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Proc. nº 250/02 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A, arguida nos autos à margem identificados, foi condenada, por decisão da Inspecção-Geral do Ambiente e confirmada no Tribunal de Comarca de Santo Tirso, pela prática da contra-ordenação p. e p. nos termos dos artigos 41º e 49º nº. 2 do Decreto-Lei nº. 74/90, de 7/3 e 36º e 86º nº. 1 alínea v) e nº. 2 alínea c) do Decreto-Lei nº. 46/94, de 22/2, na coima de 500.000$00.
Não se conformando com tal decisão, a ora recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o qual não foi admitido por despacho da Juíza do tribunal de 1ª instância, por extemporaneidade.
Desse despacho reclamou a recorrente para o Presidente do Tribunal da Relação do Porto.
Sobre a reclamação recaiu o despacho de fls. 28, que decidiu no sentido do não conhecimento da reclamação e do qual se extrai o seguinte trecho:
'No Livro IX – Título I, que é reservado aos 'Recursos', depois de se estabelecer, como é natural, o que pode e não pode ser objecto de recurso, concede-se a 'Reclamação' para o Presidente da Relação, quando o despacho, que se pronuncia sobre o pedido de interposição do recurso, consiste em o 'não admitir' ou que o 'retiver' – artigo 405º do CPP.
Qual o seu sentido? É esta a única via de reacção? Pode sustentar-se a alternativa com o próprio recurso do despacho de não admissão pela circunstância de se utilizar a terminologia do 'pode'. Constitui argumento de natureza literal. Mas que nos quer parecer com força suficiente. Na verdade, quando a lei cria a 'reclamação', tem, necessariamente, de falar em 'pode', enquanto é um acto de que a parte 'pode' prescindir, prosseguindo os autos os seus respectivos termos, ainda que tenha de se sujeitar à consequências imanentes ao despacho: trânsito do despacho de que se interpusera recurso; ou subida do recurso em momento ulterior. O que pode nem sequer ter a ver com o fundo da questão.
Se o legislador impusesse a reclamação pelo 'deve', a reclamação teria que ser sempre deduzida. O que não goza de lógica alguma.
Todavia, a reclamação é uma via de natureza intermediária. E é-o enquanto, por um processo simplificado e com as garantias duma espécie de duplo grau de jurisdição, pode obstar a que tenha de ser o tribunal de recurso a pronunciar-se sobre o despacho que foi proferido previamente ao recurso. Depois, a própria decisão, a nível da 'Reclamação', só é definitiva quando não tem que ser reapreciada pelo tribunal de recurso – artigo 405º nº. 4.
Enquanto o legislador coloca no mesmo prato, sem reservas, a não admissão e a retenção e não sendo legítimas grandes dúvidas de que jamais poderá ser por recurso a reacção à retenção, parece que a reclamação será a única via para reagir à não admissão.
Contudo, o que aqui está em causa são questões mais profundas. Na verdade, o Recorrente questiona uma questão que gera controvérsia, ou seja, a contagem do prazo no direito adjectivo contra-ordenacional. E em vários segmentos: relevar a data do 'registo', ao apresentar-se o requerimento de interposição de recurso pela via postal registada e sua aplicação ao procedimento contra-ordenacional, concluindo que foi apresentado em 19-03-01; por força da Lei 59/98, de 25-8 e do DL 329-A/95, de 12-12, o prazo de interposição de recurso suspende-se aos sábados e domingos; por força destes diplomas e ainda do DL 180/96, de 25-9, nomeadamente, do seu artigo 4º, o prazo do artigo 74º nº. 1 do DL 433/82, de 27-10, na redacção do DL 294/95, de 14-9, passou a ser de 15 dias e contínuo, ou seja, teria terminado em 19-3, por ser 2ª feira e tendo em conta que a leitura da sentença em 1ª instância ocorrera em
02-03; finalmente, por força da inconstitucionalidade do artigo 74º nº. 1, o prazo de interposição de recurso teria sempre de ser de 15 dias, por virtude do artigo 413º nº. 1 do CPP, enquanto concede ao sujeito processual com direito a
'resposta' um prazo com aquele medida.
