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Processo nº 78/02
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A, sociedade comercial com sede em Aveiro, veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, 'nos termos do disposto nos Artsºs 70º, nº 1, b) e
75º-A da LTC', do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, (1ª Secção), de 13 de Novembro de 2001, que negou o recurso de revista por ela interposto, dizendo que
'a norma cuja inconstitucionalidade se pretende ver declarada é a constante do Artº 14º do DL 321-B/90, de 15 de Outubro, por desrespeito do estabelecido na alínea c) do nº 1 do Artº 165º da CRP, com referência à al. I) do Artº 2º da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, conforme invocado nas alegações de Revista'.
2. Nas suas alegações adiantou a sociedade recorrente estas conclusões:
'I. O Art.º 14° do DL 321-B/90, na parte em que considera incriminável, por especulação, a conduta dos inquilinos, designadamente, daqueles que recebam qualquer quantia que não lhes seja devida pela desocupação do local arrendado quando haja cessado o arrendamento excede o âmbito e previsão da autorização legislativa decorrente da alínea l) da Lei n.º 42/90, pois vai muito além da manutenção das penalidades existentes no domínio da especulação das rendas e das falsas declarações para obtenção de subsídios de renda e das falsas declarações no domínio de levantamento de depósito de renda prevista naquela autorização legislativa; II. Por consequência, aquele segmento daquele Art. ° 14° está ferido de inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva de competência da Assembleia da República estabelecida na alínea c) do nº 1 do Art.º 165° da Constituição da República Portuguesa; III. Assim não se entendendo, no douto Acórdão recorrido violou-se os citados preceitos constitucionais. IV. O Artº 85º, nº 1, c) da Lei nº 2 030 não está em vigor, assim não estava já em vigor quando foi publicado o DL 321-B/90 ou a respectiva Lei de autorização, porquanto fora revogado anteriormente, pelo Artº. 85º do DL nº 28/84, de 20 de Janeiro; V. Por consequência, considerando aquele preceito em vigor e aplicável ao caso quando se entenda inaplicável, em resultado da sua inconstitucionalidade orgânica, o Artº 14º do DL 321-B/90, no douto Acórdão recorrido violou-se o disposto no nº 1 do Artº 29º da Constituição da República Portuguesa'.
3. Apresentaram contra-alegações os recorridos B e marido, com os sinais identificadores dos autos, sustentando que 'deve ser mantida a douta sentença confirmada pelo douto Supremo Tribunal de Justiça, e negada a suscitada inconstitucionalidade orgânica do artigo 14º do D.L. 321-B/90 como é de JUSTIÇA'.
4. Vistos os autos, cumpre decidir. No acórdão recorrido, depois de se considerar que 'a Relação, enveredando pela via do conhecimento oficioso de uma nulidade decorrente do disposto no artº 14º,
última parte, do DL nº 321-B/90, de 15/10, declarou nulo o contrato e condenou a ré a restituir aos autores o que recebeu em sua execução' e que discute 'a ré, ora recorrente, a existência desta nulidade, com argumentos que passam pela interpretação do mencionado art. 14º e ainda pela afirmação da sua inconstitucionalidade', passou a fazer-se 'uma reconstituição dos antecedentes legislativos desta norma', para se concluir deste modo:
'Chegamos, assim, a 1990, ano em que a Assembleia da República conferiu ao Governo, pela Lei 1 n° 42/90, de 10/8, e ao abrigo do então art. 168°, n° 1, al. h) e i) da Constituição, autorização legislativa para alterar o regime do arrendamento urbano. Definindo essa Lei no seu art. 2° as directrizes a observar, logo se encontra nela uma alínea – a l) - onde se previu que o Governo legislasse no sentido da manutenção das penalidades existentes no domínio da especulação das rendas. Esta fórmula ‘no domínio da especulação das rendas’ deve ser interpretada em sentido amplo, abrangendo todas aquelas modalidades já previstas que, não sendo um excesso explícito da renda aferido face aos limites máximos impostos, se traduzem, ainda que indirectamente, no pagamento, por um novo inquilino, de quantias que excedam as rendas convencionadas. E a este limite se ateve o art. 14° do DL n° 321-B/90, já que as várias hipóteses em que se desdobra correspondem ao que estava já previsto naqueles arts. 85° e 47°- com a única possível excepção de certas figuras que o primeiro previa na remissão que fazia para o art. 110° do Decreto n° 5411 e que poderão não caber no texto do art. 14°, o que traduzirá uma derrogação não autorizada do mesmo art. 85° e por isso inválida visto ser organicamente inconstitucional, atenta a al. c) do n° 1 do citado art. 168°. E não se diga que o mesmo art. 14°, al. I) está viciado por a lei de autorização não ter invocado esta al. c); a definição do objecto da autorização que o n° 2 do mesmo art. 168° exige basta-se com a indicação das matérias sobre que há-de recair o diploma autorizado, o que dispensa o seu enquadramento expresso nas diversas alíneas do n° 1. Interessa, assim, e neste momento, salientar que a incriminação do recebimento, pelo inquilino, de qualquer quantia que lhe não seja devida pela desocupação do local arrendado quando haja cessado o arrendamento não é inovadora, pelo que não padece do vício de inconstitucionalidade que a recorrente lhe assaca. Pode ainda dizer-se que, se ao art. 14° do DL n° 321-B/90 não pudesse ser dado o alcance que lhe definimos e por isso não fosse possível aplicá-lo no segmento em que incrimina este recebimento, sempre teríamos que considerar esta incriminação enquanto constante dos mencionados arts. 85° e 47°, que pela razão indicada - intervenção inovadora não autorizada na área da definição de crimes e penas - não teriam sido tacitamente revogados. Improcedem, pois, as conclusões V, VI e VIII'. Está fora de dúvidas que o Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o regime do arrendamento urbano (artigo 1º), foi emitido ao abrigo da autorização legislativa constante da Lei nº 42/90, de 13 de Agosto, cuja alínea l) do nº 2 estabeleceu a directriz, para o legislador ordinário, da manutenção
'das penalidades existentes no domínio da especulação das rendas'. E também está fora de dúvidas que a Lei nº 42/90 invocou os 'artigos 164º, alínea e), 168º, nºs 1, alíneas h) e i) e 2, e 169º, nº 3 da Constituição' (na versão vigente à data de 1990), para, no âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, delegar esta Assembleia no Governo o poder de intervir nas áreas do arrendamento urbano e do sistema fiscal e impostos. Não se indica, contudo, na Lei nº 42/90 a alínea c), do nº 1, do mesmo artigo
168º, que inclui naquela reserva a matéria da definição 'dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos', pelo que desde já há que saber se, talqualmente entende a sociedade recorrente, procede o vício de inconstitucionalidade orgânica, 'por violação da reserva de competência da Assembleia da República estabelecida na alínea c) do nº 1 do Artº165º da Constituição da República Portuguesa' (conclusão I das suas alegações, em cujo texto se pode ler que 'o referido Artº 14º do DL 321-B/90 excede em muito a previsão e o âmbito daquela autorização, na parte em que incrimina os inquilinos, ou seja, no seu segmento em que estatui que praticam o crime de especulação ‘os inquilinos que recebam qualquer quantia que não lhe seja devida, pela desocupação do local arrendado, quando haja cessado o arrendamento'). Para o acórdão recorrido esse vício tem de afastar-se porque 'a definição do objecto da autorização que o nº 2 do mesmo art. 168º exige basta-se com a indicação das matérias sobre que há-de recair o diploma autorizado, o que dispensa o seu enquadramento expresso nas diversas alíneas do nº 1'. Quid júris?
5. No acórdão recorrido faz-se 'uma reconstituição dos antecedentes legislativos' da norma questionada que, por ter interesse, passa a transcrever-se:
'O citado art. 14° tipifica condutas que qualifica como crime de especulação. São elas: a) o recebimento, pelos senhorios, de rendas superiores às fixadas por lei; b) a recusa, pelos senhorios, de recibo de renda; c) o recebimento, pelos senhorios, de quantia superior ao mês de caução na celebração do contrato de arrendamento; d) o recebimento, pelos inquilinos, de qualquer quantia que lhes não seja devida, pela desocupação do local arrendado, quando haja cessado o arrendamento. A tradição de disposições deste tipo no nosso ordenamento, adentro do campo em que no contrato de arrendamento há uma acentuada redução da liberdade contratual por o Estado ter necessidade de intervir devido a particulares circunstancialismos económico-sociais, vem desde o Decreto n° 5411, de 17/4/19, em cujo art. 110° se punia como crime, nos arrendamentos urbanos para habitação, o recebimento, pelo senhorio ou pelo arrendatário sublocador, de alguma remuneração ou recompensa para além da renda, a título de cedência de chave ou qualquer outro. Seguiu-se-lhe a Lei n° 2030, de 22/6/48, cuja Parte V versou o contrato de arrendamento de prédios urbanos, designadamente quanto ao regime da actualização de rendas em arrendamentos para habitação fora de Lisboa e Porto - art. 47° - e nestas cidades - art. 48° -, bem como nos arrendamentos não destinados a habitação em todo o país - art. 49°. E no seu art. 85° tipificaram-se as condutas tidas como criminosas por infringirem certas normas imperativas do regime legal instituído, mas passando-se, inovadoramente, a qualificá-las como crime de especulação punível nos termos da legislação respectiva. Tais condutas passaram a ser, além da prevista no aludido art. 110°, a recusa de recibo de renda paga e o recebimento, pelo arrendatário, de qualquer quantia, que não constituísse indemnização devida por lei, pela extinção do arrendamento ou pela cessão do local em caso que não fosse de trespasse. Dado o âmbito da regulamentação locatícia em que se inseriu, estas incriminações e as proibições por elas pressupostas respeitavam a todo o arrendamento urbano vinculístico, quer se destinasse a habitação, quer tivesse outro fim. Depois a Lei n° 46/85, de 20/9, retomou esta matéria mas regendo apenas, como era seu objectivo declarado, no âmbito do arrendamento para habitação. E no art.
47° reformulou-se o regime anterior, na medida em que, mantendo-se a incriminação da recusa de recibo de renda pelo senhorio e a do recebimento, pelo inquilino, de quantia que não seja indemnização devida por lei pela extinção do arrendamento, se acrescentou ainda a incriminação do recebimento, pelo senhorio, de renda superior à fixada nesta lei ou de quantia superior ao mês de caução na celebração do arrendamento. Temos como acertado dizer-se que este art. 47° não ab-rogou o art. 85° da Lei n°
2030; antes o terá, simplesmente, derrogado - cfr. Oliveira Ascensão, O Direito
-Introdução e Teoria Geral, 7ª edição, pg. 289, ao distinguir expressamente entre a ab-rogação e a derrogação como correspondendo, respectivamente, à revogação total e à revogação parcial -, visto que, regendo o art. 47° só para o arrendamento para habitação, aquele art. 85°, não tendo sido objecto de revogação expressa, continuou a vigorar na área dos restantes arrendamentos que abrangia. Na verdade, dado o âmbito restrito do citado art. 47°, dele não decorre, na área não abrangida, uma revogação tácita daquela norma'. Daqui decorre que os diferentes comportamentos dos senhorios e inquilinos tipificados na norma do artigo 14º correspondem, no essencial, aos comportamentos tipificados na legislação anterior, pelo que não se pode considerar inovadora 'a incriminação do recebimento, pelo inquilino, de qualquer quantia que lhe não seja devida pela desocupação do local arrendado quando haja cessado o arrendamento', talqualmente se lê no acórdão recorrido, pois isso mesmo estava previsto, como crime de especulação, pelas mesmas ou outras palavras, no artigo 85º da Lei nº 2030 e passou depois, no tocante ao arrendamento para habitação, para o artigo 47º da Lei nº 46/85. Portanto, a recorrente não tem razão quando sustenta que a autorização da Lei nº
42/90 não terá sido 'no sentido da manutenção ou criação de quaisquer penalidades para os arrendatários', pois estas penalidades derivavam já daqueles artigos 85º e 47º. À luz destas normas sempre os arrendatários puderam ser incriminados pelo recebimento de quantias que não lhes fossem devidas, com a cessação do arrendamento, e só no artigo 110º do Decreto nº 5411 se restringiam as hipóteses 'ao senhorio e ao arrendatário sublocador'. Não pode, pois, extrair-se qualquer consequência no plano jurídico-constitucional, da falta da indicação na lei de autorização da alínea c) do nº 1, do artigo 168º, detendo o Governo poderes legislativos para intervir nas áreas do arrendamento urbano, à luz daquela lei, no específico 'domínio da especulação das rendas' e alcançando-se perfeitamente 'o objecto, o sentido, a extensão e a duração da autorização', conforme dispõe o nº 2 do mesmo artigo
168º. Com o que improcede o invocado vício de inconstitucionalidade orgânica, não tendo a sociedade recorrente razão neste ponto.
6. Registe-se, por último, que as conclusões IV e V das alegações da sociedade recorrente, reportando-se à aplicação de normas infra-constitucionais, alheias, aliás, ao objecto do recurso de constitucionalidade – versa este apenas o artigo
14º do Decreto-Lei nº 321-B/90 -, não tem pertinência com aquele objecto, não sendo uma questão de inconstitucionalidade normativa saber se o acórdão recorrido violou ou não 'o disposto no nº 1 do Artº 29º da Constituição da República Portuguesa', ao aplicar tais normas, talqualmente se expressa a sociedade recorrente.
7. Termos em que, DECIDINDO, nega-se provimento ao recurso e condena-se a sociedade recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em 15 unidades de conta. Lisboa,29 de Outubro de 2002- Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa