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Proc. nº 418/01
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório.
1. Por possível prática de um crime de injurias ou difamação a Magistrada foi o ora recorrente, A, juntamente com outro, submetido a julgamento, em forma de processo sumário, no Tribunal Judicial da Comarca de Porto de Mós.
2. Efectuada a audiência de julgamento, com gravação de prova, que ocupou várias sessões, foi designado o dia 9 de Junho de 1999 para a leitura da sentença.
3. Nesse dia, em audiência, o Mmº Juiz proferiu um despacho com o seguinte teor:
'O Digno Magistrado do Ministério Público requereu o julgamento, em processo sumário, de B e A. Conforme resulta do meu despacho proferido a fls. 16 v. foi ordenada a extracção de certidão das declarações prestadas pelas testemunhas porquanto resultou, dessas mesmas declarações, a existência de indícios da prática, por parte dos arguidos, de outro tipo de ilícito, qual seja o constante dos artigos 333º, nº 1 e 334º do Código Penal. Assim, os factos constantes do «Auto de Notícia» que constitui fls. 2 estão relacionados com os factos ora trazidos aos autos pelas testemunhas não podendo deles ser separados, pelo que, por se mostrar necessário para a descoberta da verdade a realização de diligências de prova que não podem, previsivelmente, realizar-se no prazo máximo de 30 dias após a detenção, ordeno, ao abrigo do disposto no art.. 390º, al. b) do Código Penal, a remessa dos autos ao Ministério Público para serem tramitados sob a forma comum'.
4. Inconformado com esse despacho dele recorreram os arguidos. O ora recorrente, concluiu assim a sua alegação:
'- O douto despacho que ordenou a remessa dos autos ao Ministério Público para serem tramitados sob a forma de processo comum é nulo, por contrário à lei – art.s 390º e 391º do CPP, e 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
- Finda aquela fase processual – julgamento – deverá obrigatoriamente ser proferida sentença, de absolvição ou de condenação, nos termos dos artigos 365º e seguintes do CPP.
- Violadas foram pois, entre outras, as seguintes disposições legais: artigos
365º a 378º, 390º e 391º do CPP e 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
- Deve pois ser revogado o douto despacho recorrido, ordenando-se a remessa dos autos ao Tribunal para que seja proferida sentença pelo Mmº Juiz a quo'.
5. Por parte do Tribunal foi proferida decisão no sentido da não admissão dos recursos, com fundamento na irrecorribilidade do despacho que ordena a remessa dos autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual
(artigos 390º, in fine e 391º do Código de Processo Penal).
6. Desta decisão reclamaram os arguidos, ao abrigo do artigo 405º do Código de Processo Penal, para o Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra.
7. Porém, em 10 de Fevereiro de 2000, e antes que a reclamação tivesse sido remetida ao Tribunal da Relação de Coimbra, o Mmº Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Porto de Mós proferiu novo despacho declarando extinto o procedimento criminal contra o ora recorrente (bem como contra o outro co-arguido). É o seguinte o seu teor:
'O objecto processual, tal como foi configurado na denúncia de fls. 2, corresponde à prática de um crime de difamação qualificado, p.p. pelos art.s
180º, nº 1 e 184º do Código Penal.
É incorrecta uma eventual subsunção dos factos carreados para o processo ao disposto nos art.s 333º e 334º do Código Penal, como se pretende a fls. 16 v. e fls 24. Tais tipos de ilícito respeitam ao funcionamento de órgãos de soberania, sendo que os serviços do Ministério Público e o próprio Ministério Público não são órgãos de soberania – art. 113º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. O crime de difamação qualificado é um crime semi-público – art. 180º do Código Penal. No caso em apreço, nunca foi exercido o direito de queixa pela ofendida. Consequentemente, o Ministério Público carece de legitimidade para promover o processo – art. 49º do Código de Processo Penal. Falta um pressuposto processual. O procedimento criminal é legalmente inadmissível, pelo que deve ser declarado extinto. Pelo exposto, declaro extinto o procedimento criminal contra os arguidos A, B e C'
8. Deste despacho recorreu o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 21 de Junho de 2000, acordou em conceder provimento ao recurso, em revogar o despacho recorrido e em ordenar a subida das reclamações contra o despacho que não admitiu os anteriores recursos dos arguidos.
9. Em 4 de Abril de 2001 foram as referidas reclamações indeferidas por despacho do Exmº Desembargador Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra.
10. É nesta sequência que vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1, da LTC, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade do artigo
390º, alínea b), do Código de Processo Penal, quando interpretado em termos de permitir a remessa dos autos para tramitação sob a forma de processo comum já depois de realizada a audiência de julgamento e designado o dia para a leitura da sentença, por alegada violação do princípio do non bis in idem, consagrado no artigo 29º, nº 5 da Constituição.
11. Já neste Tribunal foi o recorrente notificado para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
'- O douto despacho que ordenou a remessa dos autos ao Ministério Público para serem tramitados sob a forma de processo comum é nulo, por contrário à lei – artigos 390º e 391º do CPP e 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.
- Finda aquela fase processual – julgamento – deverá obrigatoriamente ser proferida sentença, de absolvição ou de condenação, nos termos dos artigos 365º e seguintes do CPP;
- A decisão que, após a conclusão do julgamento, ordena a remessa dos autos para serem tramitados sob a forma de processo comum, obriga, consequentemente, a submissão do arguido a novo julgamento, pelo que viola o art. 29º, nº 5 da CRP.
- A norma do art. 390º do CPP que permite o reenvio do processo para a forma comum, depois de produzidas todas as provas, é inconstitucional, pelo que assim deve ser declarada;
- Violadas foram pois, entre outras, a disposição constitucional do art. 29º, nº
5 da Constituição da República Portuguesa.
- Deve, pois, ser revogado o douto despacho recorrido, ordenando-se a remessa dos autos ao Tribunal para que seja proferida sentença do Mmº Juiz a quo'.
12. Contra-alegou o Ministério Público, ora recorrido, tendo concluído:
'1º - Não constitui violação do princípio non bis in idem a interpretação normativa do artigo 390º, b), do Código de Processo Penal, que se traduz em permitir ao juiz – em processo sumário, finda a produção de prova e antes de prolatada a sentença – a remessa dos autos para serem tramitados em processo comum, com fundamento na necessidade de realização de novas diligências instrutórias, incompatíveis com o prazo máximo previsto para o processo sumário.
2º - Termos em que deverá improceder o presente recurso'.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
13. É o seguinte o teor do artigo 390º, alínea b), do Código de Processo Penal, preceito em que se insere a norma cuja constitucionalidade vem questionada pelo recorrente:
'Artigo 390º
(Reenvio do processo para a forma comum) Sempre que se verificar: a. (...); b. a necessidade, para a descoberta da verdade, de diligências de prova que não possam previsivelmente realizar-se no prazo máximo de 30 dias após a detenção; o tribunal, por despacho irrecorrível, remete os autos ao Ministério Público para tramitação sob outra forma processual'.
Pretende o recorrente que a interpretação normativa de tal preceito que permita ao juiz - finda a produção de prova em audiência e designado o dia para a leitura da sentença, mas antes de a mesma ter sido proferida - a remessa dos autos para serem tramitados sob a forma de processo comum, com fundamento na necessidade, para a descoberta da verdade, da realização de diligências adicionais de prova incompatíveis com o prazo máximo previsto para o processo sumário, viola o princípio do 'non bis in idem', consagrado no artigo 29º, nº 5 da Constituição. Porém, manifestamente, sem razão. De facto, da interpretação normativa do artigo 390º, alínea b), do Código de Processo Penal, que vem questionada pelo recorrente, não resulta qualquer situação de duplo julgamento, no sentido proibido pelo artigo 29º, nº 5, da Constituição, conduzindo tal interpretação normativa, simplesmente, a que o
único julgamento se faça seguindo a tramitação do processo comum, por não poder seguir-se a prevista para o processo sumário - na medida em que a produção de prova revelou a necessidade, para a descoberta da verdade, de realização de diligências probatórias insusceptíveis de serem efectuadas no prazo máximo permitido para aquela forma processual. Em suma: não existindo, ainda, qualquer sentença (condenatória ou absolutória) a pronunciar-se sobre os factos que são imputados ao arguido, não pode ver-se na simples ordem de remessa dos autos para serem tramitados sob a forma de processo comum - por a prova produzida em audiência revelar a necessidade, para a descoberta da verdade, da realização de diligências probatórias adicionais insusceptíveis de serem levadas a cabo dentro do prazo máximo previsto para o processo sumário - uma situação de duplo julgamento, no sentido proibido pelo artigo 29º, nº 5 da Constituição.
III – Decisão. Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 30 de Outubro de 2002 José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida