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Procº nº 565/2001.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
(Consª Maria Fernanda Palma).
I
1. Depois da prolação do Acórdão nº 122/2000 deste Tribunal, por intermédio do qual [após ser formulado um juízo de inconstitucionalidade, por violação dos números 1 e 3 do artigo 29º da Constituição, da norma constante da alínea a) do nº 1 do artº 120º da versão originária do Código Penal, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se interrompe com a notificação para a comparência para as primeiras declarações ou interrogatório do agente como arguido na instrução] foi determinada a revogação do acórdão tirado em 18 de Novembro de 1998 pelo Tribunal da Relação de Lisboa
(que tinha, na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público do despacho proferido em 7 de Março de 1997 pelo Juiz do 5º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, ordenado que viesse a ser proferido novo despacho que pronunciasse, entre outros, os arguidos A, B, C, D, E e F, pelos factos constantes da acusação e que foram subsumidos ao cometimento, em co-autoria, de um crime previsto e punível pelo artº 270º, números 1 e 2, do Código Penal), foi proferido, em 14 de Junho de 2000 e pelo mesmo Tribunal de 2ª Instância, novo aresto que decidiu que os autos fossem remetidos ao dito Juízo do Tribunal de Instrução Criminal a fim de ser conhecida a questão prévia da prescrição do procedimento criminal.
Tendo, em 27 de Setembro de 2000, o Juiz daquele Juízo declarado extinto, por prescrição, o procedimento criminal dos arguidos, por entender que
'os últimos factos com relevância penal descritos na acusação tiveram lugar em Fevereiro de 1987 e desde então decorreu o prazo máximo de prescrição relativo ao crime doloso imputado na acusação sem que se tenha verificado qualquer facto interruptivo da prescrição (art. 120 n.º 1 do CP de 1982)', recorreram do assim decidido para o Tribunal da Relação de Lisboa as assistentes F e G e, bem assim, o Ministério Público.
Em síntese, as assistentes sustentaram que a notificação do despacho de pronúncia aos arguidos - ocorrida em 29 de Setembro de 1995 - teria interrompido a prescrição, a tanto não obstando a sua ulterior invalidação, e que, por força do nº 4 do artº 118º do Código Penal (versão de 1982), quando a produção de certo resultado não faz parte do tipo de crime, o prazo de prescrição só se iniciará a partir do dia em que esse resultado se produz.
Por seu turno, o Ministério Público, no que ora releva, defendeu que, atendendo ao disposto naquele nº 4 do artº 118º, o prazo de prescrição do procedimento criminal só se teria iniciado a partir de 26 de Agosto de 1994, pois que nessa data se verificou o último resultado, sendo certo que se estaria perante um crime em que existiam resultados não compreendidos no respectivo tipo.
Na resposta à motivação dos interpostos recursos, formularam os acima indicados arguidos as seguintes «conclusões»:-
'a) despacho recorrido não merece qualquer censura, pois se limitou a aplicar ao casos dos autos a doutrina fixada pelo Tribunal Constitucional, em cumprimento do decidido pelo Tribunal da Relação no acórdão de 14.06.2000; b) a questão da data a partir da qual se considera iniciado o prazo da prescrição, (Fevereiro de 1987) deve considerar-se definitivamente decidida pelo acórdão da Relação de 18.11.98, em respeito pelo caso julgado e em obediência ao princípio do non bis in idem; c) deve também considerar-se definitivamente decidido que o prazo prescricional se iniciou em Fevereiro de 1987 e não teve qualquer interrupção, em obediência ao princípio constitucional do non bis in idem; d) crime previsto no tipo legal do art. 270º, nº 1 do Código Penal, quando agravado nos termos do nº 2 do preceito, é uma modalidade de crime agravado pelo resultado, qualificação esta sobre a qual não existe qualquer divergência na doutrina e na jurisprudência. e) Os recorrentes pressupõem que o resultado morte que funciona como agravante
(art. 267º do CP de 1982) do crime do art. 270º, nº 1 do Código Penal (texto de
1982) é ‘um resultado não compreendido no tipo de crime’, podendo por isso aplicar-se o nº 4 do art. 118º do Código Penal. f) Esta ideia do M.P. recorrente está juridicamente errada e viola os regimes legais contidos no art. 118º, nº 1 e nº 4 do Código Penal. g) Os resultados agravantes previstos no art. 270º, nº 2 e 267º do Código Penal de 1982 constam expressamente da descrição do tipo legal de crime e têm de ser, de acordo com a letra do art. 267º e por força do art. 18º do CP, imputados a título de negligência. Donde, são resultados tipicamente ilícitos e não
‘resultados não compreendido[s] no tipo’. h) Nunca a doutrina ou a jurisprudência consideraram, nestas hipóteses, que o resultado agravante não faz parte do tipo. i) Assim, o primeiro erro cometido pelo MP no presente recurso quanto à contagem do prazo de prescrição traduz-se em confundir o resultado agravante previsto nos arts. 270º, nº 2 e 267º do Código Penal com ‘um resultado não compreendido no tipo de crime’, quando esse resultado consta expressamente da descrição do tipo legal. j) Em função do erro atrás descrito, o MP cometeu um segundo erro: aplica o art.
118º, nº 4 do CP de 1982 a crimes agravados pelo resultado! k) Na verdade, aos crimes agravados pelo resultado terá de se aplicar o nº 1 do art. 118º (o momento da consumação do facto) e não o nº 4 do preceito. l) Mesmo que se admitisse, sem conceder, que os resultados referidos no Nº 2 do artº 270º do CP - provocação de epidemia, lesão corporal grave ou morte - poderiam considerar-se como resultados não compreendidos no tipo de crime, seguindo-se, consequentemente, o regime previsto no Nº 4 do artº 118º do C.P., m) em tal hipótese, como é evidente, o prazo de prescrição ter-se-ia iniciado logo que o primeiro dos resultados se tivesse verificado, como resulta da própria letra do Nº 4 do artº 118º do C.P.. n) Segundo a acusação do M.P., a epidemia, por meio da difusão do vírus, teria ocorrido com a administração do factor VIII alegadamente contaminado, ocorrida entre 18.06.86 e 24.02.87. (Cfr. artºs 417º a 439º da acusação). o) Uma vez verificado esse resultado agravante, estava consumado o crime com a agravação prevista no Nº 2 do artigo 270º, como aliás foi imputado aos arguidos na acusação do M.P.. p) A agravação referida (e que transforma o crime em qualificado) não é obviamente cumulável com as restantes circunstâncias qualificativas previstas directa ou indirectamente no mesmo preceito (baixeza de carácter, causar morte ou lesão corporal grave de outrem - art. 267º do CP/82), como resulta do próprio teor literal do nº 2 do artigo 270º). q) Nestes termos, é obrigatório concluir que a eventual ocorrência da morte, ou de lesão corporal grave de outrem - como consequência prática do crime de perigo em causa, é manifestamente irrelevante, na medida em que a agravação a que poderia haver lugar já tinha operado por estar em causa a difusão através do vírus. r) A existir um concurso de circunstâncias qualificativas, tal concurso é aparente, no sentido em que só uma das normas de agravação pode operar. s) Torna-se também evidente que a verificação da primeira das circunstâncias qualificativas preclude a eventual relevância de quaisquer outras com o mesmo significado. t) Também logo em 1986 se verificou, alegadamente, a lesão corporal grave dos hemofílicos a quem teria sido administrado o lote supostamente contaminado. u) E também alegadamente se verificou, pouco tempo depois (em 22.05.87, segundo a acusação), a morte de uma das pessoas alegadamente contaminadas. v) Assim, mesmo por aplicação directa do Nº 4 do artº 118º do C.P. (na tese, embora manifestamente errada do M.P.), os resultados agravantes ter-se-iam verificado (é a própria expressão utilizada pelo preceito), todos em 1986/1987.
w) A interpretação normativa que o MP faz do disposto no art. 118º do CP torna este preceito inconstitucional, desde logo por conduzir, na prática, à criação de crimes imprescritíveis. x) Uma tal categoria de crimes seria, além do mais, inconstitucional na ordem jurídica portuguesa por violar os princípios do Estado de Direito em sentido material, nomeadamente o direito à segurança (art. 27º, nº 1 da CRP), o direito a um julgamento dentro do prazo razoável e à presunção constitucional de inocência (art. 32º, nº 2 da CRP).
y) A incerteza criada pela interpretação que o MP faz do art. 118º, nº 2 do CP colide, também, com o art. 27º, nº 1 e com o art. 32º, n 2 da Constituição. z) Por outro lado, a posição do M.P., além de ser contra legem, corresponde ao procedimento típico de integração de lacunas, que consiste em aplicar analogicamente um preceito ao caso cujo tratamento legal é omisso (analogia legis). aa) Por violar a exigência de lei expressa (arts. 29º nº 1 e nº 3 da Constituição) a interpretação normativa proposta pelo MP dá um alcance ao art.
118º, nº 4 do Código Penal que é inconstitucional (face aos citados arts 29º, nº
1 e 3 da Constituição). bb) A solução correcta é eleger o momento da consumação do facto-base imputado ao agente - no caso, o facto do art. 270º, nº 1 do CP de 1982 (propagação da doença que causa perigo). cc) Na verdade, num crime desta natureza só o facto do agente que se integre no crime base (artº 270º, nº 1) pode funcionar com um mínimo de consistência e segurança, dentro do espírito do art. 118º do Código Penal e dos arts. 27º, nº 1 e 29º da Constituição, para iniciar a contagem do prazo de prescrição. Tudo o mais é incerto, indeterminado e tornaria, na prática, o crime imprescritível. dd) Outra hipótese, ainda admissível, seria a contagem do prazo de prescrição a partir da primeira circunstância agravante imputada aos arguidos (artº 270 Nº 2 e 267º do C.P., texto de 1982). ee) Ao pretender atribuir relevância jurídico-penal a vários resultados que se produzem sucessivamente, o M.P. está a valorar sucessivamente (isto é, mais do que uma vez) o crime agravado pelo resultado, interpretando normativamente os artigos 270º Nº 2, 267º e 118º Nº 4 do C.P. (texto de 1982) de modo que incompatibiliza tais preceitos com o princípio da legalidade criminal (artº 29º Nºs 1 e 3 da CRP) e com o princípio do non bis in idem (artº 29º Nº 5 da CRP). ff) Na motivação do recurso interposto pelas assistentes foi alegado outro argumento, que o M.P. não subscreveu, segundo o qual a notificação do despacho de pronúncia aos arguidos, em 29.09.95, - despacho e notificação declarados nulos e de nenhum efeito - teria interrompido o prazo da prescrição. gg) Cabem aqui as considerações feitas a propósito da aplicação ao caso do princípio do non bis in idem. Esta questão tem de considerar-se definitivamente encerrada no sentido de que se não verificou a alegada interrupção. hh) Em qualquer caso, a decisão instrutória proferida em 25.09.95 e respectiva notificação, foram declaradas nulas e de nenhum efeito, por despacho proferido a fls. 10.415 dos autos, transitado em julgado, em consequência de acórdão proferido pela Relação. ii) Assim, tendo sido tais actos declarados nulos e de nenhum efeito, é evidente que não podem atribuir-se quaisquer efeitos à referida decisão e respectiva notificação, as quais foram excluídas da ordem jurídica por decisão judicial transitada. Aliás, uma interpretação do Nº 3 do artº 120º do C.P. de 1982, como a sustentada pelos assistentes, que conduzisse à atribuição de efeito interruptivo a um despacho de pronúncia declarado judicialmente nulo e de nenhum efeito, tornaria tal preceito manifestamente inconstitucional, por violação dos artigos 2º, 16º,
27º Nº 1 e 29º Nºs 1 e 3 da CRP. jj) Em face do exposto, a decisão recorrida não poderá deixar de ser inteiramente conformada por este Venerando Tribunal'.
Exarado «parecer» pelo Representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa - no sentido de que o crime de propagação de doença contagiosa se haverá de ter por consumado com a mera criação de um perigo para a vida de um número indeterminado de pessoas, pelo que a posterior ocorrência do evento morte já não releva senão para a determinação da moldura penal, sendo, pois, a morte um elemento «extra-típico» irrelevante para a consumação do crime, constituindo, antes, uma mera cláusula de agravação pelo resultado, pelo que relevaria, para efeitos de prescrição, o que se encontra disposto no nº 4 do artº 118º da versão de 1992 do Código Penal - vieram os citados arguidos pronunciar-se sobre o mesmo, pronúncia na qual concluíram:-
'1 - No parecer a que se responde, o M.P. limitou-se a abordar - mal! - apenas um dos argumentos que fundamentaram a tese da decisão recorrida, aliás o mais complexo do ponto de vista jurídico, ou seja, a questão da aplicabilidade ao crime imputados aos arguidos do Nº 4 do artigo 118º do C.P.;
2 - A verdade é que essa questão se mostra até irrelevante. Admitindo mesmo a errada tese do M.P., segundo a qual se aplica ao caso em apreço o Nº 4 do artigo
118º, o crime imputado aos arguidos estaria há muito prescrito, visto que todos os resultados agravantes previstos no Nº 2 do artigo 270º - causação de epidemia, lesão corporal grave e morte - teriam ocorrido, segundo a acusação, em
1986 e 1987.
3 - Ainda assim, relativamente ao único ponto tratado pelo M.P. no seu parecer, o M.P. incorreu em diversos erros de direito. Vejamos.
4 - O crime que se pretende imputar aos arguidos na acusação (art. 270, nº 1 e nº 2, conjugado com o art. 267º do CP, texto de 1982) é um crime de perigo concreto, doloso, agravado pelo resultado morte, imputável a título de negligência. Esta mesma qualificação é aceite pelo parecer do MP a que se responde.
5 - O parecer do MP confunde a consumação do tipo incriminador do nº 1 do art.
270º com a consumação do tipo incriminador do nº 2 do art. 270º (conjugado com o tipo incriminador do art. 267º). Quando se pretende imputar os dois factos (nº 1 e circunstância agravante do nº 2) tem de se ponderar a consumação de cada um deles. E se se pretende imputar o crime agravado pelo resultado como um todo a data da consumação corresponde à data da verificação do facto que faz funcionar a circunstância agravante.
6 - O parecer do MP, contra toda a evidência dos tipos incriminadores criados pelo legislador, afirma que a morte é um resultado ‘extra-típico’ quando, ao mesmo tempo, a acusação pretende responsabilizar os arguidos pela realização do tipo do nº 2 do art. 270º, conjugado com o art. 267º, e neste preceito a morte surge expressamente como descrita no tipo de crime.
7 - O parecer do MP acaba por cair ainda na contradição de dizer que tal morte é
‘um resultado extra-típico’ mas, ao mesmo tempo, exigir a comprovação da negligência, que se reporta sempre, de acordo com o art. 15º do Código Penal, ao
‘facto típico’. O que prova, a partir da própria lei, que tal resultado integra o facto típico descrito como agravação pelo resultado.
8 - O Parecer do MP usa de forma deslocada e acrítica a doutrina que invoca, quando é certo, por um lado, que aquilo que o Prof. Germano Marques da Silva afirma é que nos crimes agravados pelo resultado o evento agravante faz parte do tipo de crime e, por outro lado, os comentadores do Código Penal invocados partem de uma premissa (a de que o nº 4 do art. 118º ou 119º se aplica a crimes formais) e depois o pretendem aplicar, contra legem, e contra os elementos históricos, a crimes materiais como são os crimes agravados pelo resultado.
9 - O tipo de crime que se pretende imputar aos arguidos na acusação é uma unidade jurídica formada por um[ ] crime base doloso (art. 270º, nº´1 do CP) e um resultado agravante imputável a título de negligência (art. 270º, nº 2) que gera, por um aumento da ilicitude e da culpa, uma pena mais elevada.
10 - O parecer do MP quebra esta unidade jurídica: pretende que aos arguidos sejam imputados os factos do nº 1 do art. 270º como um crime agravado pelo resultado, mas depois usa o conceito de consumação reportado apenas ao nº 1 do preceito e o evento agravante como um facto que seria estranho ao tipo, para retardar contra legem o momento do início da contagem do prazo de prescrição.
11 - Este procedimento viola o princípio da legalidade criminal.
12 - A morte que surge descrita no art. 267º é um resultado típico agravante e, por isso mesmo, sujeita às regras dos arts 10º, 18º e 15º do Código Penal. Tem de ser imputado objectiva e subjectivamente como um facto típico, tal como resulta expressamente dos arts 10º, nº 1 e 15º do CP, e por ser um elemento do facto típico é que tem de ser imputado nesses termos.
13 - É contraditório e violador da lei vigente afirmar que a morte se imputa a título de negligência e que é simultaneamente um resultado extra-típico.
14 - O art. 118º, nº 4 do CP só pode ser aplicado a crimes tipicamente formais cuja punibilidade está condicionada pela verificação de uma condição objectiva de punibilidade.
15 - O art. 118º, nº 4 do CP nunca pode ser aplicado a crimes agravados pelo resultado, que são crimes materiais.
16 - Aos crimes materiais aplica-se a regra geral constante do nº 1 do art. 118º
(a prescrição começa a contar-se da data da consumação) e não a regra especial do nº 4 do artº 118º.
17 - A consumação consiste na verificação de todos os elementos integrantes do tipo de ilícito, por força do princípio da legalidade criminal.
18 - O parecer do MP desconsiderou completamente a doutrina portuguesa que se tem pronunciado sobre os temas que analisa e não levou em conta os elementos históricos que permitem entender o campo de aplicação do art. 118º, nº 4 do CP e que constam das Actas da Comissão Revisora do 1963 e de 1991.
19 - A aplicação que o MP pretende fazer do preceito é, mesmo na perspectiva da solução que procura sustentar, juridicamente errada, pois deveria usar como referência a data da verificação da primeira circunstância que faz funcionar o tipo incriminador agravado pelo resultado e não a data do último facto dessa natureza. O preceito em causa reporta-se ao resultado e não ao último dos resultados'.
Foi junto aos autos pela arguida A um parecer do Professor José de Faria Costa, no qual se concluiu:-
'1) as normas sobre a prescrição têm natureza material;
2) porque contendem directa e umbilicalmente com os direitos fundamentais do arguido, maxime, com o direito constitucional à segurança consagrado no art.
27.º, n.º 1 da Constituição da República.
3) Uma correcta compreensão do art. 119.º, n.º 4 do CP implica que este não abranja, no seu âmbito de aplicação, os crimes de resultado.
4) Esta interpretação - a interpretação correcta - baseia-se nos seguintes pontos:
4.1 na história do preceito;
4.2 nas conexões e interconexões sistemáticas;
4.3 na intencionalidade normativa que presidiu à construção da norma.
5) O crime de propagação de doença contagiosa é um crime de perigo concreto o que faz dele, por isso mesmo, um crime de resultado.
6) Assim, no caso concreto, o momento da consumação deu-se em 18 de Julho de
1986, isto é, no momento em que entraram nos Hospitais Civis de Lisboa 500 frascos do lote n.º 810536 (Factor VIII) e que estariam eventualmente infectados com o vírus da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.
7) Logo, o competente procedimento criminal está extinto por prescrição.
8) Mas mesmo que se não aceite a forma de sustentar a opinião que até ao momento defendemos é indiscutível que ao mesmo resultado se chega seguindo o incorrecto caminho traçado pelo Ministério Público.
9) Assim, não temos dúvidas - e pensamos que aqui ninguém as pode ter - de que o regime concretamente mais favorável é o que resulta daquele que emanava da versão original do Código Penal (1982).
10) O que implica que, em síntese, se possa dizer que ‘o resultado não contido no tipo’, relevante para a fixação do início do prazo de prescrição é a causação de epidemias por meio de difusão de vírus (art. 270.º, n.º 2 da versão primitiva).
11) Logo, também por este lado das coisas - que muito embora não seja a vertente que consideramos a mais pertinente e correcta é aquela, repete-se, que erroneamente defende o Ministério Público - se chega à conclusão inequívoca de que o procedimento criminal se encontra extinto por prescrição.
12) A tudo isto acresce que não se encontram nos autos factos que indiciem minimamente a violação de qualquer dever objectivo de cuidado o que nos leva - como sustentámos em Parecer anterior - a poder afirmar não ter havido crime negligente de doença contagiosa.
13) Ora, se partimos desse pressuposto e se para haver um crime agravado pelo evento necessário é - se se não quiser cair em uma inconstitucional responsabilidade objectiva - que o evento não querido mas efectivamente acontecido se baseie em negligência (art. 18.º do CP), então, por maioria de razão não se vislumbram indícios de qualquer ordem, na peça acusatória, que sustentem a imputação a título de negligência do resultado morte dos ofendidos hemofílicos.
14) Finalmente podemos ainda acrescentar duas outras coisas.
15) A primeira é que a interpretação levada a cabo pelo Ministério Público, para lá de ser jurídico-penalmente infundada é jurídico-constitucionalmente insustentável, porque, em frontal violação dos comandos constitucionais, convola os crimes agravados pelo resultado em crimes potencialmente imprescritíveis e introduz-lhes uma inadmissível dimensão de responsabilidade objectiva.
16) A segunda prende-se com o facto de a interpretação do Ministério Público, relativamente ao art. 118.º, n.º 4, da versão primitiva do CP (actual 119.º, n.º
4 do CP) poder revelar-se inconstitucional.
17) Como se viu, os crimes de perigo comum agravados por uma pluralidade de resultados incertos, em número indeterminável e diferidos no tempo, não se encontram abrangidos pela previsão do art. 118.º, n.º 4 do CP.
18) De sorte que ao levar a cabo a interpretação expendida recorreu o Ministério Público a uma inconstitucional - e não só, é óbvio - integração analógica de lacunas in malam'.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 24 de Abril de 2001, concedeu provimento aos recursos interpostos pelas assistentes e pelo Ministério Público, 'declarando que o procedimento criminal não prescreveu e ordenando que, após a baixa, se dê andamento aos autos, nos termos do acórdão de 18-11-1998'.
Surpreendem-se nesse aresto as seguintes asserções:-
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Duas conclusões, portanto, há que retirar do exposto:
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2ª - Não têm razão os arguidos, quando alegam que o termo a quo da prescrição, e a inexistência de facto interruptivo da mesma, estão definitivamente decididos. Na verdade, repete-se, estas questões permanecem em aberto (com a sobredita excepção) e integram o objecto dos presentes recursos.
II -
A DURAÇÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL:
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Nestes termos, e nos do artigo 445º-3. CPP, concluiu-se que o prazo prescricional é de 10 anos, ex vi do artigo 118º-1. b) e c) CP82.
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III -
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De acordo com o artigo 120 1. c) CP82, a notificação do despacho de pronúncia interrompe a prescrição do procedimento; e, nos termos do artigo
119º-1.b) m.d.1., o mesmo facto é, simultaneamente, causa de suspensão do aludido prazo.
Ora, a principal objecção à eficácia interruptiva - que da suspensiva ninguém falou (mas falaremos nós) - radica no facto de a pronúncia ter posteriormente sido anulada, ou invalidade, em consequência do decidido em recurso (cfr. supra, em A). Mas não têm razão os respectivos subscritores, como passamos a demonstrar.
a) A lei atribui eficácia interruptiva do prazo à notificação da pronúncia, e não à prolação desta, ou ao trânsito em julgado da mesma: Fala directamente em «notificação», e omite a necessidade da passagem em julgado da decisão notificada (que ocorre em momento ulterior, independentemente da sua recorribilidade - cf. artigo 677º CPC). O que só pode significar que prescinde daquela, isto é, que lhe é indiferente o ulterior destino da pronúncia.
Aliás, importa registar que, tratando-se aqui de interrupção, com a mencionada notificação começou a correr novo prazo, tendo-se inutilizado para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente (cf. artigo 326º CC). Nesta ordem de ideias, não se vê como a invalidação posterior da pronúncia possa ter a ver com a eficácia interruptiva determinada na lei.
b) A perda de validade da pronúncia tem relevância, mas em relação à suspensão do prazo, estipulada na citada alínea b) do nº 1. do artigo 119º CP82.
Com efeito, é sustentável, diante do preceituado no nº 3 do mesmo artigo 119º, que o prazo, a contar de novo ex vi da interrupção (artigo 326ºCC) se (re)iniciou com o trânsito em julgado de decisão anulou a pronúncia.
Resumindo:
Com a notificação do despacho de pronúncia:
1 - Interrompeu-se o prazo prescricional.
2 - O novo prazo só voltaria a correr 3 anos depois (nº 2. cit. artigo 119º) caso a pronúncia se tivesse mantido válida; mas
3 - O novo prazo voltou a correr a partir do momento em que transitou a decisão que invalidou a pronúncia, pois neste caso o processo ‘está pendente’ mas numa fase anterior à pronúncia cuja subsistência é pressuposto da suspensão.
Neste sentido, vejam-se os diferentes termos das alíneas b) do artigo
119º, e c) do artigo 120º (CP82) pois em ambas se prevê o mesmo facto (a notificação do despacho de pronúncia) todavia na primeira exige-se a concorrência de uma circunstância (a pendência do processo, que obviamente tem como pressuposto a subsistência da pronúncia) a qual não se acha estipulada na segunda.
Temos, pois, como segunda conclusão, que o prazo de prescrição (ainda não expirado em qualquer das teses presentes) se interrompeu em 29-9-1995 (data da notificação da «primitiva» pronúncia) tendo recomeçado a correr com o trânsito em julgado do acórdão desta Relação, que ordenou a realização de algumas diligências em instrução, e anulou a sobredita pronúncia.
IV-
O que se escreveu no precedente ponto III- é válido, mutatis mutandis, relativamente à pronúncia decidida em 18-11-98, passada em julgado.
Na verdade, com a notificação daquele acórdão ocorreu nova interrupção do prazo prescricional, o qual tem reinício após a suspensão de 3 anos (artigo 119º-1.b) e 2. CP82) contados da mesma notificação, e descontado o tempo de suspensão já decorrido depois da «primitiva» pronúncia (cit. nº 2.).
V-
A questão em torno da caracterização da infracção dos autos, para efeitos da apreciação da prescrição é, e, larga medida, uma falsa questão.
Em traços gerais:
- Ou estamos face a um crime de perigo, que se consumou com a difusão da doença, ou com o perigo da sua propagação;
- Ou tratamos de um crime em que o(s) resultado(s) se compreende(m) no tipo legal respectivo.
No primeiro caso, a morte ou o efectivo contágio são resultados relevantes (e note-se que a exigência de relevância é ‘nova’, pois foi introduzida pela revisão de 1995 - o artigo 118º -4, C.P. 82 alude apenas à
‘produção de certo resultado’) uma vez que tipificados como agravantes nos artigos 270º-2 e 267º CP82. E, de qualquer modo, a mais elementar razoabilidade aponta-nos para que o «resultado» previsto no citado artigo 118º-4, não pode deixar de ser, no caso vertente, aqueles que são alegados na acusação.
Na segunda hipótese, em que os resultados se compreendem no tipo legal, o crime só se consumou com a ocorrência do último resultado (não podemos esquecer que estamos perante uma única infracção, em que os resultados são imputáveis a título de negligência, no caso do artigo 267º CP82).
Com efeito, cremos evidente que o propósito daquele nº 4., cabalmente esclarecido mediante a alteração nele introduzida em 1995, foi o de restringir, em certos casos, o âmbito da prescrição, relativamente ao previsto no nº 1. do mesmo artigo 118º. E por motivos que se nos afiguram óbvios.
Ainda que a verificação do primeiro dos resultados (relevantes) tivesse iniciado o prazo de prescrição, tal prazo respeitaria, necessariamente, apenas, a esse resultado, pois outros prazos concorreriam, tantos quantos os eventos atendíveis. É mister relembrar que a imputação do resultado é a título de negligência (na hipótese do artigo 267º CP82) e que temos, tão-só, UM crime, agravado por todos os resultados, os quais, sendo assim relevantes, todos contam para o início do prazo.
Neste contexto, o mais que poderia extrair-se é que, eventualmente, não serão atendíveis os resultados em relação aos quais o prazo prescricional já tenha decorrido, tese que não nos parece ter grande consistência ou viabilidade. Sem embargo, esta será decisão para julgamento, pois agora curamos do prazo de prescrição do procedimento pelo crime, considerado como unidade jurídica, isto
é, olhado o momento em que ocorreu o último facto relevante.
Outra realidade é a que decorre do facto de concorrerem duas espécies de agravantes no caso vertente: A primeira, nos termos da 2ª parte do nº 2 do artigo 270º CP82 (‘por meio de vírus’); a segunda, ex vi da 1ª parte do mesmo preceito (morte, ou lesão corporal - artigo 267º m.d.l.).
Ora, mesmo que se entenda que estas agravantes não são ‘realmente’ cumuláveis, cada uma delas não poderá deixar de ser atendida de per si, designadamente aquela em relação à qual o prazo prescricional resulta mais dilatado. São princípios gerais de direito, que nos dispensamos de desenvolver.
Aliás, não se trata aqui de opção tomada, na dúvida, sobre duas alternativas, caso em que teria de decidir-se a favor do arguido.
É curiosa a crítica de imprescritibilidade que se aponta à tese dos recorrentes, como se todas as mortes indiciariamente causadas pela conduta dos arguidos não fossem relevantes. Repete-se, ao menos os resultados-morte alegados pela acusação deverão ser atendidos, sendo certo que estão fora do âmbito deste processo outros resultados posteriores.
Não verificamos, por conseguinte, alguma inconstitucionalidade nesta interpretação, pois dela não resulta incerteza ou imprescritibilidade, já que os factos atendíveis são os constantes da acusação/pronúncia, não existindo resultados incertos ou indetermináveis, e vista a salvaguarda residual consagrada no artigo 120º-3. CP82.
Em conclusão, o prazo prescricional teve início em 26-8-1994, data da morte mais recente, das aludidas no artº 420º da acusação, acolhida na pronúncia.
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Deste acórdão veio a arguida A requerer o respectivo esclarecimento, pretensão que veio a ser indeferida por aresto de 6 de Junho de 2001.
Do acórdão de que grande parte se encontra transcrita recorreram para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e pretendendo a apreciação das normas a seguir discriminadas, na interpretação que lhes foi conferida pela decisão ora impugnada, os arguidos:-
- D, referentemente aos artigos 118º, nº 4, 119º, números 1, alínea b), 2 e 3, 120º, números 1, alínea c), e 2, 121º, nº 3, 267º e 270º, nº 2, todos do Código Penal, na sua versão originária;
- F, referentemente aos artigos 118º, nº 4, 270º, nº 2, e 267º do Código Penal (citada versão);
- E, referentemente aos artigos 118º, e seu nº 4, 120º, nº 3, 270º, nº 2, e 267º do Código Penal (dita versão), e 666º do Código de Processo Civil;
- C, referentemente aos artigos 118º, e seu nº 4, 120º, nº 3, 270º, nº 2, e 267º do Código Penal (mencionada versão), e 666º do Código de Processo Civil;
- B, referentemente aos artigos 118º, e seu nº 4, 120º, nº 3, 270º, nº 2, 267º, do Código Penal (referida versão) e 666º do Código de Processo Civil;
- A , referentemente aos artigos 118º, nº 4, 120º, nº 3, do Código Penal (aludida versão), e 666º do Código de Processo Civil.
Por despacho de 15 de Outubro de 2001 proferido pela Conselheira Relatora, foi o objecto do recurso limitado às normas do Código Penal indicadas nos requerimentos de interposição dos recursos, desta sorte afastando a norma
ínsita no artº 666º do Código de Processo Penal, já que entendeu que a questão de inconstitucionalidade a ela respeitante não fora suscitada pelos impugnantes.
2. Os ora recorrentes vieram, em conjunto, apresentar a sua alegação, na qual concluíram:-
'1. O Tribunal da Relação de Lisboa interpretou o artigo 120°, n° 1, al. c) do Código Penal (versão de 1982, correspondente ao actual artigo 121°, n° 1, alínea c) no sentido de que a notificação do despacho de pronúncia declarado nulo e de nenhum efeito interrompe a prescrição.
2. Uma notificação esvaziada do seu objecto não pode considerar-se reveladora
‘de uma efectiva e sustentada vontade e capacidade punitiva do próprio Estado’, pelo que a interpretação adoptada viola o fundamento constitucional da prescrição do procedimento criminal: o princípio da necessidade das penas
(artigo 18° da Constituição), e a sua relação com o decurso do tempo.
3. A interpretação do Tribunal da Relação de Lisboa, permitindo a atribuição de efeitos interruptivos a meras notificações, desligadas e autonomizadas dos actos judiciais a que respeitam, é contrária à ideia de controlo do poder punitivo do Estado, violando o direito à segurança (consagrado no artigo 27° da Constituição).
4. O regime acolhido pelo Tribunal da Relação de Lisboa traduz, com consequências desfavoráveis ao arguido em matéria penal, uma solução normativa não materialmente fundada e arbitrária, com violação do princípio da proibição do arbítrio, integrante do princípio do Estado de Direito democrático.
5. O texto da alínea c) do n° 1 do artigo 120° exige, para a interrupção da prescrição, uma notificação e um despacho de pronúncia. Ao ‘deixar cair’ a exigência de um despacho de pronúncia, a interpretação adoptada aceita raciocínios que levam a um ‘resultado interpretativo ultrapassa o sentido possível das palavras e que, por isso, já não tem fundamento no pensamento legislativo’.
6. Em qualquer caso, a interpretação em causa implica ‘uma ponderação constitutiva de soluções jurídicas’, que traduz uma ‘colisão entre as possibilidades interpretativas utilizadas no caso e as autorizadas ao intérprete pela reserva de lei, violando-se o artigo 29°, nºs 1 e 3 [entre nós com a concretização qualificada do artigo l64°, alíneas b) e c) da Constituição]’
(acórdão n° 205/99).
7. A referida interpretação viola ainda as garantias de defesa dos arguidos
(artigo 32°), já que permite a atribuição de efeitos substantivos desfavoráveis
à notificação de actos processuais declarados nulos e de nenhum efeito, em contradição com o princípio de um ‘fair trial’ subjacente à nossa Constituição processual penal.
8. O Tribunal da Relação de Lisboa ponderou a interpretação do n° 4 do artigo
118°, e interpretou-o (em conjugação com o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 270° e no artigo 267°) no sentido de que é aplicável a crimes agravados pelo resultado, e de que o prazo de prescrição do procedimento criminal não começa a correr, em tais crimes, com o resultado que produz a agravação, mas apenas com a verificação do último dos resultados, ainda que já não possa ter eficácia qualificativa.
9. A interpretação acolhida implica que o resultado relevante para efeitos de agravação (o primeiro) não seja relevante para o efeito de iniciar o prazo de prescrição, e que o resultado relevante para o efeito do início do prazo (o
último resultado) não releva para o efeito da agravação.
10. Sendo reconhecido pelo Tribunal Constitucional o papel da certeza jurídica no instituto da prescrição do procedimento criminal (a perseguição criminal tem um tempo próprio e certo para ser desencadeada e promovida’, assim se exprime o acórdão n° 285/99 do Tribunal Constitucional), não é constitucionalmente legítima (por violação do direito à segurança, previsto no artigo 27° da Constituição) uma solução que é fonte de total e intolerável incerteza quanto ao início do prazo de prescrição.
11. Tal solução permite gerar, na prática, situações de verdadeira imprescritibilidade, em contradição com o princípio da necessidade das penas
(artigo 18° da Constituição) e com o direito do arguido a um julgamento dentro de um prazo razoável compatível com as garantias de defesa (n° 2 do artigo 32° da Constituição ).
12. De acordo com a solução em causa, poderia nunca se saber quando se produz o
último resultado, pelo que se deixaria ao puro arbítrio da acusação o início do processo, a duração do inquérito, a dedução de acusação, que poderiam ser adiadas indefinidamente, sem que se pudesse sequer iniciar o prazo de prescrição.
13. A limitação aos factos constantes da acusação e da pronúncia não limita o arbítrio, pela razão indicada na conclusão anterior.
14. Não decorrendo de qualquer fundamento material, a solução desfavorável ao arguido adoptada é ainda inconstitucional por violação do princípio da proibição do arbítrio, integrante do princípio do Estado de Direito democrático (artigo
2°).
15. Ao percorrer a evidente distância que intercede entre o texto do preceito e o resultado obtido, a interpretação adoptada viola flagrantemente os nos 1 e 3 do artigo 29° da Constituição, já que esta ‘exige limites muito precisos a tais processos de interpretação ou criação normativa, não reconhecendo qualquer amplitude criativa ao julgador’ (para utilizar a linguagem do acórdão n° 205/99, do Tribunal Constitucional).
16. Não cabendo ao julgador a opção entre várias alternativas possíveis, não lhe cabe certamente optar por um ‘resultado interpretativo que ultrapassa o sentido possível das palavras e que, por isso, já não tem fundamento no pensamento legislativo’ (cf. o citado acórdão do Tribunal Constitucional).
17. Mesmo que se entenda que a interpretação adoptada pelo Tribunal da Relação de Lisboa se baseou também no n° 1 e não apenas no n° 4 do artigo 118° do Código Penal, a inconstitucionalidade de tal interpretação, com os fundamentos enunciados, permaneceria intocada. Não apenas pelo conteúdo do regime alcançado, mas também pela ilegitimidade constitucional do resultado interpretativo obtido perante o texto do n° 1 do artigo 118°, tendo em conta que se encontra vedada a utilização de interpretação ou criação normativa autónoma do julgador, contra o sentido da reserva absoluta de lei.
18. Termos em que deve revogar-se o acórdão recorrido, julgando-se inconstitucionais o artigo 120° N° 1, alínea c) e os artigos 118° N°s 1 e 4 do Código Penal de 1982 (correspondentes aos actuais N°s 1 e 4 do artº 119° do C.P.), e ainda os artigos 270° N° 2 e 267° do mesmo Código, na interpretação normativa que lhes deu o acórdão da Relação de Lisboa de 24.04.200l'.
O Representante do Ministério Público junto deste Tribunal concluiu do seguinte jeito a sua alegação:-
'1º - Não constitui questão de ‘inconstitucionalidade normativa’ a que se traduz em pretender o recorrente sindicar o processo interpretativo que, em áreas constitucionalmente cobertas pelo princípio da legalidade, teria conduzido o Tribunal ‘a quo’ a realizar uma inovatória e constitutiva ponderação de soluções jurídicas expressa numa interpretação extensiva ou de cariz analógico dos elementos do tipo, ampliando consequentemente o âmbito ‘normal’ ou ‘natural’ de aplicabilidade da ‘fattispecie’ normativa.
2º - Na verdade, nest[e] circunstancialismo, apenas incumbe ao Tribunal Constitucional apreciar o resultado interpretativo alcançado pelo tribunal ‘a quo’, sindicando da possível violação de outros princípios constitucionais, totalmente autónomos e diferenciados da problemática da alegada interpretação
‘errónea’ ou extensiva do tipo penal, bem como sindicar da constitucionalidade do critério normativo explicitamente invocado, em termos de ‘elevada abstracção’, pela decisão recorrida.
3º - Está manifestamente excluída da competência decisória do Tribunal Constitucional a determinação da natureza do crime de propagação de doença contagiosa, p.p. nos artigos 270º e 276º do Código Penal de 1982, definindo previamente se se trata de crime de perigo ou de resultado e, bem assim, se tal tipo envolve, porventura, a produção de um ‘resultado extra-típico relevante’ e em que factos ou eventos se deve precisamente traduzir.
4º - O ‘resultado interpretativo’ alcançado pela decisão recorrida quanto a tais normas não se configura manifestamente como inconstitucional. já que - atenta a ampla margem de discricionariedade legislativa, inquestionavelmente conferida ao legislador penal - nenhum princípio ou preceito da Lei Fundamental impõe uma solução constitucionalmente necessária quanto a tal configuração daquele tipo penal.
5º - Por outro lado, tal resultado interpretativo - traduzido na conexão do entendimento do Tribunal ‘a quo’ acerca da natureza do referido tipo legal de crime com a norma constante do artigo 180º, nº 4, do Código Penal de 1982 - não conduz manifestamente à criação de um ‘crime imprescritível’, já que a duração - embora alongada - do prazo prescricional está conexionada com factos e eventos objectivamente controláveis e, ponderada a natureza de bens jurídicos lesados pelo resultado ‘extra-típico’ relevante, dotados de inquestionável relevância jurídico-criminal.
6º - É inconstitucional o ‘resultado interpretativo’ alcançado pela decisão recorrida quanto à norma constante do artigo 125º, nº 1, alínea c) do Código Penal de 1982, já que a interpretação normativa de tal preceito - ao atribuir eficácia interruptiva do procedimento criminal ao puro acto ‘externo’ de notificação do despacho de pronúncia, independentemente da prolação e da validade de tal decisão judicial - colide com os princípios constitucionais das garantias de defesa e da proporcionalidade e da necessidade das penas.
7º - Termos em que, pelas razões apontadas:- não deverá conhecer-se da questão de constitucionalidade suscitada quanto às normas conjugadas dos artigos 118º, nº 4, 270º e 267º do Código Penal de 1982, por a mesma carecer de carácter normativo; - dada a fundamentação alternativa expressa no acórdão da Relação quanto à decisão que considera não prescrito o procedimento criminal, a subsistência do decidido, quanto àquelas normas, pela decisão impugnada retira interesse processual à apreciação da questão de constitucionalidade suscitada quanto ao artigo 120º, nº 1, alínea c) do Código Penal de 1982; - subsidiariamente - e para o caso de assim não se entender, - deverá ser julgada inconstitucional a interpretação normativa feita do artigo 120º, nº 1, alínea c) do Código Penal'.
As assistentes, por seu turno, remataram assim a sua alegação:-
'A) A decisão recorrida é jurídico-constitucionalmente correcta, tendo o Direito sido correctamente interpretado e aplicado pela Relação de Lisboa. B) A instância recorrida não violou quaisquer princípios ou normativos da Constituição da República Portuguesa nem fez qualquer interpretação normativa constitucionalmente incorrecta'.
Respondendo às questões prévias suscitadas pelo Ministério Público, os recorrentes brandiram pela respectiva improcedência.
Em síntese, no particular atinente à norma do artº 118º, nº 4, do Código Penal, invocaram dois argumentos.
Um, segundo o qual o vício de inconstitucionalidade invocado quanto ao nº 4 do artº 118º do Código Penal, no que se refere à insegurança sobre o início do prazo, não depende de qualquer tarefa interpretativa das normas de direito infra-constitucional, nem de uma tomada de posição sobre a definição do tipo legal de crime, mas apenas da alegada incompatibilidade entre o 'conteúdo da solução aceite no acórdão da Relação, segundo a qual no crime de doença contagiosa agravado pelo resultado a prescrição do procedimento não se inicia antes do último dos ‘resultados’ - independentemente da qualificação do tipo de crime ou da natureza do ‘resultado’ - , que ‘permite gerar, na prática, situações de verdadeira imprescritibilidade, em contradição com o princípio da necessidade das penas (artigo 18º da Constituição), e com o direito do arguido a um julgamento dentro de um prazo razoável compatível com as garantias de defesa
(artigo 32º da Constituição)' e ainda com 'o princípio da proibição de arbítrio
(artigo 2º da Constituição), com independência perante as referidas indagações dogmáticas'.
Outro - este reportado à alegada falta de carácter normativo da inconstitucionalidade por violação do artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição - de harmonia com o qual sustentaram que se está perante uma inconstitucionalidade normativa, à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional, na medida em que: o 'Tribunal da Relação se debruçou de forma expressa sobre a interpretação, em termos gerais e abstractos, do nº 4 do artigo 118º do Código Penal de 1982', indicando o propósito deste preceito, o qual, na óptica daquele Tribunal de 2ª Instância, seria o de restringir, em certos casos, o âmbito da prescrição, por diferimento do início do prazo respectivo; colocou ainda uma outra hipótese interpretativa, a de que não seriam atendíveis os resultados relativamente aos quais o prazo prescricional já tivesse decorrido, não considerando, todavia, que tal tese teria grande viabilidade; entendeu que as circunstâncias agravantes da segunda parte do nº 2 do artigo 270º e da primeira parte dos mesmos número e artigo, conjugadas com o artigo 267º, não são cumuláveis, acrescentando, porém, que cada uma delas não poderia deixar de ser atendida de per si, designadamente aquela em relação à qual o prazo prescricional resulta mais dilatado, o que aponta para a circunstância de estar a discorrer sobre princípios gerais de direito; afastou a crítica de imprescritibilidade à tese em causa, concluindo no sentido da não verificação de alguma inconstitucionalidade naquela interpretação, já que da mesma não resultaria incerteza ou imprescritibilidade, tudo razões pelas quais se tornaria evidente que o que estava em causa eram questões de interpretação normativa, sendo que eles, recorrentes, questionaram o resultado interpretativo alcançado pela Relação.
Finalmente, os recorrentes, no que tange à questão prévia conexionada com a inutilidade do conhecimento do recurso quanto à norma da alínea c) do nº 1 do artº 120º do Código Penal, tal como foi invocada na alegação do Ministério Público, esgrimiram pela sua improcedência, por isso que consideraram que da mesma dependia necessariamente o sentido da decisão sobre a prescrição do procedimento criminal.
Como resulta da transcrição das «conclusões» constantes da alegação dos recorrentes, os mesmos, no recurso para este Tribunal, «abandonaram» a questão da apreciação da questão de inconstitucionalidade respeitante à norma do artº 119º, números 1, alínea b), 2 e 3 do Código Penal (indicada versão de
1982), questão essa constante do requerimento de interposição de recurso formulado pela arguida D, o mesmo sucedendo relativamente à norma do artº 666º do Código de Processo Civil.
Elaborado projecto de acórdão pela Conselheira Relatora, e não logrando o mesmo vencimento, foram os autos conclusos a outro relator para elaboração de decisão.
II
3. Como se viu, o Representante do Ministério Público sustentou que a questão relacionada com o nº 4 do artº 118º do Código Penal (versão de 1982) não se pode configurar como uma questão de constitucionalidade normativa, já que se a mesma viesse a ser conhecida por este Tribunal, como pressuposto da problemática de inconstitucionalidade que lhe foi posta, então o mesmo teria, previamente, de levar a efeito um processo de interpretação de normas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional respeitantes à definição do tipo legal do crime pelo qual os arguidos foram acusados, aqui se compreendendo a questão de saber quais eram a sua natureza, momento da consumação, existência, ou não, de resultados «extra-típicos», momento da sua produção e respectiva relevância, o que não inculcaria um confronto directo com a Constituição do resultado interpretativo levado a efeito pela decisão impugnada, avaliado com base na aplicação de um critério normativo, mas sim uma sindicância dos passos concretos do raciocínio que levou o acórdão recorrido a decidir como decidiu quanto à questão da prescrição.
Assim, e ainda segundo aquele Representante, a linha argumentativa expendida pelos recorrentes baseia-se, em larga medida, na invocação de que a interpretação feita pelo aresto impugnado das normas ora em apreço traduz um resultado interpretativo que ultrapassa o sentido das palavras e conceitos utilizados pelo legislador, implicando, desta arte, 'uma inovatória ponderação constitutiva de soluções jurídicas pelo julgador e expressando a realização de uma interpretação de cariz inovatoriamente ‘extensivo’ da ‘fattispecie’ penal'. Ora, em face de uma tal linha argumentativa, mister se tornará saber se as questões assim suscitadas ainda deterão natureza normativa, em termos de constituírem objecto de objecto de um recurso idóneo de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Após discretear sobre a jurisprudência deste Tribunal em torno de uma tal problemática, o mencionado Representante do Ministério Público concluiu que 'já transcende a natureza ‘normativa’ do recurso de constitucionalidade e o
âmbito dos poderes cognitivos do Tribunal Constitucional a apreciação de invocadas interpretações ‘criativas’ ou ‘extensivas’ de normas penais, sempre que o juiz não tenha minimamente explicitado o critério normativo que seguiu - e implicando neste caso, a apreciação do mérito do recurso, não apenas a fixação do exacto sentido das normas de direito infraconstitucional em causa, mas também a reconstrução do processo interpretativo que os tribunais judiciais terão efectivamente seguido no caso concreto'.
Sequentemente, e vertendo a sua atenção para o caso em apreciação, o Representante do Ministério Público, tocantemente à norma do nº 4 do artº 118º, conjugada com as dos artigos 270º, números 1 e 2, e 267º, todos da versão de
1982 do Código Penal, exprimiu o entendimento de que a tese dos recorrentes levaria a que o Tribunal Constitucional tivesse de 'definir integralmente a natureza do crime tipificado naqueles ulteriores preceitos - tomando expressa (e essencial) posição sobre se se trata de um crime de perigo (...) ou de resultado; e, no primeiro caso, qual o ‘resultado’ produzido, estranho ao tipo legal, que releva (a ‘causação de epidemias por meio de difusão de vírus’? O efeito contagioso e a subsequente morte do primeiro dos infectados? ou a produção ‘global’ de ‘todos os resultados’ lesivos, expressa na morte ‘mais recente’?' Por isso, a realização dessa 'amplíssima tarefa de interpretação das normas de direito infraconstitucional', sem a qual a questão de ilegalidade invocada pelos recorrentes se tornaria ininteligível ou manifestamente improcedente, não pode constituir uma verdadeira 'questão de constitucionalidade suscitada em torno de um específico ‘resultado interpretativo’, susceptível de ser avaliado em função da aplicação de um critério normativo, autónomo relativamente à problemática de uma alegada violação do princípio da legalidade, decorrente de uma errónea ‘interpretação extensiva’ dos elementos do tipo', razão pela qual se deveria ser chegado à conclusão de que, neste particular, não está delineada uma questão de constitucionalidade normativa quanto àqueles normativos, antes pretendendo os recorrentes, com ela, 'vistas as coisas em termos substanciais, sindicar tão-somente da invocada inconstitucionalidade da decisão proferida'.
3.1. Não se exclui, de todo, a ideia segundo a qual, em abstracto, ainda pode constituir uma questão de constitucionalidade normativa, por violação da legalidade, se estiverem tão só em causa pressupostos interpretativos de que resulte uma interpretação analógica.
Todavia, mister será, para tanto, que os pressupostos da interpretação final tenham por base uma opção por critérios gerais normativos que se apresentem por tal sorte que deles decorra a ampliação do sentido da lei por forma a criar uma norma que nela não tenha fundamento.
Daí que se tenha de saber se, no caso em espécie, a interpretação do direito ordinário levada a cabo pelo acórdão tirado no Tribunal da Relação de Lisboa como pressuposto da questão da prescrição tal como aí foi decidida, foi, ela mesma, especificamente orientada por aqueles critérios normativos, e se os recorrentes suscitaram estes ou, pelo contrário, se limitaram a contestar a correcção do processo interpretativo do direito ordinário.
Ora, os impugnantes, ao esgrimirem com a violação do princípio da proibição da analogia, sustentaram-se na consideração segundo a qual a Relação de Lisboa dá por assente a aplicabilidade aos crimes agravados pelo resultado do nº 4 do artº 118º do Código Penal, aceitando não apenas que aquele preceito se aplica a tal categoria de ilícitos, como ainda equipara ao resultado que produz a agravação todos os resultados posteriores. Por isso, o acórdão sob recurso seria incoerente ao considerar como relevante, para efeitos do nº 4 do artº 118º do Código Penal, a ocorrência de um resultado agravante «extra-típico» posterior, estando já antes consumado o crime agravado, pelo que a analogia que decorre da interpretação em tal aresto levada a cabo e que violaria o princípio da legalidade resultava do entendimento de harmonia com o qual o último resultado agravante não seria o resultado típico num crime de perigo agravado pelo resultado, e de que no nº 4 do artº 118º não estaria contido um resultado agravante ao se mencionar no preceito resultado relevante não compreendido no tipo de crime.
Mas, se assim é, então terá de concluir-se que os recorrentes, afinal, aquilo que vêm a questionar se situa num plano de mera qualificação dogmática: o de saber qual será o resultado relevante para efeitos de agravação típica nos crimes de resultado, com a sua projecção para efeitos de prescrição. E, concluindo-se deste modo, concluir-se-á, igualmente, que a questão implica a análise da própria estrutura dos crimes agravados pelo resultado, designadamente quando existe um relacionamento com crimes de perigo.
Isto conduz, como é bom de ver, a uma outra conclusão: a de que, mesmo a entender-se que a qualificação dogmática tivesse partido de toda uma panóplia de interpretação de preceitos legais, então o que é certo é que os recorrentes, quanto aos concretos critérios interpretativos constantes dessa panóplia, não efectuaram qualquer confronto directo com a Constituição, pois que, neste ponto, o que apresentaram foi, como se disse já, uma divergência quanto a esses mesmos critérios interpretativos do direito ordinário.
Por outro lado, como resulta da transcrição acima feita, não se pode dizer que o acórdão recorrido tenha efectuado um critério geral de interpretação do nº 4 do artº 118º do Código Penal segundo o qual - e unicamente -, nos crimes agravados pelo resultado, os resultados atendíveis seriam todos os resultados verificados, já que raciocinou através de critérios interpretativos alternativos
(quer aceitando que o resultado morte só se compreenderia como resultado
«extra-típico», tendo ocorrido a consumação com a difusão da doença ou com o perigo da sua propagação, quer aceitando que o crime agravado pelo resultado só se consumou com o último resultado morte ocorrido, quer, ainda, admitindo que poderiam ocorrer diversos prazos prescricionais em função dos vários resultados).
O que vale por dizer que não se vislumbra no aresto sob censura a adopção de um único critério normativo, generalizável, de interpretação daquele preceito, no que se reporta ao conceito de resultado relevante por ele abrangido. Por isso, não se pode sustentar a invocada violação do princípio da legalidade, feita apenas pela inclusão no nº 4 do artº 118º do resultado nos crimes agravados pelo resultado.
E isto, independentemente de se entrar numa dilucidação mais ou menos profunda sobre a questão de saber se, in casu, se colocaria uma situação em que, no âmbito do controle normativo, cabe ou não ao Tribunal Constitucional a verificação da ocorrência de uma invocada interpretação extensiva ou analógica de uma norma penal, interpretação essa colidente com os princípios da legalidade ou da tipicidade.
Não se conhecerá, por isso, da questão da violação do princípio da legalidade, quando aferida tão só relativamente ao nº 4 do artº 118º do Código Penal.
4. O que se deixou dito não é, contrariamente ao defendido pelo Representante do Ministério Público neste Tribunal, aplicável à contraposição entre o resultado interpretativo que derivou dos artigos 118º, 270º, números 1 e
2, e 267º, todos da versão de 1982 do Código Penal, e os princípios constitucionais da necessidade da pena, das garantias de defesa, da segurança e da proibição do arbítrio.
Na verdade, entende-se que, quanto a esta problemática, foi suscitada uma questão de constitucionalidade normativa. E isso porque dúvidas não se poderão levantar acerca da sustentação que os recorrentes efectuaram quanto à desconformidade constitucional do entendimento (alcançado por interpretação) seguido pelo acórdão prolatado na Relação de Lisboa e de harmonia com o qual resultava do artº 118º que a contagem do prazo do início da prescrição se deveria fazer a partir do último resultado ocorrido (quer seja este o que conduziu à qualificação dos factos como integradores de um mero crime de perigo agravado pelo resultado, quer seja um dos resultados «extra-típicos»). Ora, esse resultado interpretativo é, como facilmente se apreenderá, tomado em si, independentemente da correcção dos processos atinentes à interpretação do direito infra-constitucional quanto aos preceitos que prevêem e punem os crimes de perigo agravados pelo resultado ou da posição que se adoptasse quanto à dogmática sobre essa questão.
Note-se que, neste ponto, ao se fazer referência ao artº 118º, não se aludiu unicamente ao nº 4 do mesmo artigo. E isso, justamente, pela razão de acordo com a qual as recorrentes E, C e B, nos respectivos requerimentos de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, se referiram à intenção de pretenderem ver apreciada a inconstitucionalidade do artº 118º - sem se reportarem exclusivamente ao seu nº 4 - por violação de princípios constitucionais, como os do Estado de direito democrático, para além do da legalidade (ao qual - a esse sim - só reportaram o nº 4), ao que acresce que, na alegação que, conjuntamente, produziram neste Tribunal, esgrimiram no sentido de que a argumentação respeitante do nº 4 do artº 118º valia igualmente para o seu nº 1.
4.1. Conhecer-se-á, em consequência, da questão de constitucionalidade referente ao resultado interpretativo que se extrai dos artigos 118º - e nomeadamente dos seus números 1 e 4 - 270º, números 1 e 2, e
267º, todos do Código Penal, segundo o qual, no crime de propagação de doença contagiosa agravado pelo resultado, o início do prazo de contagem da prescrição do procedimento criminal é referido ao último resultado agravativo.
Anote-se que o conhecimento direccionado aos números 1 e 4 do citado artº 118º tem de repercutir-se mesmo em relação aos recursos dos arguidos A, D e F (que, como se viu, nos respectivos requerimentos de interposição de recurso tão somente fizeram alusão ao nº 4 daquele artigo), por isso que, como se extrai das disposições conjugadas do nº 4 do artº 74º da Lei nº 28/82 e da alínea a) do nº 2 do artº 402º do Código de Processo Penal, o recurso interposto, no particular da abrangência dos mencionados números 1 e 4, pelos arguidos B, C e E aproveitará àqueles primeiros recorrentes.
Adite-se, ainda, que, mesmo que se entendesse que, previamente à prolação do acórdão ora sob recurso, os recorrentes não tinham expressa e concretamente questionado, do ponto de vista da sua harmonia com a Constituição, o nº 1 do artº 118º, dessa circunstância não podia decorrer que, no presente caso, estava vedado ao Tribunal Constitucional conhecer do mesmo artigo na conjugação dos seus números 1 e 2.
É que, por um lado, a questão colocada nos recursos para o Tribunal da Relação conexionava-se com a aplicação do nº 4 do artº 118º (vide a postura assumida pelos assistentes e Ministério Público então recorrentes e que atrás se fez já referência), razão pela qual não era exigível que, na resposta à motivação daqueles recursos, os agora impugnantes e então recorridos dirigissem a sua atenção para um normativo que não estava em causa, questionando a sua incompatibilidade com a Constituição.
Por outro lado, deverá sublinhar-se que um juízo sobre o nº 4 do artº 118º, acarreta que se leve sempre implícita a articulação com um juízo concernente ao seu nº 1, pois que foi assim que a questão foi equacionada na própria decisão impugnada, já que um e outro daqueles números foram mobilizados como fundamentos dessa decisão, enquanto preceitos nos quais, conjugadamente com os artigos 270º, números 1 e 2. e 267º do Código Penal), se ancora uma interpretação segundo a qual, no crime de propagação de doença contagiosa agravado pelo resultado, o prazo de prescrição do procedimento criminal se não inicia enquanto não vier a ocorrer o último resultado agravativo, apesar de o crime se considerar consumado com o primeiro resultado verificado.
5. Também o Representante do Ministério Público junto deste Tribunal suscita a questão da inutilidade do conhecimento da alínea c) do nº 1 do artº
120º do Código Penal.
Para fundar essa sua posição, defende que, 'assentando o acórdão da Relação numa fundamentação alternativa - só haverá interesse processual em apreciar esta questão se o Tribunal Constitucional entender que não deve subsistir a interpretação normativa realizada quanto à norma constante do artigo
118º, nº 4, do Código Penal, conjugada com o referido artigo 270º do Código Penal'. E, se, na sua óptica, daquela interpretação não deveria o Tribunal Constitucional conhecer, então inútil se tornaria a dirimição da questão ligada
à alínea c) do nº 1 do artº 120º.
Entende, porém, o Tribunal que não deve lograr atendimento esta
«questão prévia» suscitada pelo Ministério Público.
Efectivamente, um juízo, aferido com a Constituição, sobre a interpretação que foi conferida à alínea c) do nº 1 do artº 120º do Código Penal sempre relevaria, uma vez que este preceito se reporta a um problema autónomo de contagem do prazo da prescrição, desligado da questão de saber quando esse prazo se iniciaria, sendo que, a efectivar-se um juízo de desconformidade com o Diploma Básico, necessariamente isso haveria que repercutir-se na determinação daquela contagem.
Isso é, aliás, quanto basta para que se não conclua pela inutilidade do conhecimento desta questão.
III
6. Recorda-se aqui, que, relativamente às normas vertidas no artigo
118º (onde se compreenderão os seus números 1 e 4), em conjugação com os artigos
270º, números 1 e 2, e 267º do Código Penal, o respectivo objecto compreende uma interpretação daqueles preceitos de acordo com a qual no crime de propagação de doença contagiosa agravado pelo resultado, o início do prazo de contagem da prescrição do procedimento criminal é referido ao último resultado agravativo.
No equacionamento desta questão não poderá, de todo, passar-se em claro um problema crucial que, justamente, consiste em saber se o instituto da prescrição do procedimento criminal pode ser perspectivado como um valor constitucionalmente atendível, perspectivado como um valor com relevância constitucional, isto é, um valor que contende com regras ou princípios constitucionais.
De facto, se se concluísse pela negativa, era desprovida de razão de ser a questão colocada pelos recorrentes. E era-o, precisamente porque, não detendo uma tal característica, sempre seria lícito ao legislador ordinário
(quer em face de uma literalidade expressa de preceitos, quer em resultado de dimensões interpretativas deles) estatuir no sentido de os conjuntos normativos que, em dado momento se debruçaram sobre a ocorrência e eficácia da prescrição, deixarem de vigorar, ao menos para uma categoria de crimes como os em presença, ou de adoptar sistemas dos quais resultasse, na prática, a possibilidade de a prescrição não ocorrer, também ao menos para essa categoria de crimes.
Ora, não se torna necessário entrar, neste particular, na questão de saber da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da adopção de uma medida legislativa concreta sobre a previsão de imprescritibilidade de certos crimes ou de certas categorias de crimes, cuja gravidade e atentos os valores em causa, dos quais não estariam arredados valores «máximos» (ou de «sensibilidade máxima») acolhidos na Constituição, porventura conduziriam o legislador a afastá-los.
6.1. Haverá que ter em mira, e tão só, a questão da prescritibilidade do procedimento criminal em geral relativamente a crimes que, tal como o dos autos, o ordenamento jurídico sujeita ao instituto da prescrição.
Neste contexto, não se poderá escamotear que na nossa Lei Fundamental não se perspectiva unicamente como relevante, no que à instituição da criminalização diz respeito, o valor de uma perseguição penal repousada na preeminência da danosidade da acção criminosa. Como é sabido, se esse valor
ético-jurídico fundamental deve pautar aquela instituição, também se não deverá olvidar que são igualmente atendíveis princípios ou valores, também de ressonância ético-jurídica fundamental, tais como os da necessidade da pena, de segurança, de certeza, de paz jurídica e até de garantias de defesa dos indiciados agentes do crime.
Aquando da edição da Constituição de 1976, existia já, de há muitos e muitos anos, no ordenamento jurídico português, a figura da prescrição.
Este instituto, reconhecidamente, tentava, como tenta, compatibilizar aquilo que se apelida de exigências de punição «do momento» e o
«tempo de perdão» que o acentuado e inexorável decorrer do tempo implica no sentir da comunidade e que tem feito com que tal instituto tenha uma natureza preponderantemente substantiva ou material, e não meramente adjectiva [assim, Figueiredo Dias, Direito Penal Português (As Consequências Jurídicas do Crime),
1993, 700].
Como refere o mesmo autor (citada obra, 699), 'a limitação temporal da perseguibilidade do facto ou da execução da sanção liga-se a exigências político-criminais claramente ancoradas na teoria das finalidades das sanções criminais e correspondentes, além do mais, à consciência jurídica da comunidade'
(cfr., em idêntico sentido, Gonzalo Quintero Oliveres, Curso de Derecho Penal, Barcelona, 1996, 585 e 586) - importando reconhecer que, também neste ponto, esta obteve tradução em valores e princípios constitucionais, desta forma relevantes para o enquadramento daquela limitação temporal da perseguibilidade do facto.
Ora, a adopção de um instituto de tão longa sedimentação na consciência jurídica e na consciência da própria comunidade não deixa, seguramente, de ser algo a que, objectivamente, deve ser dado acentuado relevo constitucional.
E isto tanto mais que, como assinala José de Faria e Costa, no estudo que serviu de base a uma sua intervenção na Faculdade de Direito da Universidade de Santiago de Compostela aquando da realização da Semana Xurídica en Santiago de Compostela [O direito penal e o tempo (Algumas reflexões dentro do nosso tempo e em redor da prescrição)], os normativos ligados ao instituto da prescrição contendem, 'directa e invasivamente, com a esfera pessoalíssima do cidadão e, de certa maneira, por conseguinte, com alguns direitos fundamentais - pense-se, entre tantos outros, no fundamental direito à paz jurídica'.
Em face de um invocado cometimento de actos delituosos, se se assistisse a um muito dilatado decorrer do tempo entre esse cometimento e a respectiva punição, certamente que a sociedade deixaria de reclamar esta última, ainda que, no «momento» da ocorrência dos factos, tivesse devidamente aquilatado da respectiva gravidade ou danosidade. À necessidade de punição reclamada aquando da ocorrência contrapor-se-ia, com o decurso de um alongado período temporal sem que ela surgisse, um sentimento de «apagamento» daquela necessidade, algo como um «perdão» decorrente da passagem do tempo.
É que, a sociedade, em nome da falada paz jurídica, que é um valor que inquestionavelmente preserva, conta com o reflexo que haverá de ter no ordenamento jurídico o apaziguamento das necessidades de punição que surgiram aquando da ocorrência da acção criminosa.
E, sendo assim, a comunidade haverá de contar com que aquele ordenamento - que durante tantos e tantos anos, deu valor ao decurso do tempo para efeitos de não poder o Estado exercer então o seu poder punitivo - não sofra tão acentuadas modificações por sorte a nele se inserirem normativos
(ainda que alcançados mediante regras interpretativas) de onde resulte que o indicado poder ainda se efectivaria ou exerceria mesmo que, para o comum dos casos (nomeadamente para outras categorias de crimes de punibilidade semelhante), esse poder não pudesse já ser exercido ou, até, que, na prática, pudesse sempre exercer-se sem quaisquer limites temporais.
Não significa isto pretender-se sustentar que têm os arguidos um verdadeiro «direito subjectivo à prescrição». Significa, isso sim, fazer realçar:-
- que o instituto da prescrição se encontra sedimentado no ordenamento jurídico português há variadíssimas décadas, não podendo, por conseguinte, o legislador constituinte de 1976 ter sido alheio à respectiva previsão tal como, em linhas gerais, se desenhava naquele ordenamento, ou seja, não podendo o legislador do Diploma Básico ser indiferente à política criminal e
à dogmática que lhe estava subjacente, no que toca à repercussão que o decurso do tempo tinha quanto à não efectivação do poder punitivo do Estado;
- que existem razões, constitucionalmente fundadas, decorrentes da ideia de certeza e de paz jurídica, do estado de direito democrático e do progressivo esbatimento da necessidade de perseguição penal com o decurso do tempo, à luz dos fins que tal perseguição serve, bem como das próprias garantias de defesa dos arguidos, que levam à consagração de um instituto como aquele;
- que estes valores têm assento constitucional e reclamam, por si, que o citado instituto tenha de ser visto com um próprio valor constitucional para o comum dos ilícitos, designadamente tratando-se de crimes como aquele cujo cometimento é assacado aos ora recorrentes;
- que é razoável que a sociedade, objectivamente considerada, possa entender - ao menos enquanto se mantiverem em vigor na sua essencialidade os preceitos que instituem a prescrição e rejam os respectivos prazos, modos de ocorrência e contagem - que, uma vez decorrido o tempo previsto nesses preceitos, não reclamam perseguição criminal os agentes de factos delituosos cuja prática de há muito ocorreu, o que inculca que também é razoável que aquela sociedade conte com que aquela perseguição não opere mediante normas ou processos interpretativos de onde resulte, na realidade prática, a ineficácia da actuação do instituto da prescrição.
Ora, um valor constitucional assim delineado deve, inequivocamente, ser atendido, e daí dever-se-ão retirar as necessárias consequências quanto à interpretação do conjunto normativo agora em análise.
Pois bem.
6.2. Não desconhece o Tribunal o posicionamento de alguma doutrina, nomeadamente estrangeira, que se tem debruçado a propósito do problema do início do prazo prescricional dos crimes agravados pelo resultado, admitindo a distinção entre os efeitos da consumação para fins de punição e os efeitos para fins de contagem do prazo prescricional, doutrina essa em que se tem adiantado que, para estes últimos, se deve atender ao critério da verificação do último resultado, que ainda é elemento do tipo de ilícito (cfr. Reinhart Maurach, actualização de Karl Heinz Gossel e Heinz Zipf, tradução espanhola, Derecho Penal, Parte general 2, Buenos Aires, 1995, 971 e 972, e Nuvolone e Pisapia, Trattato di Diritto Penale Italiano, 1981, 539).
A questão que se coloca, porém, é a de saber se, em face do ordenamento jurídico português, encimado por uma lei fundamental tal como a nossa Constituição, é defensável uma interpretação que leve a que, em crimes como o que está em causa, apesar de consumados (com a correspondente possibilidade de imediata perseguição penal) e, logo, com um dos resultados agravativos verificado, se deva sobrestar no início do prazo de prescrição do procedimento criminal até que venha a ocorrer o último dos resultados agravativos, independentemente do momento em que este se vier a verificar. Isto, sendo certo que tal momento pode vir a verificar-se apenas muitos anos - ou mesmo largas décadas - depois, não só do momento da acção, como da verificação de todos os elementos típicos (que ocorre com o primeiro resultado) do crime, importando frisar que este Tribunal se tem de limitar ao controle da conformidade constitucional da norma em causa (considerando, sub specie constitutionis, designadamente, os efeitos que dela podem decorrer), com independência da data específica em que, no caso vertente, a concreta acusação veio a ser deduzida ou, mesmo, da ocorrência desta fase processual.
6.2.1. Poder-se-ia esgrimir, em favor da defesa de uma tal tese, com argumentos baseados numa inevitável correlação entre a perigosidade da acção e a acentuada danosidade dos efeitos dela decorrentes, invocadamente imputáveis, objectiva e subjectivamente, ao indiciado agente.
Simplesmente, uma tal ordem de razões consideraria, relevantemente, o princípio da necessidade da pena atendendo apenas ao «momento» da produção de efeitos, desconsiderando a circunstância de a indiciária actuação do arguido pode já estar de há muito diluída no tempo e, o que é mais, o valor constitucionalmente atendível que deve ser dado ao instituto da prescrição, com as facetas e decorrências a que acima se fez referência.
Aliás, pode dizer-se que, em certa medida, a verificação de obstáculos à perseguição criminal - como o decurso de um prazo prescricional ou o anterior julgamento do facto, embora por crime menos grave (ou por tentativa)
- importa sempre, como sua consequência natural, restrições às consequências que decorreriam de uma prossecução ilimitada dos fins dessa perseguição criminal
(incluindo o da reafirmação contrafáctica dos bens jurídicos protegidos, em face de uma danosidade social ainda sentida e que foi efeito da indiciada conduta do agente). Não podem, pois, extrair-se directamente consequências da invocação daqueles fins ou desta danosidade, sem ponderação do enquadramento e dos valores que explicam a consagração dos falados obstáculos ou causas impeditivas da perseguição penal, como é o caso da prescrição do procedimento criminal.
6.2.2. Não se esgrima, também, à guisa de arredar os valores da certeza e segurança, com um argumento segundo o qual eles não seriam postergados, já que haveria de constar da acusação ou da pronúncia a indicação dos resultados agravativos ocorridos posteriormente ao evento agravativo surgido em primeiro lugar e em relação ao qual já operara o prazo prescricional, pelo que, e segundo este argumento, sempre se poderia saber qual o termo a quo a partir do qual a prescrição se haveria de contar.
É que, precisamente, o problema é independente da fase processual concreta, isto é, e tal qual como foi delineado o objecto da presente questão, coloca-se a montante, já que, se, no ilícito de que se cura, a prescrição não operar desde o primeiro resultado agravativo indiciariamente apurado - abrindo-se, assim, a possibilidade de se atender a resultados agravativos ocorridos posteriormente - sempre ficará em aberto saber, se houver uma multiplicidade de eventos agravativos, quando poderá iniciar-se o dies a quo, o que, até numa consequência processual prática quiçá figurável, poderia levar a que uma inércia estadual (por razões não dolosas, obviamente) do exercício da acção penal, resultante de diversíssimos factores, viesse a pôr em causa valores como o da certeza, segurança, paz jurídica, necessidade de imposição de pena, garantias de defesa do arguido e proporcionalidade.
6.2.3. Na verdade, uma interpretação do conjunto normativo de que agora tratamos, considerada na sua «nudez» (isto é, independentemente do relacionamento com a circunstância de terem de constar da acusação ou da pronúncia os primeiro e posteriores eventos agravativos), poderá, na prática, conduzir a verdadeiras situações de imprescritibilidade, ou, na sua relevância jurídico-constitucional, muito próximas dela, por ter suspenso o termo inicial do prazo de prescrição até ao último dos resultados agravativos, apesar de o crime já estar consumado com o primeiro resultado (sendo, aliás, que esta última circunstância torna ilegítimo qualquer argumento que, ex adverso e apenas no plano do direito infra-constitucional, se pretendesse extrair do paralelo com o critério legal para os crimes continuados, para os crimes permanentes e para os crimes habituais).
Efectivamente, a ocorrência de outros eventos agravativos muito para além da ocorrência do primeiro (que já determinara a consumação do crime agravado pelo resultado) levaria, na tese subjacente àquela interpretação, a uma indeterminação do dies a quo do início do prazo prescricional, indeterminação essa que era passível de se prolongar ad infinitum, não obstante a acção indiciariamente ilícita, causadora daqueles posteriores eventos agravativos, ter já de há muito ocorrido.
Uma tal insegurança e incerteza, repercutíveis na paz jurídica que deve ser inerente ao inflexível decurso do tempo, aliadas, assim, à objectiva diminuição de garantias de defesa dos arguidos, mostra-se incompatível com aqueles mesmos princípios constitucionalmente acolhidos.
Não se divisam, pois, argumentos que abalem a valia de protecção dos valores constitucionais, já acima focados, que devem ser tidos em atenção para se considerar o instituto da prescrição como um valor, também ele constitucional e atendível, e que seria posto em causa com um resultado interpretativo tal como o levado a efeito pela decisão sub iudicio.
Desta arte, concluir-se-á pela desconformidade constitucional do conjunto normativo constituído pela conjugação dos artigos 118º (seus números 1 e 4), 270º, números 1 e 2, e 267º do Código Penal, na interpretação segundo a qual, no crime de propagação de doença contagiosa agravado pelo resultado, o início do prazo de contagem da prescrição do procedimento criminal é referido ao
último resultado agravativo ocorrido.
IV
7. Por fim, é chegada a ocasião de saber se a interpretação que foi dada à norma da alínea a) do nº 1 do artº 120º do Código Penal - interpretação essa de acordo com a qual a interrupção do prazo prescricional se há-de ainda ter como verificada a partir da notificação de um despacho de pronúncia, não obstante ter este sido considerado posteriormente inválido - é conflituante com normas ou princípios constantes da Constituição.
É sabido que a interrupção da prescrição tem como fundamento a existência de actos processuais que, ocorridos em normalidade, levam ao conhecimento do arguido a vontade de exercício da acção punitiva do Estado, pelo que o decurso do tempo contado desde o assacado cometimento da infracção não poderá, sem mais, ser tido em conta para efeitos de contagem ininterrupta do prazo prescricional, não obstante as vicissitudes processuais normais, se o arguido soube, concretamente, daquela vontade de exercício.
Se assim não fosse, e porque um processamento acarreta, necessariamente, um dispêndio temporal, então pôr-se-ia em causa o próprio fim do processo.
Simplesmente, ponto é que os actos processuais normais por meio dos quais se dá ao arguido conhecimento da vontade do Estado em exercer a sua acção punitiva sejam, eles mesmos, dotados de validade.
Não bastará, aqui, atender-se à ocorrência de uma mera formalidade tabeliónica e instrumental desprendida da substancial validade do acto por intermédio do qual o Estado manifesta a sua vontade de punir. Fazer o contrário seria incorrer num campo aberto a possibilidades manipulatórias, arbitrárias, artificiais e desproporcionadas ao fim que subjazia à concreta causa de interrupção da prescrição, qual seja, precisamente, a da validade de uma pronúncia.
E seria isso que poderia decorrer se se acolhesse uma interpretação tal como a efectuada pela Relação de Lisboa.
Essa interpretação, mostra-se, por isso, e porque acentuadamente desproporcionada, ofensiva do nº 2 do artigo 18º da Constituição.
V
Em face do exposto, o Tribunal decide:-
a) Não tomar conhecimento da questão relativa à violação do princípio da legalidade, quando aferida relativamente ao nº 4 do artº 118º do Código Penal;
b) Julgar improcedente as questões prévias, suscitadas pelo Representante do Ministério Público junto deste Tribunal, concernentemente ao resultado interpretativo que se extrai dos artigos 118º, nº 4, 270º, números 1 e
2, e 267º, todos do Código Penal, segundo o qual, no crime de propagação de doença contagiosa agravado pelo resultado, o início do prazo de contagem da prescrição do procedimento criminal é referido ao último resultado agravativo, e
à inutilidade do conhecimento da norma ínsita na alínea b) do nº 1 do artº 120º, do mesmo Código;
c) Julgar inconstitucional, por ofensa dos princípios da paz jurídica, da certeza, da segurança, da necessidade de imposição de pena e da proporcionalidade, que se extraem dos artigos 2º, 18º, nº 2, 29º e 32º, nº 2, da Constituição, o conjunto normativo resultante das normas constantes dos artigos
118º (seus números 1 e 4), 270º, números 1 e 2, e 207º, todos do Código Penal, na interpretação segundo a qual, no crime de propagação de doença contagiosa agravado pelo resultado, o início do prazo de contagem da prescrição do procedimento criminal é referido ao último resultado agravativo ocorrido;
d) Julgar inconstitucional, por violação do nº 2 do artigo 18º da Constituição, a norma vertida na alínea c) do nº 1 do artº 120º do Código Penal, quando interpretada no sentido de a interrupção do prazo prescricional se haver ainda de ter como verificada a partir da notificação de um despacho de pronúncia, não obstante ter este sido considerado posteriormente inválido;
e) Em consequência, conceder parcial provimento aos recursos, determinando a revogação do acórdão impugnado, a fim de o mesmo ser reformado em consonância com os juízos de inconstitucionalidade agora efectuados;
f) Condenar as assistentes nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em 15 unidades de conta. Lisboa, 20 de Novembro de 2002 Bravo Serra Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma (vencida quanto à alínea c) e com declaração de voto quanto
à fundamentação do conhecimento do objecto do recurso constante dessa alínea da decisão, nos termos da declaração de voto junta) Guilherme da Fonseca (vencido, nos termos da declaração de voto da Exª Consª Maria Fernanda Palma) José Manuel Cardoso da Costa (com a seguinte ressalva: No tocante ao não conhecimento da questão da eventual violação do princípio da legalidade pelo nº
4 do artigo 118º do Código Penal, acompanhei a conclusão do acórdão, mas não pelas razões nele expostas, e antes em conformidade com a posição que sobre esse tipo de problemas venho assumindo, desde a declaração de voto aposta ao Acórdão nº 205/99). Declaração de voto
I Introdução
1. Tendo sido a Relatora originária deste processo, votei vencida o presente Acórdão quanto à alínea c) da decisão, a qual considerou inconstitucional o 'conjunto normativo resultante das normas constantes dos artigos 118º (seus números 1 e 4), 270º, números 1 e 2, e 267º, todos do Código Penal, na versão de 1982, na interpretação segundo a qual, no crime de propagação contagiosa agravado pelo resultado, o início do prazo de contagem da prescrição do procedimento criminal é referido ao último resultado agravativo ocorrido'. Entendo que tal inconstitucionalidade não se verifica, como procurarei demonstrar. E embora tenha sido essa parte da decisão que justificou a minha divergência da maioria, também discordei do modo como o Tribunal Constitucional fundamentou o conhecimento da questão de constitucionalidade da norma do artigo
118º, nº 1, do Código Penal. Como essa questão é prévia, começarei por me pronunciar sobre ela.
II O objecto do recurso
2. A questão de constitucionalidade formulada de modo mais explícito pelos recorrentes junto do Tribunal Constitucional é a de a interpretação do artigo 118º, nº 4, do Código Penal de 1982 (artigo 119º, nº 4, na actual redacção) no sentido de se considerar 'resultado não compreendido no tipo de crime' o último evento decorrente dos actos executivos do crime de propagação de doença contagiosa corresponder a uma aplicação analógica proibida. A pretensa analogia consistiria em identificar como resultados não compreendidos no tipo de crime (de perigo concreto, previsto no artigo 270º, nº 1, do Código Penal de 1982 na sua versão originária e presentemente, sem significativas alterações, no artigo 283º, nº 1) os resultados correspondentes a uma agravação pelo resultado (mortes de pessoas contaminadas com SIDA) que seriam posteriores
à consumação do crime agravado pelo resultado (que se basta, nos termos do artigo 267º do Código Penal de 1982, com uma só morte ou ofensa grave – solução que ainda se mantém por força do artigo 285º). Na óptica dos recorrentes, o crime agravado pelo resultado ter-se-á consumado com a primeira morte e o prazo prescricional deve ter começado a correr a partir desse evento, por força do nº 1 do artigo 118º do Código Penal de 1982 (artigo
119º, n º 1, na versão actual). Os outros eventos (as restantes mortes) já não seriam relevantes para a consumação típica e, alegadamente, não poderiam ser tidos em conta na determinação do início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal. Os recorrentes sustentaram ainda, também expressamente, que uma interpretação daquele mesmo artigo 118º, nº 4, que permitisse a contagem do prazo prescricional a partir do último resultado agravante (na tese dos recorrentes, do último resultado de um facto já consumado não necessário para a agravação pelo resultado) conduziria a uma verdadeira imprescritibilidade e violaria vários princípios constitucionais (consagrados nos artigos 2º, 18º, nº 2, 29º e
32º, nº 2, da Constituição). Esta última tese atribuía ao artigo 118º, nº 4, várias dimensões de inconstitucionalidade que, no fundo, dependiam de uma prévia interpretação do artigo 118º, nº 1, do Código Penal de 1982. Pelas razões que constam do presente Acórdão e que correspondem, no essencial, ao entendimento que expendi no meu projecto, a questão da violação do princípio da legalidade não foi conhecida. No entanto, tomou-se conhecimento da segunda questão (a de uma efectiva imprescritibilidade por violação dos princípios do Estado de direito, da segurança jurídica, da necessidade da pena e de outros princípios constitucionais), apesar de a ratio decidendi do Acórdão da Relação extravasar uma interpretação do artigo 118º, nº 4, apoiando-se, igualmente, em alternativa, no artigo 118º, nº 1. Resultava do meu projecto que, na invocação da inconstitucionalidade do artigo
118º, nº 4, estava implícita, necessariamente, a inconstitucionalidade de uma interpretação do próprio artigo 118º, nº 1, nos termos da qual, nos crimes agravados pelo resultado, o último resultado agravante poderia ser determinante da consumação e do início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal. Outro entendimento, isto é, a tese de que os recorrentes só teriam suscitado, verdadeiramente, a inconstitucionalidade do nº 4 do artigo 118º em face do princípio da legalidade, desconheceria que a invocação da inconstitucionalidade dessa norma pressupunha obrigatoriamente, na lógica dos recorrentes, que não seria também possível interpretar o artigo 118º, nº 1, de modo a que o último resultado agravante fosse o critério de consumação do crime e portanto do início da contagem do prazo prescricional. Foi nesta base que, apesar de a questão de constitucionalidade só ter sido formulada de modo expresso pelos recorrentes em relação ao artigo 118º, nº 4, entendi que havia uma conexão necessária entre as duas normas e que era essa conexão que gerava a questão de constitucionalidade. Por isso, admiti tomar conhecimento da globalidade da questão de constitucionalidade e não restringi o objecto do recurso ao artigo 118º, nº 4, em articulação com a violação do princípio da legalidade, diferentemente do que o Ministério Público propugnou.
3. Assim, concluí que o Tribunal Constitucional não poderia, por razões estritamente formais, deixar de tomar conhecimento da questão da constituciona-lidade da interpretação do artigo 118º, nº 1, do Código Penal, pressuposta pela Relação, apesar de tal norma nunca ter sido expressamente questionada pelos recorrentes durante o processo e nem sequer o ter sido nos vários recursos para o Tribunal Constitucional, alguns dos quais se referiram vagamente ao artigo 118º sem indicar quaisquer números. E concluí desse modo por entender que a questão que os recorrentes suscitavam só estava reduzida ao artigo 118º, nº 4, quanto ao problema da legalidade – isto é, enquanto os recorrentes defendiam que teria sido feita uma aplicação analógica do artigo
118º, nº 4, a crimes agravados pelo resultado. Mas já quando afirmavam que, a contar-se o prazo prescricional a partir da verificação do último resultado morte ocorrido, se estaria a admitir uma imprescritibilidade de facto e a atentar contra a segurança jurídica (e outros princípios), os recorrentes questionavam a constitucionalidade da solução normativa global. Segundo essa solução normativa, nos crimes agravados pelo resultado, o último evento (neste caso, a morte) que revele indícios de um nexo causal relevante para a qualificação típica determinaria o início da contagem do prazo prescricional. E só tal solução normativa abarca a ratio decidendi do Acórdão da Relação, segundo o qual o início da contagem do prazo prescricional se afere pelo último resultado, quer este se considere 'resultado relevante não compreendido no tipo de crime' (artigo 118º, nº 4) quer se classifique como resultado típico do crime agravado pelo resultado (artigo 118º, nº 1). Assim, apesar de os recorrentes não terem identificado todas as normas implicadas na ratio decidendi do Acórdão da Relação, na formulação da questão de constitucionalidade estava implícita a inconstitucionalidade do artigo 118º, nº
1. Este entendimento substancial, que não cinge as questões normativas aos preceitos invocados e admite uma certa construção interpretativa do juiz constitucional é aquele que tenho defendido sempre no Tribunal Constitucional contra outra perspectiva mais formalista (veja-se, por exemplo, entre outros casos, o meu voto de vencida no Acórdão nº 116/2002, de 13 de Março, D.R., II Série, de 8 de Maio de 2002, em que, tendo sido a primitiva Relatora, fui vencida, por o Tribunal Constitucional ter considerado não dever tomar conhecimento do objecto do recurso por faltar 'a indicação [do] segmento ou – caso não estivesse em causa uma parte mas apenas uma determinada interpretação – de enunciação do sentido normativo que a recorrente reputava inconstitucional
...'). Entre este rigor cirúrgico-formal e a presente visão substancialista vai um abismo. Para essa outra tendência mais formalista, será difícil reconhecer que foi suscitada uma questão de constitucionalidade normativa sem indicação precisa do preceito nem directa colocação da questão em conjugação com um determinado preceito legal ou até mesmo sem especificação do 'segmento', 'parte' ou
'interpretação' alegadamente inconstitucionais. Ora, no presente processo, nenhum dos recorrentes alguma vez suscitou, explicitamente, a inconstitucionalidade do início da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal a partir da verificação do último resultado agravante no crime agravado pelo resultado previsto conjugadamente nos artigos 270 e 267º do Código Penal de 1982, em conexão com o artigo 118º, nº 1, do mesmo Código. Os recorrentes apenas mencionaram o artigo 118º, nº 4, ou, vagamente, o artigo 118º
(sem indicação de números, partes ou segmentos), referindo sempre a interpretação aplicada na decisão recorrida sem procederem à enunciação dessa interpretação e afirmando até que a questão de constitucionalidade suscitada seria a mesma que constava da resposta ao parecer do Ministério Público – onde apenas se questionava a constitucionalidade do artigo 118º, nº 4 (de facto, a conexão com o artigo 118º, nº 1, surgiu apenas no Acórdão da Relação). Esta falta de precisão dos recorrentes na formulação da questão de constitucionalidade em conexão com os preceitos não é, no entanto, obstáculo decisivo ao conhecimento da eventual inconstitucionalidade de uma norma que resulte da conjugação dos nºs 1 e 4 do artigo 118º do Código Penal de 1982, segundo uma linha de orientação que, como se pode constatar objectivamente, sempre segui, sendo várias vezes vencida. Assim, na minha perspectiva, estaria ultrapassada a dúvida sobre a utilidade do presente recurso, que poderia justificar-se em face de uma fundamentação alternativa do Acórdão da Relação, nos termos da qual seria aplicável ao caso o artigo 118º, nº 1, numa certa interpretação, ou o artigo 118º, nº 4, noutra interpretação – mas implicando ambas a mesma consequência quanto à contagem do prazo prescricional. Só pelas razões anteriormente referidas concordo com a decisão constante do presente Acórdão na parte em que conclui pelo conhecimento da questão de constitucionalidade referindo-a também ao artigo 118º, nº 1, do Código Penal de
1982, apesar de os recorrentes não terem mencionado, no recurso para o Tribunal Constitucional, tal norma. Mas já não posso considerar pertinente que se eleja como argumento fundamental para o conhecimento daquela questão a circunstância de alguns recorrentes terem indicado, no recurso para o Tribunal Constitucional, o artigo 118º sem mencionarem número algum. Este argumento é, por si só, à margem da interpretação da lógica intrínseca do pedido, um convite a que se passe a não indicar os números dos artigos cuja inconstitucionalidade é suscitada. Apenas com base na invocação do artigo 118º e na interpretação deste artigo levada a cabo pela decisão recorrida nada se poderia concluir quanto à norma questionada. Só mediante um trabalho de interpretação construtiva, como o que empreendi no meu projecto (vencido), com base no recurso que formulou a questão a partir do artigo 118º, nº 4, se poderia delimitar o objecto do recurso nos termos do presente Acórdão. Concluir que a referência ao artigo 118º, sem números, e em conexão com todos os princípios constitucionais considerados violados (incluindo o artigo 29º), constitui modo adequado de suscitar a questão de constitucionalidade é negar a evidência de que a questão não está só por essa razão formulada. E tal conclusão só pode ser deduzida através de uma metodologia não formal de que o Tribunal Constitucional não se prevaleceu noutros casos, usando então de um frio rigor formal (não estando sequer em causa, em vários desses casos, algo tão vago como a indicação abstracta de um artigo da lei que comporta, entre os seus números e alíneas, seis normas diferenciadas sobre prescrição, contendo a regra geral e regras sobre crimes permanentes, crimes continuados e habituais, tentativa, cumplicidade e crimes em que a consumação formal se distingue do exaurimento ou consumação material).
III A questão de constitucionalidade derivada da articulação dos nºs 4 e 1 do artigo 118º do Código Penal de 1982
(nºs 4 e 1 do artigo 119º, na versão actual): a invocada imprescritibilidade prática, a estrutura do ilícito e a acção penal
4. O problema de constitucionalidade tratado neste Acórdão foi, assim, a violação de vários preceitos e princípios constitucionais pela contagem do início da prescrição do procedimento criminal no crime (agravado pelo resultado) previsto nos artigos 270º e 267º do Código Penal de 1982 (283º e
285º, na versão actual) a partir do último resultado agravante, seja ele classificado como determinante da consumação (artigo 118º, nº 1) seja ele considerado 'resultado relevante não compreendido no tipo de crime' (artigo
118º, nº 4). Foi a esta questão que o Tribunal Constitucional respondeu, considerando que com uma tal possibilidade interpretativa estariam violados os princípios da paz jurídica, da certeza, da segurança, da necessidade de imposição de pena, das garantias de defesa do arguido e da proporcionalidade, que se extraem dos artigos 2º, 18º, nº 2, 29º e 32º da Constituição.
5. O presente Acórdão parte da consideração de que a prescrição tem alguma protecção constitucional, embora rejeite um direito subjectivo à prescrição e não exclua sequer que a Constituição se compatibilize com a imprescritibilidade de certos crimes graves. Segundo a tese do Acórdão, é proibida constitucionalmente a imprescritibilidade nos crimes sem excepcional gravidade. Todavia, o Acórdão não explicita qual é o efectivo apoio constitucional para distinguir casos, caindo num certo 'impressionismo jurídico', gerador de insegurança e incerteza para o legislador, para os tribunais e para os cidadãos em geral. O que torna afinal constitucionalmente inaceitável a imprescritibilidade numa certa medida e em certos casos, não a tornando igualmente inadmissível noutra medida e noutros casos? Não tendo o Tribunal Constitucional de se pronunciar sobre tal questão, pois não se confrontou com qualquer norma que previsse a imprescritibilidade no caso sub judicio, veio a ter de enfrentá-la indirectamente por ter admitido que se estaria perante a denominada
'imprescritibilidade prática'. Mas, obviamente, a 'imprescritibilidade prática', a existir, só estará vedada constitucionalmente se estiver proibida a imprescritibilidade pura e simples. O esclarecimento dos fundamentos constitucionais de tal proibição, que para o Tribunal Constitucional não tem de ser generalizada, é essencial para a avaliação da pertinência do apelo à 'imprescritibilidade prática'. Não basta referir uma tradição de décadas para concluir que 'o legislador constituinte de
1976 [não pode] ter sido alheio à ... previsão [da prescrição]'. Uma tal
'constitucionalização do direito ordinário' cai por terra quando se não exclui que haja crimes imprescritíveis. A não delimitação do âmbito do proibido torna obscuro o respectivo fundamento. Afirmar que a prescrição tem uma certa relevância constitucional, fora do contexto de uma norma que prescreva a imprescritibilidade, sem fornecer critérios sobre limites máximos, cria a já referida incerteza no sistema jurídico. Não sabemos, na verdade, qual é o ponto de colisão das normas em crise com a Constituição.
6. De qualquer modo, a inconstitucionalidade material por violação dos artigos da Constituição precedentemente citados apoia-se no argumento de as normas em crise suscitarem uma 'imprescritibilidade prática' (isto é, de elas permitirem uma perseguição vitalícia dos arguidos pela prática de factos que ocorreram há muito tempo), apesar de não se excluir a compatibilidade com a Constituição da imprescritibilidade de certos crimes. Ora, tal tese, para além de não revelar qualquer apoio claro em princípios ou normas constitucionais, incorre numa petição do princípio. Tal petição de princípio é a seguinte: dá-se como demonstrado que um certo evento, que pode ser considerado autonomamente resultado típico (neste caso a última morte), não pode ser considerado resultado típico e nem sequer resultado material lesivo do bem jurídico protegido (isto é, 'resultado não compreendido pelo tipo de crime'), e que o crime já se consumou e exauriu com a primeira das mortes, para se demonstrar que o tempo que medeia entre a consumação aferida pelo primeiro resultado e o termo da contagem do prazo prescricional, cujo início foi determinado pelo último resultado, é desproporcionado. Não se demonstra, porém, que a Constituição impõe que o último resultado num crime com uma pluralidade de resultados não seja parte integrante desse crime ou não assinale o termo da sua consumação ou não coincida com o seu exaurimento (relevante, para além da prescrição, em matérias tão diferenciadas como a determinação do lugar da prática do facto e a desistência – cfr. os artigos 7º, nº 1, e 24º, nº 1, respectivamente, do Código Penal). Há, assim, uma ontologia, cuja validade se ignora, em nome da qual, no crime de propagação de doença contagiosa de que resultem várias mortes, o desvalor do resultado se esgota com a primeira dessas mortes para efeitos de prescrição. Sem uma demonstração da especificidade deste tipo de crime, em termos de esgotamento do ilícito, não se vê como o problema da dilação temporal surgirá aqui de modo diferente do que decorre de vários outros tipos ou mesmo espécies de crimes – sejam de resultado, agravados pelo resultado, comportem uma pluralidade de resultados ou apresentem um exaurimento complexo ou plúrimo – em que medeie um período de tempo considerável entre o termo da execução e a verificação do respectivo resultado. Afirmar, pelo contrário, que o problema se coloca de forma diferente, por exemplo, num crime de dano singular e num crime de perigo comum agravado pelo resultado é criar um círculo vicioso. Com efeito, não é por haver já um resultado típico nos crimes agravados pelo resultado que se alega que, nesses crimes, a contagem do prazo prescricional não pode aguardar a produção de outros eventos (agravantes). É, diferentemente, por causa da dilação temporal. Sem ela não se vislumbra o efeito de 'imprescritibilidade prática' que se pretende remover através do juízo de inconstitucionalidade. Ora, nesse plano, não existe nenhuma diferença relevante em relação ao crime singular de dano em que o resultado se concretize no termo de um processo causal complexo e moroso. Dizendo de outro modo, a questão que se coloca no caso dos autos respeita à extensão de determinados processos causais e é independente da
(relevantíssima para outros efeitos) questão de ter morrido uma ou vinte pessoas infectadas com o vírus da SIDA. A comprovação empírica do que se afirmou é singularmente simples no caso em análise: se da conduta resultasse apenas a morte de uma pessoa infectada pelo vírus da SIDA – a última a ocorrer – ainda assim se esperaria durante o prazo de décadas de que se fala no Acórdão, no caso de a infecção com o vírus demorar esse tempo até produzir a morte, sem que isso se devesse, notoriamente, a uma pluralidade de eventos ou à consideração de resultados dispensáveis para a agravação pelo resultado. Em suma, não é à pluralidade de eventos que se pode atribuir a dilação temporal mas sim à complexidade e à morosidade de determinados processos executivos e a um efeito à distância na sua concretização.
7. A referência da contagem do prazo prescricional ao primeiro resultado implica uma desconsideração relativa do desvalor do resultado no sistema penal, o que só poderá desencadear como contrapartida político-criminal uma intensificação da punição da tentativa ou dos crimes de perigo para evitar situações de impunidade em face de prazos prescricionais mais curtos relativamente a crimes em que os resultados se produzem num prazo temporal longo. A contagem do prazo prescricional a partir da consumação material do crime ou da produção do último evento lesivo do bem jurídico é, por conseguinte, um modo de evitar o agravamento da tutela penal antecipada (em que a tentativa e os crimes de perigo se consubstanciam). A consideração dos crimes de perigo agravados pelo resultado com múltiplos resultados agravantes como um caso especial, em que o prazo de prescrição se começaria a contar logo com o primeiro resultado, não sendo relevantes para esse início de contagem os últimos resultados (por causa da eventual dilação temporal), ignora a repercussão na intensidade do desvalor da acção e do resultado desses outros resultados: uma vez determinada a prescrição em função do momento da ocorrência do primeiro, eles não mereceriam já protecção jurídico-penal.
8. O reconhecimento – pressuposto pelo presente Acórdão – de uma especialidade que se traduz na desconsideração de eventos lesivos na determinação da contagem do prazo prescricional nos crimes agravados pelo resultado com múltiplos resultados gera, aliás, um efeito prático de incerteza, insegurança e, no limite, ausência de tutela do bem jurídico. Basta conceber a hipótese de o poder punitivo não se ter exercido antes, não por negligência (porventura imputável ao Ministério Público), mas porque tal resultado nem sequer pôde ser conhecido ou atribuído no âmbito da investigação criminal. Nesta hipótese, o agente do crime obterá o inesperado 'brinde' de, por acréscimo, também não poder ser perseguido pela produção do segundo resultado, desde que o primeiro venha entretanto a ser conhecido ou atribuído indiciariamente à sua conduta. Além disso, este argumento é, como se viu, rigorosamente estranho à existência de uma pluralidade de resultados: se o último resultado for o único, o termo a quo começa a contar igualmente tarde e, pelos vistos, essa solução não será inconstitucional. Neste contexto, repete-se, a existência de uma pluralidade de resultados funciona como um injustificado prémio para o agente cujo comportamento é mais grave e lesivo, não se vendo como se concilia tal solução com o princípio da igualdade, de que se extrai uma exigência de proporcionalidade entre o crime e a pena ou, mais amplamente, entre o crime e a punição, nas suas dimensões substantiva e processual (artigo 13º, nº 1, da Constituição). A irrelevância de uma morte potencialmente imputável à conduta do agente em sede de responsabilização penal, a pretexto de que outra morte basta para considerar o crime consumado, colide com as intuições éticas mais elementares da comunidade e com os anseios mínimos de justiça que devem ser acolhidos por um Estado de direito democrático. Esta afirmação não corresponde sequer a aceitar, obrigatoriamente, uma concepção retributiva das penas, bastando que se perfilhe uma perspectiva preventiva geral de integração (que parece ser acolhida no artigo 40º, nº 1, do Código Penal e é legitimada pelo artigo 18º, nº 2, da Constituição) para se não poder ignorar, obviamente, a lesão múltipla do bem jurídico em sede de perseguição penal.
9. A necessidade de o sistema penal não desconsiderar a protecção dos bens jurídicos impede que se descortine o fundamento para recusar a perseguição penal dos restantes eventos, que podem ser 'transformados' em resultados típicos para efeito de perseguição autónoma (tal como o Acórdão recorrido pondera, ao afirmar, a fls. 19.219, 'temos, tão-só, um crime agravado por todos os resultados, os quais, sendo assim relevantes, todos contam para o início do prazo. Neste contexto, o mais que poderia extrair-se é que, eventualmente, não serão atendíveis os resultados em relação aos quais o prazo prescricional já tenha decorrido'). Se a prescrição se contasse a partir do primeiro resultado, não se vê por que razão haveria de abranger resultados posteriores que por si só configuram, um a um, crimes agravados pelo resultado e que só deixam de configurar tais crimes na medida em que estejam subordinados à unidade típica construída em torno do primeiro resultado. Aliás, nem sequer se pode identificar a priori o primeiro resultado como aquele que determina a agravação. De acordo com o método hoje expressamente acolhido no Código Penal a propósito da qualificação do furto, deve concluir-se que, concorrendo várias circunstâncias que têm peso agravante modificativo idêntico, deve ser considerada para efeito de escolha da penalidade (ou 'moldura penal') aplicável a que tiver efeito agravante mais forte, sendo a outra ou as outras valoradas na medida da pena [cfr. o artigo 204º, nº 9, do Código Penal e, mesmo antes da entrada em vigor desta norma, que não constava da versão originária do Código Penal de 1982, o meu artigo sobre 'As circunstâncias qualificativas do furto', em Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano I (1991), nº 2, pp.
259-286, no qual preconizava já tal solução]. A aplicação deste método ao caso em análise implicará que seja escolhida, entre todas as mortes resultantes da conduta típica, aquela que exprima um mais intenso desvalor ou danosidade (por circunstâncias que podem ir do sofrimento da vítima à sua esperança de vida). Isto é, não há razões para concluir a priori que é a primeira morte que determina a agravação pelo resultado e que as restantes são ponderadas na determinação da pena concreta. De todo o modo, só no julgamento se determinará quantas mortes são passíveis de acarretar a agravação pelo resultado e qual delas, em concreto, deverá produzir esse efeito modificativo da pena. Por outro lado, na impossibilidade da ponderação de uma das mortes (seja pela prescrição, se se considerar que esta começou a correr da data da verificação da primeira morte, seja por outra razão qualquer), nada pode obstar à perseguição penal, nos termos gerais, de outros crimes agravados pelo resultado relativamente aos quais não seja sequer possível afirmar, individualmente, a prescrição. Com efeito, os resultados lesivos apenas são insusceptíveis de determinar a punição de crimes autónomos na medida em que se encontrem numa relação de consunção ou de 'facto posterior não punível' com o evento de que o tribunal se prevaleceu para aplicar a agravação pelo resultado. Assim, independentemente de serem anteriores ou posteriores a tal evento, aqueles resultados só não são objecto de perseguição penal autónoma se e quando existir concurso aparente de crimes, por força do princípio non bis in idem (artigo 29º, nº 5, da Constituição). Esta solução vale, de resto, para todas as situações de concurso aparente que são desfeitas devido à impunibilidade, seja por que razão for, de um dos crimes: se, por exemplo, um roubo cometido com ameaça de violência não puder ser punido por qualquer razão, o crime de ameaça, que noutras circunstâncias seria consumido pelo crime de roubo, passa a ser punido autonomamente (cfr., sobre a determinação da pena do concurso, Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas do Crime, p. 285). Quanto aos crimes negligentes com plúrimos resultados, a doutrina discute mesmo se não existirá um concurso efectivo pela violação plúrima do dever de cuidado e há sinais jurisprudenciais de acolhimento desse critério (cfr. Germano Marques da Silva, 'Responsabilidade pela conduta negligente e com pluralidade de eventos – unidade', em Problemas Fundamentais do Direito Penal, coord. de Maria da Conceição Valdágua, 2002, pp. 141-154, citando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Março de 2000), o que reforça a conclusão de que a unificação jurídica dos eventos não pode acarretar, no plano do procedimento criminal, brechas de impunidade. A perspectiva do presente Acórdão, segundo a qual se imporia constitucionalmente, no caso dos autos, que a contagem do prazo prescricional se iniciasse logo com o primeiro resultado, por razões de certeza, paz jurídica, segurança, necessidade de imposição de pena, garantias de defesa do arguido e proporcionalidade não encontra fundamento em qualquer especialidade do crime sub judicio ante outros, no plano da composição do ilícito e da protecção dos bens jurídicos. O referido efeito de 'imprescritibilidade prática' como expressão de uma possibilidade de prazos concretos de prescrição do procedimento criminal muito longos não é senão o corolário da complexidade e da morosidade do processo causal e da necessidade de o sistema penal não deixar de referir a protecção de bens jurídicos ao desvalor do resultado na sua plenitude.
10. A desvalorização da doutrina penal que se tem pronunciado sobre esta questão – nomeadamente quanto à distinção entre início e termo da consumação – pelo presente Acórdão parece-me criticável. Com efeito, não se trata de 'alguma doutrina', mas antes de uma sólida doutrina radicada em soluções legislativas muito próximas da portuguesa que, de forma explícita, elegem como critério do início do prazo de prescrição do procedimento criminal o esgotamento da consumação do crime. Assim, o § 78a do Strafgesetzbuch
(Código Penal alemão) estipula que 'a prescrição começa logo que o facto está terminado (beendet). Se o resultado integrante do facto típico só se verifica mais tarde, então a prescrição começa com este momento temporal'. Por seu turno, o artigo 153 do Codice Penale (Código Penal italiano) dispõe que 'o prazo de presrição decorre, para o crime consumado, desde o dia da consumação; para o crime tentado, desde o dia em que cessou a actividade do culpado; para o crime permanente ou continuado, desde o dia em que cessou a permanência ou a continuação ...'. E conclui que, 'quando a lei faz depender a punibilidade do crime de verificação de uma condição, o termo da prescrição decorre do dia em que essa condição se verificou'. A doutrina germânica acentuou a referida distinção e pronunciou-se pela aceitação do critério da verificação do último resultado que integra o tipo de ilícito. Assim se pronuncia, claramente, Maurach-Zipf, segundo o qual 'se uma acção tem vários resultados temporalmente separados e tipicamente relevantes, então decide o momento do último resultado' (Strafrecht, Allgemeiner Teil, 6ª ed., 2º vol., 1984, p. 686). Jescheck afirma, em geral, que tem sentido atender para o começo da prescrição ao término (beendigung) do delito entendido em sentido material, dando como exemplo na burla a obtenção do proveito material, apoiando-se, aliás, na fundamentação do projecto de Código Penal alemão de 1962
(Lehrbuch des Strafrechts, Allgemeiner Teil, 5ª ed., 1996, p. 913); Schönke-Schröder (Stafgesetzbuch Kommentar, 26ª ed., 2001, p. 1020 e ss.) refere o início da consumação dos crimes agravados pelo resultado ao resultado mais grave. Na doutrina italiana, Manzini (na 5ª edição ao cuidado de Nuvolone e G. D. Pisapia do Trattato di Diritto Penale Italiano, 1981, p. 539) refere, embora sem afirmar que se trate de posição unânime, que a prescrição decorre a partir do dia da verificação de uma circunstância agravante, mesmo que ela concorra com outras agravantes precedentes ou concomitantes com o momento consumativo. Tanto quanto aos crimes dolosos como quanto aos crimes preterintencionais, o mesmo autor sustenta que a prescrição decorre a partir da data em que se verificam as consequências. Por seu turno, Salvatore Panagio (em Novissimo Digesto das Disciplinas Penalisticas, 1995, p. 659 e ss.) refere que a jurisprudência faz decorrer o prazo prescricional da verificação do evento nos crimes materiais e, no caso de se vir a alargar no próprio decurso do processo o respectivo objecto a novas agravantes, admite um alargamento do prazo prescricional. Mas, independentemente desta doutrina, o que desde há muito foi acentuado, sobretudo pela discussão travada na doutrina germânica a partir da análise de casos jurisprudenciais (caso da instalação de uma caldeira de que resultou uma explosão vinte anos mais tarde), é que nos crimes negligentes, em que o resultado é constitutivo da punibilidade e da procedibilidade (já que a tentativa não se configura), a dilação temporal entre a acção e o resultado não pode ser factor impeditivo do exercício da acção penal uma vez que ela nem sequer poderia, efectivamente, ser exercida em fase anterior [neste sentido, já Binding, Strafrecht, I, 1885, p. 839, e também Welzel, Das Deutsche Strafrecht,
9ª ed. (12ª ed. da Parte Geral), 1965, p. 237 e ss.; contra esta doutrina, mas ainda assim formulando um critério de início de prescrição posterior à acção, coincidente com o termo da violação do dever de cuidado através de comportamento omissivo, H.-J. Bruns, Neue Juristische Wochenschrift, 1958, p. 1257 e ss.; este autor defende um tal critério apenas para os casos de negligência inconsciente, em atenção à diminuta culpabilidade desses factos, acabando por admitir, incompreensivelmente, a impossibilidade de perseguição penal de certos resultados produzidos após um lapso temporal longo, independentemente de qualquer inércia da autoridade pública que detém o jus puniendi]. A verificação do resultado é, na verdade, constitutiva do ilícito, tanto nos crimes negligentes como nos crimes dolosos agravados pelo resultado, quer por razões substantivas quer por razões processuais. A pluralidade de resultados agravantes não modifica a questão, permitindo concluir que, nessas situações, sendo possível a perseguição penal logo a partir do primeiro resultado, não se torna necessário esperar pela produção dos restantes para se exercer a acção penal. Esta possibilidade implica que se prescinda da inclusão no objecto do processo dos resultados posteriores. Todavia, a transformação de tal possibilidade de exercer a acção penal em relação ao primeiro resultado em obrigação acarretaria a possibilidade de também quanto aos últimos resultados estar prescrito o procedimento criminal antes sequer de eles se verificarem (e mesmo que o agente ainda pudesse impedi-los ou diminuir a sua gravidade). E, nessa hipótese, voltamos ao contra-senso assinalado por Binding – o de uma acção penal poder estar precludida através de prescrição antes mesmo de poder ser exercida ('nenhuma prescrição antes da accusatio nata'). Não sendo decisivos argumentos de autoridade, há, pelo menos, a necessidade de revelar os resultados da pesquisa quanto a fontes doutrinais sobre o problema em análise quando se está a desferir um golpe fatal num complexo edifício sistemático. Mas o Acórdão apenas cita Faria e Costa através de considerações gerais (com as quais concordo) sobre a paz jurídica e a prescrição que não permitem extrair qualquer conclusão sobre a bondade da tese que logrou vencimento.
11. A solução propugnada no Acórdão, segundo a qual é inconstitucional, nos crimes de perigo agravados pelo resultado com resultados múltiplos, o prazo prescricional não começar a correr a partir do primeiro dos resultados indiciariamente imputáveis à acção, porque, nesses casos, o crime já está consumado e pode ser perseguido como tal, implica, por outro lado, que não se atenda à estrutura acusatória do Processo Penal, que é configurada no artigo
32º, nº 5, da própria Constituição. Só no julgamento são decisivamente resolvidas as questões de concurso e de crime continuado (respeitando-se a proibição de alteração substancial de factos, o caso julgado e o non bis in idem), não se podendo asseverar, no início do processo, que os indícios de produção negligente de uma morte, por exemplo, não terão relevância autónoma, a título de crime negligente ou de qualquer outro crime que comporte tal resultado.
IV A dimensão normativa julgada inconstitucional
12. O presente Acórdão considera inconstitucionais as normas sub iudicio pela possibilidade abstracta de elas produzirem uma 'imprescritibilidade prática', o que constitui, desde logo, uma contradictio in terminis. No projecto de Acórdão que apresentei na qualidade de primeira Relatora, sublinhei que não se verificaram sequer, no caso concreto, a insegurança e a incerteza que fundamentam o juízo de inconstitucionalidade, na medida em que da acusação, deduzida pelo Ministério Público, vários anos após a prática dos actos executivos (a acusação foi formulada em 1995 relativamente a factos praticados entre 1986 e 1987 e a mortes ocorridas entre 1987 e 1995), já constam todos os resultados. Todavia, tal argumento foi desconsiderado no Acórdão de modo pouco claro. A assinalada falta de clareza resulta de o juízo de inconstitucionalidade constante do Acórdão remeter, ele próprio, para um plano prático, da referida
'imprescritibilidade prática', devida à possibilidade concreta de uma grande dilação temporal, não se situando num plano puramente abstracto. Com efeito, o Acórdão limita-se a afirmar que é incompatível com a Constituição um modo de contagem do prazo prescricional, na medida em que forneça resultados desproporcionados na aplicação a casos concretos – o tal prazo que se pode estender durante dezenas de anos. Deste modo, a invocação prática considerada não relevante para julgar compatíveis com a Constituição normas sobre a contagem de prazos prescricionais
(aquela a que o Acórdão da Relação faz referência) é afinal retomada no presente Acórdão, mas de modo inverso, isto é, para emitir o juízo de inconstitucionalidade. Aceita-se que as normas sub iudicio são inconstitucionais porque, na prática, podem permitir dilações temporais excessivas, promovendo a incerteza ou até a arbitrariedade, mas não se reconhece já que, nas hipóteses em que não se tenha verificado uma tal dilação, nomeadamente porque todos os factos constam da acusação, porque outros princípios com institutos processuais penais como a proibição de alteração substancial dos factos, o caso julgado ou o non bis in idem obstam a um tal efeito prático ou até porque essa dilação temporal excessiva simplesmente não se verificou, não está presente o fundamento do juízo de inconstitucionalidade. Da dimensão prática efectiva, única que deveria ser ponderada, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, passou-se, assim, para uma dimensão prática hipotética, que não se demonstra estar verificada no caso dos autos, mas da qual se extraiu um juízo de inconstitucionalidade para aplicar nesse caso. É certo, pelo contrário, que entre a primeira morte e a dedução da acusação, obviamente posterior ao início do procedimento criminal [cfr. o artigo
121º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Penal], que contempla todas as mortes e que fixou o objecto do processo nos termos do artigo 309º, nº 1 do Código de Processo Penal, não mediou o prazo de dezenas de anos considerado inadmissível pelo presente Acórdão. O efeito prático considerado inconstitucional só pode verificar-se se houver inércia do Ministério Público. Caso contrário, é impedido pela proibição da alteração substancial de factos, pelo caso julgado e pelo princípio non bis in idem. Por outro lado, repete-se, ao dizer que a norma é inconstitucional por permitir prazos 'infindáveis', o Tribunal Constitucional só pode, coerentemente, julgar inconstitucional essa norma na exacta e exclusiva medida em que ela tiver permitido tais prazos – o que não se demonstrou ter sucedido no caso dos autos.
É esta a conclusão que se impõe em face do disposto no nº 3 do artigo 80º da Lei do Tribunal Constitucional, do qual se infere um princípio de aproveitamento de normas legais, impondo-se que elas sejam interpretadas de acordo com a Constituição (e 'desaplicadas' na estrita medida em que tal interpretação não for possível). A conclusão a que o Tribunal Constitucional chegou, menosprezando toda e qualquer dimensão concreta da norma legal, a partir de uma hipotética mas não verificada dimensão concreta, e ignorando outras dimensões (como a possibilidade de os últimos resultados ainda poderem ser evitados pelo agente após a produção dos primeiros, mas já ter então decorrido o prazo prescricional quanto a todos, o que retira à desistência activa o estímulo da impunibilidade) é uma decisão fora do sentido do caso concreto. Entendeu-se que a norma é inconstitucional porque poderia suscitar situações de 'imprescritibilidade prática', que não são delimitadas normativamente, sem se curar de saber se as suscitou efectivamente.
V Os princípios constitucionais relevantes para a matéria da prescrição
13. A confrontação do critério do início da prescrição do procedimento criminal com as normas e os princípios constitucionais invocados no Acórdão é imprecisa. A relevância constitucional da prescrição manifesta-se, sobretudo, no princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança, no princípio do Estado de direito democrático, na dimensão de uma autolimitação do poder punitivo através de critérios objectivos e não arbitrários e, em suma, na protecção dos arguidos contra abusos processuais. Não há, no entanto, qualquer direito à prescrição, a não ser, eventualmente, na dimensão limitada de um direito de renúncia à prescrição, como manifestação do direito de acesso à justiça ou de defesa da honra. A justificação da prescrição na ausência de necessidade punitiva em face da atenuação na sociedade dos efeitos do crime e da dificuldade de, ao fim de certo lapso de tempo, as provas manterem consistência (cf. Jescheck, ob.cit., p. 911) não é facilmente configurável em casos em que os efeitos se continuam a produzir no termo de processos causais complexos e morosos. A invocada violação da necessidade das penas e das medidas de segurança não tem, deste modo, verdadeira consistência. A violação do princípio do Estado de direito democrático pela interpretação normativa em causa corresponde a uma conclusão que desconhece que não depende do critério de o início do prazo de prescrição do processo criminal correr a partir do último resultado a concessão da possibilidade de abuso ao titular da acção penal. Uma tal conclusão confunde as especiais dificuldades do exercício da acção penal nestes casos com a cobertura legal da inércia ou da utilização abusiva dos prazos prescricionais. Julgar inconstitucional a solução normativa em análise tem repercussões graves sobre o edifício da prescrição do procedimento criminal, pacificamente aceite durante décadas (no Código Penal português e em outros códigos penais europeus), e implica uma reformulação global da relação da prescrição com a estrutura do ilícito penal. É um passo que não se pode sustentar num juízo de inconstitucio-nalidade elaborado sobre afirmações genéricas acerca da violação de princípios, em que a dimensão da violação da Constituição não é, verdadeiramente, identificada. Não sendo a solução legislativa questionada a única concebível e aceitável, ela apresenta, independentemente do valor das alternativas interpretativas, uma justificação sedimentada nos fundamentos político-criminais da prescrição e não contradiz princípios constitucionais na dimensão concreta que se configurou no presente processo. Por isso, votei vencida o Acórdão. Maria Fernanda Palma