Civil, podem ser admitidas como prova em julgamento criminal se já constavam nos autos nas fases anteriores de inquérito e instrução, não podendo ser consideradas meio proibido de prova por intromissão na correspondência e vida privada desse seu autor”
No tocante a esta questão, igualmente se verifica que a mesma não corresponde à enunciação de um verdadeiro critério normativo, extraível do n.º 3 do artigo 126.º do Código de Processo Penal, sendo patente que a sua formulação é construída com base na apreciação subjetiva do recorrente sobre a natureza e características das concretas missivas em análise nos autos.
Nestes termos, não tendo o recorrente conseguido erigir, como objeto do recurso, nesta parte, uma verdadeira questão normativa, reiterando-se as considerações já aduzidas sobre a natureza do objeto do recurso de constitucionalidade, conclui-se pela inadmissibilidade do mesmo, igualmente quanto a esta segunda questão.
Sempre se dirá que a enunciação formulada pelo recorrente - além da sua natureza não normativa – não encontra reflexo na fundamentação no acórdão datado de 29 de maio de 2012.
De facto, em tal aresto, pode ler-se, quanto a este aspeto, o seguinte:
“A argumentação ora aduzida pelo Recorrente, quanto à questão da nulidade da prova documental constituída pelas 8 cartas manuscritas pelo recorrente acompanhadas de uma estampa religiosa, é na sua essência idêntica à já por ele anteriormente empregue no recurso que interpôs para este Tribunal da decisão instrutória de não pronúncia dos arguidos Francisco Manuel Marinho Viana Antunes e Fernanda Luísa Pontes Nunes Moreira, ignorando, sem que se perceba porquê, o que este Tribunal expendeu na sua decisão em resposta a essa questão. Remete-se assim o Recorrente, neste particular, para o que aí se deixou exemplarmente explanado e decidido, ao qual nada temos a acrescentar.
Eis por que o presente recurso também improcede quanto a esta questão.”
Ora, no acórdão a que o Tribunal da Relação faz referência, datado de 17 de junho de 2010, refere-se, com particular relevância, o seguinte:
“(…) invoca o recorrente a nulidade, nos termos do art.º 126° n.° 3 CPP, da prova valorada na decisão por referência a cartas por si manuscritas e pagela de cariz religioso que se mostram juntas aos autos e que entende serem ofensivas da sua integridade moral e revelam intromissão da sua vida privada e da sua honra e bom nome.
(…)
(…) no que releva para a discussão agora em causa, certo é que tais cartas não estavam na disponibilidade do assistente uma vez que as havia remetido à destinatária que as recebeu, pelo que, deixando de estar no seu domínio, deixou de ser titular das mesmas e, nessa perspetiva, nenhuma violação representa da sua intimidade e do art.º 126º n.º 3 CPP. Estaríamos já não perante uma proibição absoluta, mas meramente relativa, já que, estando apenas em causa direitos disponíveis, é sempre possível utilizar os meios aí referidos se houver consentimento válido para tal (…) sendo que esse consentimento só poderá ser prestado pelo destinatário da carta e inexiste notícia de que, por esta, tenha sido suscitada qualquer objeção no processo onde foram originariamente juntas.
(…)
Por outro lado, a invocação pelo recorrente do regime constante do art.º 75º CC não tem aqui a mínima razão de ser uma vez que em momento algum das cartas que endereçou à respetiva destinatária o remetente faz apelo à natureza confidencial das mesmas.
(…)
Nestes termos, nada mais nos resta senão deixar consignado que nenhuma nulidade afeta tal meio de prova e não se mostra ter sido violado o consagrado no art.º 126º do C.P.Penal.”
O Acórdão datado de 18 de dezembro de 2012 centra-se na apreciação do requerimento apresentado - contendo arguição de nulidade e pretensão de correção da decisão proferida, nos termos dos artigos 379.º, n.º 1, alínea c), e 380.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal - indeferindo o mesmo, “por absoluta falta de fundamento legal”, não contendo nenhum excerto da fundamentação em que seja reconhecível a questão enunciada pelo recorrente. Nesse acórdão, a propósito da valoração das missivas, apenas se enfatiza a não reeditabilidade, em sede de recurso interposto da sentença final, dos argumentos aduzidos em anterior acórdão acerca da admissibilidade de cartas manuscritas, como meio de prova, uma vez que tal admissibilidade “não varia consoante a fase processual em que nos encontramos”.
Os excertos transcritos demonstram que o recorrente, na formulação da segunda questão de constitucionalidade, não demonstrou qualquer preocupação, sequer, em fazer coincidir a questão colocada com os argumentos utilizados nas decisões a que reage, optando, ao invés, por construir tal formulação a partir da sua subjetiva e discordante apreciação, nomeadamente sobre a natureza e características das concretas missivas em análise nos autos.
De todo o modo, a formulação utilizada tem a virtualidade de deixar claro que o recorrente pretende sobrepor o seu juízo de apreciação ao juízo do tribunal a quo, esquecendo que o conhecimento do recurso, por parte do Tribunal Constitucional, dependeria de ter erigido, como objeto do recurso, um verdadeiro critério normativo utilizado como ratio decidendi pelo tribunal a quo.
9. O recorrente identifica a terceira questão, da seguinte forma:
“ (…) interpretação (…) dos normativos conjugados dos art.ºs 133.º, n.º 1, alínea a), 315.º, n.º 1, e 316.º, n.º 1, também da lei processual penal, na tese – com explicitação aperfeiçoada no derradeiro acórdão do TRL – de que, em suma, inexiste conexão processual para efeitos de admissão de testemunhas mesmo se os factos básicos do processo em que a testemunha vai depor são os mesmos daqueles em que é arguida noutros autos, bem como de que mesmo que não exista rol de testemunhas dado com a contestação do arguido, este pode ainda indicá-las em sede de alteração ou aditamento”
Não obstante o recorrente ter optado por uma formulação unitária, aparentemente encontram-se agregadas, na formulação desta terceira questão, dois grupos de preceitos e enunciados autónomos.
Assim, consideraremos que o recorrente pretender questionar, por um lado, a constitucionalidade do artigo 133.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, na “interpretação” de que “inexiste conexão processual para efeitos de admissão de testemunhas mesmo se os factos básicos do processo em que a testemunha vai depor são os mesmos daqueles em que é arguida noutros autos”.
Por outro lado, pretende ainda questionar a constitucionalidade dos artigos 315.º, n.º 1, e 316.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, na “interpretação” de que “mesmo que não exista rol de testemunhas dado com a contestação do arguido, este pode ainda indicá-las em sede de alteração ou aditamento”.
Ora, quanto ao primeiro segmento desta terceira questão – envolvendo o artigo 133.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, - independentemente da pertinência de qualquer outra apreciação sobre a sua formulação, sempre estaria o conhecimento do seu objeto prejudicado, uma vez que - como bem salienta o Ministério Público – o recorrente não cumpriu o ónus de suscitação prévia de qualquer questão de constitucionalidade normativa reportada ao preceito identificado.
Nos termos do n.º 2 do artigo 72.º da LTC, impendia sobre o recorrente o ónus de colocar, previamente, a questão de constitucionalidade, que pretendia ver dirimida, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Tornava-se indispensável, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso – necessariamente, de natureza normativa - e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que incluísse a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se apercebesse e se pronunciasse sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No presente caso, figurando, como decisões recorridas, os acórdãos de 29 de maio e de 18 de dezembro, ambos de 2012 – independentemente de analisarmos agora se cada uma destas decisões aplica o preceito em referência – impunha-se que o recorrente suscitasse ou renovasse a suscitação da questão de constitucionalidade, que pretenderia ver apreciada em ulterior recurso para o Tribunal Constitucional, na motivação do recurso interposto da sentença da 1.ª Instância ou na peça processual junta, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, e no requerimento de arguição de nulidade e correção da decisão, respetivamente.
Ora, analisada a motivação do recurso interposto da sentença da 1.ª Instância, conclui-se que, em nenhum momento, o recorrente enuncia qualquer questão de constitucionalidade de natureza normativa, reportada à disposição legal indicada.
Na verdade, na referida peça processual, o recorrente limita-se a arguir a nulidade de determinada prova testemunhal, com base na violação de normas infraconstitucionais, concluindo que “a interpretação dessas normas processuais que emerge da sua admissão, atendimento e valoração, fere, para além das já referenciadas acima, a norma do art.º 32.º, n.º 7, da Lei Fundamental”.
Tal alusão à desconformidade constitucional não é reportada a um critério normativo específico e inequivocamente enunciado, parecendo antes incidir sobre os atos jurisdicionais de “admissão, atendimento e valoração” do meio de prova em análise.
Igualmente, na peça processual junta, nos termos do artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, e no requerimento que motiva a prolação do acórdão de 18 de dezembro de 2012, encontra-se ausente a problematização constitucional de qualquer critério normativo – enquanto regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica – extraível do preceito indicado pelo recorrente.
Pelo exposto, não tendo o recorrente colocado, perante o tribunal que proferiu os acórdãos recorridos, qualquer questão de constitucionalidade de natureza verdadeiramente normativa, reportada ao preceito identificado, ficou definitivamente prejudicada a admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional, nesta parte.
Relativamente ao segundo segmento desta terceira questão – envolvendo os artigos 315.º, n.º 1 e 316.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, - independentemente da pertinência de qualquer outra apreciação sobre a sua formulação, sempre estaria o conhecimento do seu objeto prejudicado, atenta a falta de coincidência com a ratio decidendi de qualquer um dos acórdãos recorridos.
Na verdade, refere o acórdão de 29 de maio de 2012 que “a testemunha (…) foi tempestivamente arrolada”, tendo o despacho de admissão de tal meio de prova sido notificado aos sujeitos processuais e transitado pacificamente em julgado. Com tal fundamento, o recurso, nesta parte, foi julgado improcedente.
Igualmente o acórdão de 18 de dezembro de 2012 reitera, a propósito deste assunto, que “quanto à sindicabilidade ou insindicabilidade da admissão como testemunha, em sede de audiência de julgamento, (…) o acórdão aclarando pronunciou-se expressamente no sentido da insindicabilidade de tal questão, em face do trânsito em julgado do despacho que admitiu a contestação e o rol de testemunhas da defesa (…)”.
Nestes termos, não coincidindo a questão enunciada pelo recorrente com o fundamento jurídico da solução dada ao caso, pelo tribunal a quo, está prejudicado o conhecimento do respetivo objeto, uma vez que, atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, apenas devem ser apreciadas as questões cujo julgamento seja suscetível de se repercutir, de forma útil e eficaz, na solução jurídica do caso concreto. Tal suscetibilidade encontra-se afastada, quando a questão não coincide com a ratio decidendi da decisão recorrida.
Pelo exposto, não se admite o recurso, quanto a este segundo segmento da terceira questão indicada pelo recorrente.
10. No que concerne à quarta questão, identifica-a o recorrente do seguinte modo:
“ (…) interpretação (…) das regras penais dos art.ºs 31.º, n.º 2, e 180.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, em concomitante correlação com as dos art.ºs 91.º, n.º 1, e 134.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, na inusitada tese jurídica, mal detalhada mas percetível do conjunto de textos decisórios aqui sindicados, de que o tempo decorrido entre os factos testemunhados e o depoimento ajuramentado pode afetar a memória da testemunha e tal possibilidade beneficia de valoração desculpabilizante na aferição das contradições, mesmo que evidentes e percecionáveis, logo beneficia também de exclusão de ilicitude penal, mesmo quando legalmente a testemunha pode recusar a prestar depoimento e está expressamente advertida da cominação criminal da falta à verdade constante na fórmula do juramento exigido por lei expressa.”
Relativamente a esta questão, é manifesta a ausência de uma dimensão normativa, circunstância que conduz à conclusão pela inidoneidade do objeto do recurso.
Na verdade, resulta claro que o objeto enunciado não corresponde a um verdadeiro critério normativo ou sentido interpretativo, extraído da conjugação dos preceitos indicados pelo recorrente, não existindo um mínimo de correspondência entre a enunciação de tal objeto e a literalidade dos preceitos indicados.
De facto, é notória a pretensão de, através desta quarta questão, o recorrente obter a sindicância do juízo casuístico de apreciação e valoração da prova, que, pela sua natureza, se encontra subtraído à apreciação deste Tribunal.
Assim, reiterando as considerações já expendidas a propósito da natureza obrigatoriamente normativa do objeto dos recursos de constitucionalidade, conclui-se, relativamente à presente questão, pela inadmissibilidade do recurso.
III- Decisão
11. Pelo exposto, decide-se não conhecer do objeto do recurso relativamente à totalidade das questões enunciadas no respetivo requerimento de interposição.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 3, do mesmo diploma).
Lisboa, 15 de julho de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Lino Rodrigues Ribeiro - Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral