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Proc. nº 705/2002 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Plenário no Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. O Ministro da República para a Região Autónoma dos Açores vem requerer ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto nos artigos 278º, nº 2, da Constituição e 57º e seguintes da Lei do Tribunal Constitucional, a fiscalização preventiva da constitucionalidade de todas as normas do decreto da Assembleia Legislativa Regional nº 32/2002, sobre 'Adaptação à Região da Lei nº 92/95, de
12 de Setembro, alterada pela Lei nº 19/2002, de 31 de Julho', o qual foi recebido no seu Gabinete, para assinatura, nos termos do artigo 233º, nº 2, da Constituição, como decreto legislativo regional, no dia 29 de Outubro de 2002.
2. O pedido alicerça-se, em síntese, nos seguintes fundamentos: a) Segundo o Ministro da República, o decreto em apreço, ao determinar no seu artigo 1º que a aplicação à Região Autónoma dos Açores da Lei nº 92/95, de 12 de Setembro, sobre 'protecção de animais', alterada pela Lei nº 19/2002, de 31 de Julho (que por sua vez altera também a Lei nº 12-B/2000, que 'proíbe como contra-ordenação os espectáculos tauromáquicos em que seja infligida a morte às reses neles lidada'), se faz com adaptações (artigos 2º, 3º e 4º), vem 'derrogar a proibição genérica e absoluta das touradas (ou outros espectáculos tauromáquicos) com utilização da dita ‘sorte de varas’, proibição essa que resulta do nº 3 do artigo 3º da Lei nº 92/95, mas sobretudo do confronto entre o referido nº 3 e o nº 4 do mesmo artigo 3º, sempre na redacção actual que foi dada a este preceito pela Lei nº 19/2002, de 31 de Julho'. A Assembleia Legislativa Regional, ao autorizar com carácter excepcional a realização de espectáculos tauromáquicos com 'sorte de varas' [quando esses espectáculos sejam expressão de cultura popular e desde que haja uma tradição
(legal) ininterrupta durante os últimos dez anos] e ao prever adaptações de carácter orgânico, transferindo para a Administração Regional competências executivas e regulamentares exercidas ao nível nacional por órgãos e serviços da Administração Central (artigos 3º e 4º do decreto em causa em confronto com o teor da Lei nº 92/95, alterada pela Lei nº 19/2002), desrespeitaria os limites da competência legislativa regional fixados no nº 4 do artigo 112º e na alínea a) do nº 1 do artigo 227º da Constituição, ao abrigo da qual foi emitido o citado decreto legislativo regional. Tal violação decorreria de três razões: a matéria versada não seria 'reveladora de interesse específico regional'; seria do âmbito da reserva de competência legislativa dos órgãos de soberania; e violaria um princípio fundamental de uma lei geral da República (a referida Lei nº 92/95, alterada pela Lei nº 19/2002). De acordo com o pedido, apesar de o vício de ilegalidade referido em último lugar não poder integrar o objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, ainda será pertinente sublinhar que a Lei nº 19/2002, de 31 de Julho, 'apenas por lapso manifesto do legislador parlamentar ... não foi decretada como lei geral da República, uma vez que a Lei nº 92/95, de 12 de Setembro (embora anterior à revisão constitucional de 1997), tem claramente essa natureza e a Lei nº
12-B/2000, de 8 de Julho, se autoqualifica como tal de forma explícita'. Deste modo, a proibição da realização de espectáculos com touros de morte e da utilização da 'sorte de varas' constitui um princípio fundamental de uma lei geral da República. b) No que se refere à inexistência de interesse específico, entende o Ministro da República que as várias possibilidades de uma qualificação legal como interesse específico não se verificam. Assim, a matéria legislativamente tratada pelo decreto em causa não consta do elenco constitucional de matérias de interesse específico 'independentemente da perspectiva com que for analisada – por exemplo, protecção dos animais, espectáculos públicos, tauromaquia, manifestações culturais, etc.', não se aproximando de nenhuma das alíneas do artigo 228º da Constituição [sem se considerar a alínea o)] os temas referidos; Também não se pode inferir do artigo 8º do Estatuto dos Açores aquela qualificação, pois a previsão da alínea x) de 'espectáculos e divertimentos públicos' não consubstanciaria senão 'uma presunção de especificidade regional, ilidível caso a caso – presunção que, aliás, é tanto menos consistente quanto é certo que a alínea em causa não foi uma das eleitas para merecer honras de constitucionalização na revisão de 1997'; Por último, não se aplica à situação em análise 'o critério material do interesse específico que se manifesta na alínea o) do artigo 228º da Constituição, mas também na alínea hh) do artigo 8º do Estatuto dos Açores', nos termos da qual 'são matérias de interesse específico de uma região aquelas que lhe respeitam exclusivamente ou que, por nela assumirem especial configuração, exijam especial tratamento, um regime diferenciado do restante território nacional'. c) Para negar a existência de interesse específico, o Ministro da República destaca o facto de a 'sorte de varas' ter sido utilizada em diversas praças de touros do país, o que demonstra que, a existir interesse específico, só poderia ser configurado na modalidade de interesse qualitativamente diferenciado e nunca na sua modalidade mais forte, 'nem tão-pouco na modalidade de interesse quantitativamente diferenciado'. Acrescenta que não existe consenso regional e local, documentado pela discussão pública, 'quanto à existência de uma tradição taurina angrense ou terceirense segundo a qual os touros devem ser lidados com recurso a picadores e à chamada ‘sorte de varas’ '. E conclui que um período de dez anos é 'claramente insuficiente para se poder falar em tradição'. Portanto, e de modo decisivo, o Ministro da República entende que a inexistência de interesse específico se fundamenta no próprio confronto da ratio essendi do interesse jurídico definido pela Lei nº 92/95, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 19/2002, com o regime estabelecido no decreto da Assembleia Legislativa Regional nº 32/2002. Desse confronto resulta que, tendo a proibição dos touros de morte e da 'sorte de varas' como razão de ser 'o respeito devido aos animais' do qual decorre 'a proibição de todas as violências injustificadas contra animais, causando-lhes sofrimentos desnecessários e submetendo-os a sevícias, a esforços excessivos ou a tratamentos cruéis ou indignos', a abertura de excepções só se justifica na medida em que elas sejam expressão da identidade das populações. Ora, o diploma regional não obedeceu à mesma lógica de exigência, pois 'sem prejuízo da importância das Sanjoaninas na cultura angrense e terceirense é evidente que a realização de corridas de touros picados não assume aí um papel central, não tem um papel caracterizador das festividades nem constitui um factor de identidade das populações'. Aliás, o regime estabelecido pelo diploma nacional para abrir uma excepção à proibição dos 'touros de morte' é mais exigente quanto ao número de anos ininterruptos que indiciariam a existência de uma tradição (dez anos no decreto legislativo regional, cinquenta anos no diploma emitido pela Assembleia da República). De todas estas razões decorrerá, então, que 'não existe interesse específico que justifique a abertura de uma excepção à interdição geral de utilização da ‘sorte de varas’, não só porque as eventuais diferenças existentes entre a realidade açoriana e a realidade continental não merecem tutela constitucional, considerando os fundamentos e fins da autonomia, como a situação concreta de Angra do Heroísmo não tem paralelismo com a situação de Barrancos que justificou a abertura de uma excepção ao princípio segundo o qual, mesmo nas touradas, devem ser evitados tratamentos excessivamente penosos ou indignos (sobretudo se eles não correspondem a uma tradição fortemente implantada)'. d) O Ministro da República sustenta ainda que, apesar de as matérias dos espectáculos públicos e da protecção dos animais não integrarem nenhuma das alíneas dos artigos 164º e 165º da Constituição nem interferirem com a organização e funcionamento do Governo (artigo 198º, nº 2, da Constituição), a matéria do regime jurídico das touradas, constante da Lei nº 92/95, de 12 de Setembro, alterada pela Lei nº 19/2002, de 31 de Junho, 'pela transcendência política que tem assumido, dividindo a sociedade portuguesa de forma muito marcante, é precisamente uma daquelas matérias que deve considerar-se reservada aos órgãos de soberania'. E chega a este entendimento, começando por apelar para a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, segundo a qual se encontrariam reservadas aos órgãos de soberania as matérias que reclamem a intervenção do legislador nacional, em virtude de os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses exigirem que a legislação sobre matéria de relevo para a generalidade dos cidadãos, incluindo as respectivas especialidades e derrogações, seja produzida pelos órgãos de soberania (cfr. os Acórdãos nºs
91/84, de 29 de Agosto, D.R., I Série, de 6 de Outubro de 1984; 326/86, de 25 de Novembro, D.R., I Série, de 18 de Dezembro de 1986; 92/92, de 11 de Março, D.R., I Série-A, de 7 de Abril de 1992; 212/92, de 4 de Junho, D.R., I Série-A, de 21 de Julho de 1992; e 256/92, de 8 de Julho, D.R., I Série-A, de 6 de Agosto de
1992). Na sequência deste enquadramento jurisprudencial, o Ministro da República conclui pela necessidade de atribuição de competência legislativa na matéria em apreço aos órgãos de soberania. Defende, para tanto, que, tal como a tradição taurina de Barrancos não é uma questão local, mas nacional, também a 'sorte de varas' em Angra do Heroísmo ou noutra localidade do território nacional 'não constitui uma simples questão local ou regional, a ser decidida nesses âmbitos restritos, mas uma questão nacional, a ser decidida pelos órgãos de soberania, num quadro de unidade nacional e atenta a solidariedade que deve existir entre todos os portugueses'. E sublinha, além disso, que o legislador parlamentar demonstrou uma forte preocupação em não permitir 'que a abertura da excepção de Barrancos se transforme numa porta aberta a reivindicações de outras terras, facto que constitui um testemunho da sua convicção quanto ao mérito intrínseco da regra geral de proibição dos touros de morte', do qual se deduzirá que o 'mérito da regra geral de interdição da ‘sorte de varas’ terá também estado na origem da não admissibilidade de regimes excepcionais, não só por não se vislumbrarem, no todo nacional, situações justificativas de regimes dessa natureza, mas também para evitar a tentativa de subversão dessa regra geral com exigências de abertura de novas situações de excepção ao sabor das exigências locais'.
3. Por seu turno, o Presidente da Assembleia Legislativa Regional dos Açores – órgão de que emanou o diploma sujeito a fiscalização preventiva de constitucionalidade – apresentou resposta na qual sustenta que o decreto em apreciação não padece dos alegados vícios de inconstitucionalidade, aduzindo, em síntese, os seguintes argumentos: a) A matéria de que se trata no caso dos autos não se integra na competência exclusiva da Assembleia da República nem na competência exclusiva do Governo e também não põe em causa o carácter unitário do Estado e os laços de solidariedade que devem unir todos os portugueses – os quais exigem a intervenção legislativa dos órgãos de soberania (Assembleia da República ou Governo), nos termos da jurisprudência constitucional citada (Acórdãos nºs
91/84, de 29 de Agosto, D.R., I Série, de 6 de Outubro de 1984, e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 4º vol., p. 7; 82/86, de 18 de Março, D.R., I Série, de
2 de Abril de 1986; e 326/86, de 25 de Novembro, D.R., I Série, de 18 de Dezembro de 1986). Pretender o contrário implicaria 'uma profunda constrição da autonomia política e administrativa regional que a lei fundamental quis consagrar ... deixando assim aquela autonomia quase como uma mera declaração de princípios sem qualquer conteúdo útil'. b) O artigo 8º, alínea x), do Estatuto da Região 'refere como constituindo matéria de interesse específico para a Região os ‘espectáculos’, não podendo deixar de se considerarem incluídos na referência as corridas picadas, actividade que constitui o objecto do diploma em apreciação'. Embora, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. o Acórdão nº 164/86, citado), a mera inclusão da matéria regulada no Estatuto da Região constitua uma simples presunção ilidível da existência de interesse específico, no caso dos autos a matéria respeita exclusivamente à Região Autónoma dos Açores, consubstanciando um problema específico que requer um tratamento particular. Esta asserção é comprovada por 'cinco séculos de história de relação dos açorianos com os touros', pela circunstância de a Região ser 'a única a realizar corridas picadas ao coberto do manto da legalidade em pleno séc. XX' e, finalmente, por 'um curriculum de doze anos de realização ininterrupta daqueles espectáculos públicos'. c) No que respeita à violação de um princípio fundamental de uma lei geral da República, o Ministro da República para os Açores 'cai em contradição ... pois se considera ser matéria de fiscalização sucessiva ... procura aduzir um conjunto de asserções que só naquele plano teriam cabimento'. Tais asserções correspondem à invocação do carácter absoluto da excepção consagrada na Lei nº 92/95, à alegação de que o período de dez anos é curto para identificar uma prática ininterrupta e à comparação da excepção de Barrancos com a de Angra do Heroísmo.
II Fundamentação
4. As normas do decreto da Assembleia Legislativa Regional nº 32/2002, cuja apreciação preventiva de inconstitucionalidade é requerida, têm o seguinte teor: Artigo 1.º Objecto A aplicação à Região Autónoma dos Açores da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, alterada pela Lei n.º 19/2002, de 31 de Julho, faz-se tendo em conta as especificidades constantes do presente diploma.
Artigo 2.º Sorte de varas Na Região, é excepcionalmente autorizada a realização de qualquer espectáculo tauromáquico com sorte de varas, tratando-se de tradição local que se tenha mantido, como expressão da cultura popular, de forma legal e ininterrupta, pelo menos, nos 10 anos anteriores à entrada em vigor do presente diploma. Artigo 3.º Adaptação de competências As referências feitas no artigo 3.º da Lei n.º 92/95, de 12 de Setembro, alterada pela Lei n.º 19/2002, de 31 de Julho, à Inspecção-Geral das Actividades Culturais reportam-se, na Região, à Direcção Regional com competência em matéria de espectáculos.
Artigo 4.º Regulamentação São estabelecidas por portaria do membro do Governo Regional com competência em matéria de espectáculos, a publicar no prazo de 60 dias a contar da entrada em vigor do presente diploma, as condições em que devem decorrer os espectáculos tauromáquicos com sorte de varas.
5. As questões suscitadas pelo pedido do Ministro da República são duas: a eventual violação dos artigos 112º, nº 4, e 227º, nº 1, alínea a), da Constituição, pelo facto de a matéria versada naquele diploma não poder ser qualificada como de interesse específico; e a eventual violação dos mesmos preceitos por se tratar de matéria reservada à competência própria dos órgãos de soberania. O interesse específico é um requisito positivo e a não configuração de matéria reservada à competência dos órgãos de soberania é um requisito negativo, sendo ambos indispensáveis, cumulativamente, à existência de poder legislativo da Região Autónoma.
6. O decreto da Assembleia Legislativa Regional prevê que a aplicação à Região Autónoma dos Açores da Lei nº 92/95 , alterada pela Lei nº 19/2002, tem em conta especificidades, incluindo a autorização excepcional da realização de qualquer espectáculo tauromáquico com 'sorte de varas', desde que se trate de tradição local relevante, isto é, que se tenha mantido, como expressão de cultura popular, de forma legal e ininterrupta, pelo menos nos dez anos anteriores à entrada em vigor do diploma. Na exposição de motivos, o referido decreto considera existir uma tradição consolidada e ininterrupta de touradas com 'sorte de varas' com cobertura legal. Daí retira a especificidade desta prática e o seu carácter de exclusividade. E adianta, ainda, que não há 'qualquer razão constitucional para considerar esta matéria específica na reserva de competência dos órgãos de soberania' e não há qualquer incompatibilidade entre os casos excepcionais (desde logo os previstos na Lei nº 92/95, alterada pela Lei nº 19/2002) e o princípio fundamental da proibição genérica, estabelecida pelo nº 3 do artigo 3º da Lei nº 92/95. As excepções estão, aliás, na lógica da exposição de motivos, incorporadas no próprio conteúdo genérico da proibição. De tudo isto decorre que para o referido diploma 'nada impede' que o legislador regional siga o exemplo do legislador nacional, criando excepções no seu âmbito específico. Ainda segundo a interpretação que o legislador regional faz das citadas leis da Assembleia da República, a omissão no texto legislativo de uma excepção quanto à
'sorte de varas' compreender-se-ia, por um lado, pela ausência de qualquer tradição ininterrupta no continente e, por outro lado, pela falta de referência, no debate parlamentar, a um caso concreto (ao contrário do que aconteceu com os
'touros de morte'), o que terá feito temer um efeito de generalização.
7. É, assim, simultaneamente uma perspectiva de inexistência de obstáculos constitucionais e legais à enunciação legislativa regional e uma perspectiva de existência de tradição consolidada, ininterrupta e legal, da 'sorte de varas' durante as 'antiquíssimas festas Sanjoaninas em Angra que justificam a solução
... emitida'. Mas são estas razões suficientes, adequadas e pertinentes para se poder concluir pelo preenchimento do requisito constitucional do interesse específico regional, tal como o configura a Constituição? O ponto de partida desta análise é, inevitavelmente, a interpretação das normas constitucionais relativas ao interesse específico. São, com efeito, determinantes os artigos 112º, nº 4, 227º, nº 1, alínea a), e 228º da Constituição. O interesse específico constitucionalmente relevante é, como resulta dos dois primeiros preceitos, apenas o que respeite a matérias que não estejam reservadas
à competência própria dos órgãos de soberania sendo, por isso, desde logo um conceito condicionado pela relação entre a 'razão regional' e a 'razão nacional'
(condicionamento que seria seu pressuposto limitativo, apelando à expressão de Paulo Otero, A Competência Legislativa das Regiões Autónomas, in Revista Jurídica, nº 8, 1986, p. 153). Mas o artigo 228º da Constituição dá conta, através de uma enunciação exemplificativa, de um conjunto de matérias em que se revela normalmente interesse específico. Não sendo taxativo, o artigo 228º tem, no entanto, uma função 'expressiva' do que seja interesse específico, revelando-se nas suas alíneas um elemento comum de conexão com as condições de vida materiais e culturais nas regiões. Esse elemento comum é explicitado na alínea o) do artigo 228º, que admite que matérias diversas das enunciadas nas alíneas anteriores sejam também de interesse específico, por respeitarem exclusivamente a uma região ou por nela assumirem particular configuração. A conexão regional está, assim, associada a certas matérias que a Constituição enuncia e a outras que não descreve, na medida da exclusividade ou da especial configuração na região (que seriam, afinal, os pressupostos constitutivos do interesse específico, de novo na expressão de Paulo Otero, ob.cit., loc.cit.). Por outro lado, o facto de o artigo 228º utilizar, apesar da abertura da cláusula da alínea o), uma enumeração exemplificativa – o que permite ainda concluir que matérias diferentes das previstas nas alíneas podem revelar interesse específico – não pode significar que as alíneas não sejam um elemento de interpretação orientador do que seja o interesse específico nos casos não contemplados, através de uma lógica de semelhança. O que não significa, obviamente, que tal processo de inferência sistemática seja suficiente (cfr. Acórdão nº 220/92, D.R., I Série, nº 172, de 28 de Julho de 1992, em que se afirma, embora aí ainda em conexão com o Estatuto Político-Administrativo da Região, que 'recorre-se, por conseguinte, a um critério valorativo que não se basta com uma enumeração de situações, por extensa que seja ...'). Em face da difícil delimitação, em abstracto, do parâmetro constitucional, é a própria natureza do caso concreto que suscita, normalmente, a percepção do critério definidor do interesse específico. Como se assevera no Acórdão nº
220/92, 'o interesse específico tem sempre de ser apreciado em concreto ao que corresponde a emissão de um juízo de valor ...'. Nessa apreciação, a alínea o) do artigo 228º fornece um critério interpretativo geral – a exclusividade ou a particular configuração das matérias – critério esse que constitui o elemento unificador das matérias expressamente previstas nas alíneas anteriores e daquelas que escapam à previsão não taxativa do legislador constitucional. A 'sorte de varas' é um tipo de espectáculo que, como
é generalizadamente reconhecido, não tem sido exclusivo dos Açores, sabendo-se que a própria Lei nº 92/95, alterada pela Lei nº 19/2002, é reveladora de que tal prática, anteriormente não proibida, seria extensiva a vários pontos do território nacional. E a este propósito refira-se o Parecer da Procuradoria-Geral da República proferido no Processo nº 83/91, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Abril de 1993, que se confrontou, precisamente, com a legalidade do acto do Director-Geral dos Espectáculos e do Direito de Autor que autorizara as corridas de touros com picadores. Tal Parecer deu conta, numa época em que não estava expressamente proibida por lei a 'sorte de varas', da ocorrência dessa prática em Vila Franca de Xira, na Moita e em Coruche.
8. Por outro lado, não se divisa que tal espectáculo revista na Região Autónoma dos Açores uma configuração particular diversa da que assumiria noutros pontos do território nacional, correspondendo antes a um elemento de uma certa tradição taurina que não é especificamente portuguesa mas sim ibérica (como se indica no preâmbulo do decreto da Assembleia Legislativa Regional). Também não está demonstrada, objectivamente, a existência de uma tradição arreigada, através de uma prática prolongada e ininterrupta. Com efeito, o legislador regional invoca 'cinco séculos de história de relação dos açorianos com os touros' e a ancestralidade das festas Sanjoaninas mas apenas estima em doze anos o período pelo qual se têm vindo a realizar ininterruptamente touradas com 'sorte de varas'. A existência de tradição como factor de identificação cultural, eventualmente justificativa de uma configuração específica na Região de excepções à lei geral, terá de tomar como ponto de partida uma antiguidade e uma continuidade suficientemente intensas. O termo 'tradição', com origem na palavra latina traditio, significa, na acepção aqui relevante, 'hábitos ou usanças transmitidos de geração em geração' (Grande Dicionário de Língua Portuguesa de António de Moraes Silva, 10ª ed.) ou
'transmissão de valores ou factos históricos, artísticos e sociais de geração em geração' (Dicionário de Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, 2001). Pelo contrário, já não corresponde a uma verdadeira tradição
'inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição' sem correspondência num passado remoto (cfr. sobre isto Eric Hobsbawm e Terence Ranger, eds., The Invention of Tradition, 1983, pp. 1-14; sobre a problematicidade, a evolução, o sentido e o valor do conceito na história do Pensamento, ver Historisches Wörterbuch der Philosophie, coord. Joachim Ritter e Karlfried Gründer, 1998). Não se elevando a prática da 'sorte de varas' na Região Autónoma dos Açores a este patamar de antiguidade e de continuidade, como, aliás, é reconhecido pelo legislador regional, não se pode invocar uma especial configuração daquela matéria na Região. Por todas estas razões, mesmo que se entenda que não está excluído a priori, pela própria natureza e pelos fins da proibição geral ancorada na protecção dos animais, o tratamento normativo desta matéria por uma Região Autónoma, não se pode concluir que haja uma configuração especial que justifique que a proibição de tais práticas se paute, na Região Autónoma dos Açores, por critérios diversos dos que valem para o todo nacional.
9. Esta conclusão retira utilidade à análise do outro fundamento apresentado no pedido para sustentar a inconstitucionalidade das normas em análise – a reserva de competência própria dos órgãos de soberania. Com efeito, os requisitos enunciados na alínea a) do nº 1 do artigo 227º da Constituição para efeitos de atribuição de poder legislativo às regiões autónomas – respeito pelos princípios fundamentais das leis da República, tratar-se de matérias de interesse específico para as regiões e não estarem essas matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania – são cumulativos. A falta do requisito anteriormente considerado – interesse específico da matéria da 'sorte de varas' para a Região Autónoma dos Açores – implica, por si só, a inconstitucionalidade das normas constantes do decreto legislativo regional e torna inútil a averiguação sobre o preenchimento do outro requisito invocado no pedido.
III Decisão
10. Nestes termos, o Tribunal Constitucional pronuncia-se pela inconstitucionalidade de todas as normas do decreto da Assembleia Legislativa Regional dos Açores nº 32/2002, sobre 'Adaptação à Região da Lei nº 92/95, de 12 de Setembro, alterada pela Lei nº 19/2002, de 31 de Julho', por violação dos artigos 112º, nº 4, e 227º, nº 1, alínea a), da Constituição.
Lisboa, 19 de Novembro de 2002 Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito José Manuel Cardoso da Costa