Ora, como é evidente, são-nos apresentadas as mais variadas e complexas questões, pelo que jamais podem ser apreciadas em sede de
'Reclamação'. Na verdade, esta, quando é decidida, tem de ter presente essa mesma questão e as circunstâncias precárias em que o Presidente da Relação é chamado a intervir, não só enquanto funciona com juiz singular, com a agravante de que a sua decisão pode revestir-se com carácter definitivo ou não, de acordo com o disposto no artigo 405º nº. 4 do CPPenal.
Daí que a pessoa lesada queira ver apreciada uma de todas ou mesmo todas as questões e duma vez só. O que, de forma alguma, pode ver satisfeito pela via da 'Reclamação'.
E tanto a reclamação é uma de duas vias que o normativo faz equivaler a reclamação ao despacho de não admissão ao despacho de retenção.
Com o que não se concorda é com a aplicação do artigo 668º nº. 5 do CPCivil. Desde logo, porque se trata duma inovação no processo civil, sem paralelo, portanto, no penal, pelo que deve ser específica daquele. Depois, só se aplica aquele regime quando o penal goza de lacuna. Mas 'lacuna' não é o processo penal não conter norma idêntica ao processo civil. Para tal então haveria que nos reger um diploma só. O artigo 4º do CPP admite que nos socorramos do processo civil quando nos encontramos perante uma situação, fáctica ou processual, que o diploma não contempla. Ora, não é o caso, porquanto o processo penal contém uma regulamentação suficiente e capaz. O que ela não contempla é a requerida correcção. Mas, se a não contém, é porque entendeu que não deveria gozar da possibilidade de aconselhamento. Como já o entendeu – até à
última reforma – o legislador civil. É um benefício que o legislador oferece mas apenas e quando o entendeu – no processo civil.
Neste sentido, recorda-se o parecer do MP, junto do TC, no Rec.
766/96-2ª: 'Não ofende o direito de acesso aos tribunais e o princípio constitucional das garantias de defesa um entendimento rigoroso do princípio da auto-responsabilidade das partes, patrocinada por mandatário judicial próprio, traduzido em considerar insuprível o erro na forma ou tipo de procedimento utilizado', em consequência de lapso ou erro na interpretação da lei adjectiva – no caso, a interposição de reclamação para o presidente de tribunal superior, com vista a obter a revogação da decisão do relator que julgou deserto o recurso, que havia sido admitido em 1ª instância, por se considerar que de tal decisão cabia recurso, nos termos do nº. 1 do artigo 405º do CPP'. De qualquer maneira, sempre se dirá que não é a situação que aqui ocorre, porquanto aquele normativo só permite a correcção quando a parte se socorre, originariamente, do recurso, quando o deveria fazer através da 'reclamação' – ora aqui socorreu-se, desce logo, da 'reclamação'.
Portanto, ainda que por fundamento diverso, o despacho, que considerou extemporânea a interposição de recurso, não pode ser substituído por outro, no sentido de admitir o recurso que contra ele foi entretanto interposto, mas porque nem sequer nos podemos pronunciar sobre ele pelas razões sobreditas.
Por esta via, fica prejudicada a apreciação – a sua aplicação dependeria ainda não só da nossa adesão, como também de considerarmos que, no caso vertente, há um sujeito processual com direito a 'resposta' e que, efectivamente, goza de um tratamento 'privilegiado' e 'em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social' – da solução propugnada pelo Ac. 1229/96, de 5-12, do TC, proferido no P. 169-95-2ª e pub. no BMJ 462-154/9, nomeadamente, quando conclui: 'O artigo 74º nº. 1 do DL 433/82, de 27-10, quando dele decorre, conjugado com o artigo 411º nº. 1 do CPPenal, um prazo mais curto para o recorrente motivar o recurso, está ferido de inconstitucionalidade, por violação do artigo 13º nº. 1 da CRP'.
Em consequência e em conclusão, não se conhece da reclamação, apresentada na C. º 27/99-1º Criminal, do Tribunal Judicial de Santo Tirso, pela arguida, A, por não admissão do recurso, por extemporâneo, da decisão da Autoridade Administrativa, que a condenou na coima de 500.000$00.'
Pedida a aclaração deste despacho, o Presidente da Relação do Porto proferiu o despacho de fls. 38 e segs., de onde se extracta:
'Mas uma coisa é certa – e é aí que reside o cerne da questão: é que, tal como foi equacionado o problema, não poderia ser objecto de apreciação nossa. Porque, como se disse, a decisão da 1ª instância – a decisão de 'não admissão' do recurso – deveria ser objecto de um novo recurso. Pelas razões que aduzimos na Reclamação.'
A arguida interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional nos seguintes termos:
'A., reclamante nos autos à margem referenciados, vem: A. Interpor recurso para o Tribunal Constitucional, B. O recurso é interposto ao abrigo das alíneas b) e c) do nº. 1 do artigo
70º da Lei nº. 28/82, na redacção dada pela Lei 85/89. C. Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da Douta Decisão que não conhece da Reclamação, ou da interpretação do artigo 405º do CPP, que foi dada na douta decisão, D. Bem como apreciar a inconstitucionalidade do nº. 1 do artigo 74º do DL
433/82 de 27 de Outubro quando, na conjugação com o artigo 413º do CPP, configura um prazo mais curto para o recorrente motivar o recurso. E. Tal decisão ou a interpretação dada à norma referida violam os artigos
13º, 32º nº. 1 e 10, 202º nº. 2 e 204º da CRP. F. A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos autos aquando da reclamação, bem como aquando do pedido de esclarecimento. G. O Recurso deve subir de imediato e com efeitos suspensivos.'
Distribuído o processo, o relator emitiu o seguinte despacho:
'Para alegações, devendo a recorrente ter em conta que o recurso é admitido apenas ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea b) da LTC e para apreciação da constitucionalidade da norma ínsita no artigo 405º do CPP. Isto porque: a. não há no despacho recorrido qualquer recusa de aplicação de norma com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado e só aquela justificaria o recurso ao abrigo do artigo 70º nº. 1 al. c) da LTC; b. o recurso de constitucionalidade é um recurso de normas, pelo que o TC não pode apreciar a 'inconstitucionalidade da douta decisão que não conhece da reclamação (...)' c. não foi aplicada no despacho recorrido a norma do artigo 74º nº. 1 do DL 433/82, em conjugação com o disposto no artigo 413º do CPP.' A recorrente apresentou as alegações de fls. 54 e segs., concluindo do seguinte modo:
'1 – Na decisão proferida refere-se que atenta a terminologia da norma, com a expressão 'pode' a reclamação seria uma via de natureza intermédia.
2 – A única questão, no nosso entender, colocada na Reclamação foi a de saber se o recurso interposto era ou não extemporâneo – E era e é essa a pretensão – tão só.
3 – O nº. 3 do artigo 405º do CPP refere que 'no requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a admissão ou subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação'.
4 – Tentou-se elencar todas as razões que justificariam a admissão do recurso, sempre tendo por escopo a única pretensão – aferir se o recurso tinha sido tempestivamente apresentado.
5 – Ora, o não conhecimento da reclamação é inconstitucional já que é a manifestação clara do que se costuma chamar prevalência da forma, entendida como forma de 'denegar' a própria justiça.
6 – Na medida em que viola o dever de julgar e é susceptível de afectar o direito ao recurso constitucionalmente consagrado.
7 – A reclamação é uma possibilidade que este tem de 'esgrimir' contra uma decisão que entende errada.
8 – Da decisão em crise resulta que a posição defendida pelo Exmo. Sr. Juiz Presidente da Relação do Porto é de que não é tecnicamente possível reclamar do despacho de 'não admissão' do recurso, ao abrigo do preceituado no artigo 405º do CPP.
9 – Em bom rigor, ao não considerar tecnicamente possível a reclamação ao abrigo do preceituado no artigo 405º do CPP, estaremos perante uma violação do direito ao recurso.
10 – E não se diga que a reclamação apresentada, embora bastante extensa (mas aí a culpa é nossa) tem várias questões que se pretendem ver resolvidas.
11 – A única questão é tão só saber se o recurso foi apresentado tempestivamente.
12 – Deve assim ser reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 405º do CPP quando entendida que não sendo possível ao cidadão usar o regime aí previsto, ou pelo menos, declarada inconstitucional a interpretação que o Tribunal fez de tal norma.'
Por seu turno, o Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, produziu contra-alegações, concluindo:
'1 – É inconstitucional, por violação da regra do processo equitativo, consagrada no nº. 4 do artigo 20º da Constituição, a interpretação normativa do artigo 405º nº. 1 do Código de Processo Penal, segundo a qual o meio idóneo para impugnar o despacho do juiz 'a quo' que não admitiu, por intempestivo, certo recurso interposto pelo arguido para a Relação, é a via do recurso – e não a da reclamação para o Presidente daquele Tribunal.
2 – Na verdade, tal interpretação normativa, ao condicionar, em termos inovatórios e objectivamente surpreendentes, a admissibilidade da reclamação a um juízo (discricionário) acerca da variedade e complexidade das questões suscitadas em torno da questão da tempestividade do recurso não admitido – sem facultar à parte qualquer oportunidade processual de 'convolar' para o meio procedimental considerado idóneo – afecta desproporcionadamente a 'confiança' que deve necessariamente estar subjacente a um 'due process of law'.
3 – Termos em que deverá proceder o presente recurso.'
Cumpre decidir.
2 – A norma do Código de Processo Penal cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada é do seguinte teor:
'Artigo 405º
(Reclamação contra despacho que não admitir ou que retiver o recurso)
1 – Do despacho que não admitir ou que retiver o recurso, o recorrente pode reclamar para o presidente do tribunal a que o recurso se dirige.
2 – A reclamação é apresentada na secretaria do tribunal recorrido no prazo no prazo de dez dias contados da notificação do despacho que não tiver admitido o recurso ou da data em que o recorrente tiver tido conhecimento da retenção.
3 – No requerimento o reclamante expõe as razões que justificam a subida imediata do recurso e indica os elementos com que pretende instruir a reclamação.
4 – A decisão do presidente do tribunal superior é definitiva quando confirmar o despacho de indeferimento. No caso contrário, não vincula o tribunal de recurso.'
No caso em apreço, a norma aplicada é apenas a que se contém no nº 1 do transcrito preceito, interpretada em determinado sentido que importa desde já dilucidar.
Para o despacho recorrido – que não conheceu da reclamação apresentada – a reclamação prevista no artigo 405º do CPP é, desde logo, facultativa quando está em causa um despacho que não admite determinado recurso; por outro lado, o presidente do tribunal para que se recorre não deve conhecer da reclamação apresentada quando a resolução das questões suscitadas pelo reclamante, tendentes a demonstrar que o recurso deveria ter sido admitido em contrário do decidido no despacho reclamado, oferece particular complexidade – neste caso, o meio apropriado de impugnação é o recurso.
Esta interpretação resulta evidente do despacho impugnado e do esclarecimento ulterior prestado a requerimento da ora recorrente.
É, assim, com a aludida interpretação, que a norma em causa será apreciada sub specie constitucionis por este Tribunal.
3 – Uma primeira observação se impõe.
E ela é a de que, numa primeira leitura, a norma, tal como foi interpretada, - e independentemente do acerto da interpretação no estrito âmbito do direito infraconstitucional – não deixaria a reclamante sem meios de defesa contra o despacho de não admissão de recurso que a agravou.
Com efeito, em bom rigor, o que no despacho recorrido se quer dizer é que, reclamando nos termos do artigo 405º do CPP, a recorrente usa um meio processual de impugnação impróprio; e o meio apropriado seria, considerando a invocada complexidade das questões suscitadas para demonstrar a tempestividade do recurso interposto, o recurso do despacho que não admitiu o recurso para a 2ª instância.
Nesta medida – repete-se – não pareceria invocável qualquer situação de indefesa, ofensiva das garantias constitucionais de tutela jurisdicional efectiva dos direitos ofendidos, sendo, ainda, certo que o meio processual que o despacho recorrido indica como adequado – o recurso – não se configura como mais oneroso para a recorrente.
A situação é, porém, diversa, se analisada com outra profundidade.
A interpretação que é feita da norma do artigo 405º nº 1 do CPP, que faz depender conhecimento da reclamação da complexidade das questões a resolver, surge, no panorama jurisprudencial dos nossos tribunais superiores, com assinalado ineditismo.
Não conhece, de facto, este Tribunal qualquer corrente jurisprudencial que acolha uma tal interpretação.
Ao invés, é constante a jurisprudência no sentido de que do despacho que não admite um recurso, em processo penal, cabe reclamação para o presidente do tribunal para que se recorre, sem qualquer ressalva em caso de complexidade das questões a resolver.
A mero título de exemplo, citam-se os Acórdãos do STJ de 12/2/97, da Relação de Lisboa, de 4/10/94, 20/3/96, 13/3/2000 e 17/5/2000 e da Relação do Porto de 5/4/2000, todos nas Bases Jurídico-Doumentais da DGSI. www.dgsi.pt
Também, em processo civil e em lugar paralelo (artigo 688º nº 1 do CPC), a mesma orientação é pacífica (cfr., ainda, a título de mero exemplo, os Acórdãos do STJ de 2/5/91, 29/11/96 e 20/2/97, da Relação de Lisboa, de 1710/92 e 20/3/97 e da Relação de Coimbra de 24/5/2001, todos igualmente nas Bases Jurídico-Documentais da DGSI).
Na doutrina não se encontra, também, qualquer voz que sufrague a tese do despacho recorrido.
É esta unanimidade que faz certamente com que o Ministério Público considere, nas suas contra-alegações, a 'total imprevisibilidade' da interpretação normativa em causa e os 'termos perfeitamente inovatórios no nosso ordenamento adjectivo' da mesma interpretação.
E é também ela que justifica concluir-se que, a seguir o entendimento do despacho recorrido, a parte 'se iria confrontar com um mais que provável juízo de rejeição pelo Tribunal por manifesto 'erro na forma do processo'.
Ora, se é certo que ao Tribunal Constitucional não compete sindicar o modo como o direito infraconstitucional – e neste estrito âmbito – é interpretado, não pode deixar de ponderar, na apreciação da constitucionalidade de uma determinada interpretação normativa e para efeitos de determinar as consequências que advêm para a parte que ela afecta, o entendimento comum, ou mesmo pacífico, na jurisprudência, sobre a questão.
Assim, não pode o Tribunal Constitucional deixar de ponderar, no caso, que, de acordo com esse entendimento, a norma do artigo 405º nº 1 do CPP, interpretada nos termos em que o foi, implicaria, seguramente, para o recorrente uma situação de indefesa, com a rejeição do recurso que viesse a interpor do despacho de não admissão, recurso esse que constituía para o despacho recorrido a única via de impugnação do mesmo despacho.
Tal consequência não a permite a Constituição.
Com efeito, admitindo a lei (artigo 74º nº 1 do Decreto-Lei nº
433/82), em matéria contra-ordenacional, recurso para a relação da sentença de
1ª instância, ficaria o recorrente desprovido deste meio de impugnação que o legislador, ao prevê-lo, entendeu necessário para a defesa dos direitos dos arguidos.
Mas tem razão o Exmo Magistrado do Ministério Público quando, nas suas contra-alegações, entende que não é, de todo o modo, posto assim em causa um direito ao recurso que a Constituição não assegura no processo contraordenacional.
A situação de indefesa em que surpreendentemente é colocado o recorrente afecta, contudo, a confiança que a parte deposita no ordenamento jurídico regulador dos meios de defesa dos seus direitos, confiança essa que é tutelada pelo princípio do Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da CRP.
Do mesmo passo, com a mesma surpreendente interpretação, que impede o uso de um meio pacificamente considerado adequado ao fim para que a recorrente o usou, sem alternativa credível (o recurso) atendendo á unanimidade da jurisprudência sobre a matéria, ofendido fica o princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 20º nº 4 da Constituição.
Não pode, assim, deixar de merecer provimento do recurso, embora por fundamentos diversos dos alegados pela recorrente.
4 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se:
a. Julgar inconstitucional, por ofensa do disposto nos artigos 2º e 20º nº
4 da Constituição da República Portugesa, a norma ínsita no artigo 405º nº 1 do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a reclamação aí prevista não é meio adequado de impugnação do despacho de não admissão do recurso quando nela se suscitam questões complexas; b. Conceder, consequentemente, provimento ao recurso, devendo o despacho recorrido ser reformado de acordo com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Outubro de 2002- Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa