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Processo nº 178/2002
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Em 29 de Fevereiro de 2000, o IGAPHE – INSTITUTO DE GESTÃO E ALIENAÇÃO DO PATRIMÓNIO HABITACIONAL DO ESTADO propôs contra A e mulher, no Tribunal Judicial da Comarca de Espinho, uma acção destinada a obter a resolução do contrato de arrendamento devidamente identificado nos autos, com fundamento em falta de pagamento de rendas. A acção foi julgada parcialmente procedente no despacho saneador, de 6 de Abril de 2001, de fls. 67. Os réus foram absolvidos do pedido de resolução do contrato, por ter ocorrido a caducidade do direito correspondente, mas foram condenados a pagar a quantia de 1.433.700$00 a título de rendas vencidas e não pagas. No que agora releva, o tribunal desatendeu a invocação da prescrição das rendas relativas ao período de Janeiro de 1989 a Janeiro de 1995 porque entendeu que, dispondo de força executiva as certidões passadas pelo IGAPHE relativas a rendas, nos termos do artigo 29º do Decreto-Lei nº 88/87, de 26 de Fevereiro, sendo ainda certo que pendia contra o réu uma execução fiscal para o efeito, passava a ser-lhes aplicável o prazo geral de 20 anos (artigo 309º e nº 1 do artigo 311º do Código Civil). Inconformados, os réus recorreram para o Tribunal da Relação do Porto. Por acórdão de 3 de Dezembro de 2001, de fls. 120, foi reduzido o montante a pagar, por se ter apurado existir uma duplicação na cobrança de algumas das rendas devidas, bem como um erro de cálculo. Apenas no que agora interessa, o Tribunal da Relação do Porto desatendeu a acusação de inconstitucionalidade orgânica e material do artigo 29º do Decreto-Lei nº 88/87, de 26 de Fevereiro.
2. Por requerimento de 18 de Dezembro de 2001, os réus vieram arguir a nulidade do acórdão do Tribunal da Relação do Porto (arguição que foi deferida pelo acórdão de 4 de Fevereiro de 2002, de fls. 147) e interpor recurso para o Tribunal Constitucional. Ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendem que o Tribunal Constitucional aprecie a
'inconstitucionalidade do artigo 29º do DL nº 88/87, por violação da actual alínea p) do nº 1 do artigo 165º (ao tempo, alínea q) do artigo 168º) e artigos
2º e 13º da CRP'.
3. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as correspondentes alegações. No que toca aos recorrentes, concluíram do seguinte modo:
«1ª Com o artigo 29º do DL 88/87, o Governo (sem autorização da Assembleia da República) fixou uma nova competência aos tribunais tributários: a de cobrarem coercivamente as rendas habitacionais do IGAPHE – violando a alínea q) do artigo
168° da CRP (versão de 1982) que reserva para a Assembleia a competência legislativa de fixar as competências dos tribunais.
2ª Além disso, ao estatuir sobre a cobrança das rendas habitacionais de que é senhorio o IGAPHE, o Governo (sem autorização da Assembleia da República) legislou sobre matéria de arrendamento urbano (regime de cobrança de rendas) – violando a alínea h) do artigo 168° da CRP (versão de 1982) que reserva para a Assembleia a competência legislativa de legislar sobre arrendamentos.
3ª Parece assim, modestamente, aos recorrentes que o artigo 29º do DL 88/87 de
26 de Fevereiro sofre duplamente de inconstitucionalidade orgânica por ter invadido a esfera de reserva relativa da Assembleia da República.
4ª Como titular das rendas habitacionais dos prédios de que é proprietário, o IGAPHE tem de ter o mesmo tratamento que os demais senhorios em Portugal
(recorrer aos tribunais comuns, com garantias dos inquilinos para poderem contestar os factos invocados).
5ª O artigo 29º do DL 88/87 é materialmente inconstitucional ao conceder um tratamento especial, injustificado e diferenciado ao senhorio IGAPHE (quando os demais senhorios não podem passar certidões e recorrer ao tribunal tributário para cobrarem executivamente as rendas habitacionais não pagas pelos inquilinos) violando os princípios fundamentais da igualdade ( estabelecido no artigo 13° da nossa Constituição) e de vivermos num Estado de direito democrático
(estabelecido no artigo 2° da CRP).» O recorrido formulou as seguintes conclusões:
«1. O artº. 29º do D.L. 88/87 não fixou nova competência aos Tribunais Tributários, pois estes órgãos judiciais têm a sua competência definida no Código de Processo Tributário – artº 39º e no D.L. 129/84, de 27 de Abril, complementado pelo D.L. 374/84, de 29 de Novembro nomeadamente a cobrança coerciva das dívidas ao Estado (ou pessoa colectiva pública) no âmbito do seu estatuto próprio.
2. A emissão de certidões de dívida (quando ela exista) é um procedimento legal que assiste ao Estado ( ou ente público ) não violando o artº 168º/1 alínea h) versão 1982.
3. O Igaphe não é um senhorio privado, pois não prossegue fins económicos, não praticando rendas habitacionais com rentabilidade do capital e consequentemente não lucrativas. Outros sim tem por missão proporcionar habitação digna a famílias de carências económicas, proporcionando rendas de baixo valor real do mercado e portanto não existe razão 'materialmente fundada' para ser extensível o regime do artº 29° aos senhorios privados. AC TRP 03/12/2001.
4. E prosseguindo o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, vem esclarecer que 'o regime expedito de cobrança de rendas em dívida, mediante atribuição de força executiva a certidões emitidas pelo Igaphe, não traduz afronta ao princípio constitucional de igualdade por, afinal, reflectir a necessidade de dar tratamento desigual a situações desiguais'.
5. O Igaphe não é um 'mero instituto' como o recorrente parece crer, mas sim um ente público dotado de força legal para emitir certidões de dívida com força de título executivo, para prossecução dos seus fins sociais apoiando as famílias de fracos recursos, dotando-as de habitação condigna a preços manifestamente inferiores aos do mercado (veja-se o caso do Recorrente em que Ihes foi fixada uma renda de 13.900$00/mês, para mais tarde lhe ser reduzida para 9.999$99/mês - ou seja obteve uma redução de cerca de 35%).
6. É, pois, no pleno entendimento das funções altamente abnegadas, de alcance eminentemente social e com o fim da satisfação célere das necessidades habitacionais de famílias de parcos recursos, que ao Igaphe, sujeito público, se lhe confere a possibilidade de emitir certidões de dívida de rendas não pagas e deste modo agilizar-se a sua cobrança coerciva para assim serem mais rapidamente gerados recursos para a prossecução dos seus fins sociais estatutários e no estrito cumprimento constitucional - artº 65°».
4. A fls. 174, foi proferido o seguinte despacho:
«1. A e mulher vieram recorrer para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 120, aclarado pelo acórdão de fls. 147, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo que o Tribunal aprecie a 'inconstitucionalidade do artigo
29º do DL nº 88/87, por violação da actual alínea p) do nº 1 do artigo 165º (ao tempo, alínea q) do artigo 168º) e artigos 2º e 13º da CRP'. Conforme desenvolvem nas alegações posteriormente apresentadas, os recorrentes consideram tal preceito orgânica e materialmente inconstitucional. No que respeita à alegada inconstitucionalidade orgânica, os recorrentes sustentam que ela decorre, para além de outro motivo agora não relevante, da circunstância de que 'Com o artigo 29º do DL 88/87, o Governo (sem autorização da Assembleia da República) fixou uma nova competência aos tribunais tributários: a de cobrarem coercivamente as rendas habitacionais do IGAPHE – violando a alínea q) do artigo 168° da CRP (versão de 1982) que reserva para a Assembleia a competência legislativa de fixar as competências dos tribunais'
(conclusão 1ª).
2. Ora o citado artigo 29º tem a seguinte redacção:
'As certidões passadas pelo IGAPHE de que constem as importâncias de rendas ou outras prestações em dívida, bem como os respectivos encargos, têm força de título executivo e a sua cobrança coerciva é da competência dos tribunais tributários'. Ora a verdade é que o acórdão recorrido não aplicou este preceito na parte em que estabelece que cabe aos tribunais tributários a cobrança coerciva das
'rendas ou outras prestações em dívida, bem como os respectivos encargos'; não pode, pois, o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso na parte em que abrange a norma correspondente (artigo 79º-Constituição da Lei nº 28/82).
3. Assim, nos termos previstos no nº 1 do artigo 704º do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 69º da Lei nº 28/82, notifiquem-se as partes para se pronunciarem sobre a redução do objecto do recurso que se traduz em excluir do seu âmbito a norma segundo a qual a cobrança coerciva prevista no artigo 29º do Decreto-Lei nº 88/87, de 26 de Fevereiro, é da competência dos tribunais tributários.»
5. Respondendo à notificação, A veio responder que 'a competência atribuída aos tribunais tributários é indissociável da parte restante do artigo pois constitui o escopo legislativo dessa norma (que constitui um todo único). Se não tivesse havido uma certidão enviada para o tribunal tributário, a questão discutida nos autos nunca se teria posto.
(...) Acresce que o recorrido IGAPHE mantém em simultâneo a execução fiscal e manifesta a intenção de remeter para o tribunal tributário nova certidão sobre a totalidade da dívida (abrangendo as rendas que, com trânsito em julgado, nos autos foram declaradas prescritas) (...). Ou seja: mantendo o Tribunal Constitucional a competência do tribunal tributário, os recorrentes continuarão penhorados e a ter de pagar todas as rendas (incluindo as que foram judicialmente julgadas prescritas). O IGAPHE veio dizer que nada tinha a opor à redução do objecto.
6. Pela razão constante do despacho acima transcrito, considera-se então reduzido o objecto do presente recurso à norma, constante do artigo 29º citado, segundo a qual as certidões passadas pelo IGAPHE de que constem as importâncias de rendas habitacionais devidas pelos inquilinos têm força de título executivo.
É que não colhe a razão da incindibilidade apontada pelo recorrente: é perfeitamente possível – como, aliás, fez o tribunal recorrido – aplicá-la, apenas, quando atribui força executiva às certidões em causa. Aparentemente, o recorrente pretende que a questão da competência seja apreciada pelo Tribunal Constitucional para vir a retirar consequências da decisão, não no presente processo, mas na execução fiscal; o que, por si só, demonstra que não tem razão.
7. Consideram os recorrentes que a norma atrás definida é, simultaneamente, organicamente inconstitucional porque versa 'sobre matéria de arrendamento urbano (regime de cobrança de rendas', que é da competência legislativa
(relativamente) reservada da Assembleia da República (al. h) do nº 1 do artigo
168º da Constituição, na versão de 1982), e consta de um decreto-lei não autorizado, e materialmente inconstitucional, por violação dos 'princípios fundamentais da igualdade (estabelecido no artigo 13º da nossa Constituição) e de vivermos num Estado de Direito democrático (estabelecido no artigo 2º da CRP)'.
8. Começando por analisar a questão da inconstitucionalidade orgânica, cabe dizer desde já não ter qualquer fundamento a afirmação de que, ao criar um título executivo para cobrança de rendas, o legislador está a 'legislar sobre arrendamentos'. Em primeiro lugar, criar um título executivo significa, apenas, regular matéria de pressupostos processuais e, portanto, matéria de processo. Em segundo lugar, e ainda que se pudesse dizer que se trata de pressupostos processuais relativos a acções destinadas a cobrar rendas e que, portanto, ainda está em causa matéria de arrendamento – o que apenas se refere como hipótese –, sempre haveria que ter em conta que apenas é reservada à Assembleia da República a competência para legislar sobre o 'regime geral' do arrendamento (al. h) do nº
1 do artigo 168º, vigente à data da aprovação do Decreto-Lei nº 88/87, correspondente à al. h) do nº 1 do artigo 165º actual), no qual se não incluiria tal norma. O Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de explicitar por diversas vezes o que se deve considerar abrangido na reserva assim definida, dela excluindo matéria de natureza processual. Para o relembrar, basta recorrer ao seu acórdão nº 311/93 (Diário da República, II Série, de 22 de Julho de 1993 ) que, louvando-se em jurisprudência anterior e analisando diversas normas da Lei nº 42/90, de 10 de Agosto, que autorizou o Governo a alterar o regime do arrendamento urbano, afirmou o seguinte:
«1.2. Mas, então, para decidir se as normas questionadas definem
ou não o sentido e o alcance da autorização legislativa, há que saber o que deva entender-se por regime geral do arrendamento urbano.
Com efeito, só quanto a esse aspecto da disciplina jurídica de tal tipo de arrendamento era exigível que a Assembleia da República definisse a amplitude com que o Governo ficava autorizado a legislar (alcance), e, bem assim, as linhas de orientação por que este haveria de guiar-se na produção de normas estruturantes desse regime geral (sentido).
Pois bem:
Este Tribunal já teve ocasião de se debruçar sobre esta matéria. Fê-lo no acórdão nº 77/88, publicado no Diário da República, I série, de 28 de Abril de 1988, afirmando a propósito:
[...] a reserva em causa não se limita à definição dos 'princípios',
'directivas' ou standards fundamentais em matéria de arrendamento (é dizer, das
'bases' respectivas), mas desce ao nível das próprias 'normas' integradoras do regime desse contrato e modeladoras do seu perfil. Circunscrito o âmbito da reserva pela noção de 'arrendamento rural e urbano', nela se incluirão, pois, as regras relativas à celebração de tais contratos e às suas condições de validade, definidoras (imperativa ou supletivamente) das relações (direitos e deveres) dos contraentes durante a sua vigência e definidoras, bem assim, das condições e causas da sua extinção - pois tudo isso é 'regime jurídico' dessa figura negocial. Por outras palavras, e em suma: cabe reservadamente ao legislador parlamentar definir os pressupostos, as condições e os limites do exercício da autonomia privada no âmbito contratual em causa. (Cf. também o acórdão nº
358/92, Diário da República, I-A série, de 26 de Janeiro de 1993).
E, mais adiante - depois de se sublinhar que esta reserva 'não é esgotante e absoluta', antes permitindo que 'nesse domínio venham ainda a intervir outros órgãos com competência legislativa' - disse-se, para o que aqui importa, mais o seguinte:
[...] é de entender a reserva como respeitando unicamente aos aspectos significativos, ou seja, verdadeiramente substantivos, do regime legal do contrato, mas permitindo a intervenção do Governo na regulamentação do que seja puramente adjectivo ou processual (em suma, 'regulamentar'). Como quer que seja, à Assembleia da República estará sempre reservada a definição das regras materiais aplicáveis à generalidade dos contratos de arrendamento rural e urbano, e tenham estes últimos como finalidade a habitação ou quaisquer outros fins. [Sobre o tema, cf. ainda os acórdãos nºs 154/88,
257/88, 243/89, 133/90, 141/90 e 246/90 (Diário da República, II série, de 19 de Setembro de 1988, 11 de Fevereiro de 1989, 30 de Maio de 1989, 4 de Setembro de
1990, 7 de Setembro de 1990, os cinco primeiros, e na I série, de 3 de Agosto de
1990, o último).» E, aplicando este critério mais adiante, o mesmo acórdão entendeu que «O facto de o regime geral, que constitui matéria da reserva parlamentar, respeitar apenas aos aspectos verdadeiramente substantivos do regime legal do contrato, ou seja, às regras materiais que, em geral, lhe são aplicáveis, logo afasta do seu
âmbito as matérias puramente processuais relativas à vida do contrato.» O mesmo critério delimitador foi posteriormente seguido, por exemplo, nos acórdãos nºs 410/97 (Diário da República, I Série A, de 8 de Julho de 1997),
127/98 (Diário da República, II Série, de 28 de Maio de 1998), 462/98 (Diário da República, II Série, de 9 de Dezembro de 1998), 55/99 (Diário da República, I Série A, de 19 de Fevereiro de 1999), 273/99 (Diário da República, II Série, de
21 de Outubro de 1999), 391/99 (Diário da República, II Série, de 8 de Novembro de 1999), ou 97/2000 (Diário da República, II Série, de 17 de Março de 2000).
9. Resta então a questão da inconstitucionalidade material. Ora exclui-se, desde já, a alegada inconstitucionalidade por violação do artigo
2º da Constituição, por não se descortinar por que razão a norma em apreciação viola o princípio do Estado de Direito democrático; aliás, os recorrentes não explicam porque invocam tal violação, o que impede o Tribunal Constitucional de analisar eventuais argumentos que pudessem merecer a sua atenção. No que respeita à alegação de desrespeito do princípio da igualdade, os recorrentes afirmam que 'Como titular das rendas habitacionais dos prédios de que é proprietário, o IGAPHE tem de ter o mesmo tratamento que os demais senhorios em Portugal', sendo pois 'materialmente inconstitucional ao conceder um tratamento especial, injustificado e diferenciado ao senhorio IGAPHE (quando os demais senhorios não podem passar certidões e recorrer ao tribunal tributário para cobrarem executivamente as rendas habitacionais não pagas pelos inquilinos)
(...)'. Existe, como se sabe, abundante jurisprudência constitucional sobre o princípio da igualdade, enquanto princípio limitador da liberdade de conformação do legislador. Assim, e recorrendo, por exemplo, ao seu acórdão nº 425/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional , 10º vol., pág. 451 e segs.), lembra-se que 'O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange diversas dimensões: proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenças de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação pelos poderes públicos de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1º vol., 2ª ed., Coimbra, próprio. 149 e segs.). A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo de controlo.
Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio quando os limites externos da discricionaridade legislativa são afrontados por carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada. Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria
'. O Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de apreciar a questão da atribuição do poder de criação de títulos executivos através da emissão de certidões de dívida que a lei, em diversos casos, atribui a entidades públicas, nomeadamente, a propósito da concessão aos hospitais de tal poder, pelo artigo
2º do Decreto-Lei nº 194/92, de 8 de Setembro (entretanto revogado pelo Decreto-Lei nº 218/99, de 15 de Junho). Assim, no seu acórdão nº 760/95 (Diário da República, II Série, de 2 de Fevereiro de 1995), que se refere por todos os que se debruçaram sobre a mesma questão, escreveu-se que «Nestas certidões de dívida, que são títulos executivos, o emitente, que é uma entidade pública, certifica, não apenas a existência de um crédito próprio, como também a identidade daquele ou daqueles contra quem a execução deve correr. E isso, sem que o executado haja assumido a responsabilidade pelo débito e sem que tenha havido qualquer decisão judicial prévia a definir (declarar) essa responsabilidade. Ou seja: tais certidões de dívida gozam legalmente de um grau de fé pública tal que dispensam a intervenção do juiz, previamente à instauração da execução, para declarar a existência da dívida e dizer quem o responsável pelo seu pagamento. Esta actividade de certificação de um crédito por parte da entidade pública que dele é titular não representa, contudo, o exercício de poderes característicos da função judicial, pois que o hospital, ao emitir a certidão de dívida, não resolve ou compõe qualquer conflito que, acaso, oponha o credor (ou outrem)
àquele que, no título, é indicado como devedor. Na execução, pode, de facto, o executado lançar mão dos meios de defesa que podia ter usado na acção declarativa, se esta tivesse tido lugar. Ele pode opor-se à execução mediante embargos de executado. E, se o fizer, então sim, haverá lugar à resolução do conflito por um órgão independente e imparcial, de harmonia com normas ou critérios legais pré-existentes - e tudo com vista à realização do direito e da justiça Como sublinha o Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, a possibilidade legal de criar um tal título executivo, que se constitui por via administrativa, representa apenas 'a atribuição por lei de determinado nível de fé pública às declarações de débito, provenientes dos órgãos legítimos de pessoas colectivas ou entidades públicas - suficiente para dispensar o prévio reconhecimento ou declaração do crédito, relegando para os embargos de executado a (verdadeira) dirimição do conflito que porventura exista acerca da obrigação exequenda'. A atribuição de uma tal fé pública aos títulos de dívida hospitalar relativas a serviços ou tratamentos prestados, nada tem, de resto, de estranho. Só o teria, se a acção executiva houvesse de ser precedida em todos os casos de uma acção de condenação no termo da qual o juiz declarasse a existência da dívida e dissesse quem o responsável pelo seu pagamento. No nosso sistema jurídico, isso não é, porém, assim, como este Tribunal sublinhou ainda recentemente no acórdão nº 398/95 (por publicar). De facto - para além das sentenças condenatórias [cf. artigo 46º, alínea a), do Código de Processo Civil] - podem ser dados à execução os documentos exarados ou autenticados por notário, as letras, livranças, extractos de factura, vales, extractos de factura conferidas e quaisquer outros escritos particulares, assinados pelo devedor, dos quais conste a obrigação de pagamento de quantias determinadas ou de entrega de coisas fungíveis e, ainda, os títulos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva [cf. artigo 46º citado, alíneas b), c) e d)].» No seu acórdão nº 761/95 (Diário da República, II Série, de 2 de Fevereiro de
1996), a mesma norma foi analisada à luz do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição; a questão colocada respeitava, todavia, à igualdade entre as partes – ou seja, entre o credor, exequente, e o devedor, executado.
Entendeu-se, então, «4. Alega a Companhia de Seguros Império que os normativos sub specie vêm estabelecer uma dispariedade de tratamento referentemente às seguradoras, por isso que as mesmas só se poderão defender mediante a dedução de embargos.
É por demais evidente que uma tal argumentação não pode proceder.
Efectivamente, em todos os casos em que o credor munido de título dotado de parata executio instaure directamente execução, a defesa dos executados é somente alcançável mediante embargos, não se divisando qualquer diferenciação entre os meios de defesa postos à disposição das seguradoras que figuram como executadas no título ora em apreço, e aqueloutros que são conferidos àqueles que, como devedores, constam de outras espécies de títulos executivos.
A diversidade – tão somente em relação a meios processuais e não quanto à substância da validade de defesa – deparada relativamente a quem é demandado em acções declarativas e em acções executivas tem justificação bastante pela incorporação do crédito no próprio título, razão pela qual tal diversidade não constitui arbitrária desigualdade.
E, por isso, não se mostra afrontado o artigo 13º da Constituição.
Aliás, nem sequer se vê como é que - deduzidos que venham a ser pelas seguradoras, em autos de execução instaurados com base nos preceitos em análise, cabidos embargos, nos quais se venha a alegar, verbi gratia, a inexistência de factualidade de onde decorra a responsabilidade civil extra-contratual do segurado - se pode dizer que, nestes, as regras sobre o ónus da prova que impendem sobre os lesado e lesante (in casu a instituição ou serviço de saúde e o condutor e ou proprietário do veículo interveniente no acidente) se vão postar de jeito diferente relativamente a uma acção declarativa.» No recurso agora em apreciação, invoca-se violação do princípio da igualdade, como se viu, por confronto com a generalidade dos senhorios. A verdade, todavia, é que carece manifestamente de fundamento pretender que não existem entre o IGAPHE e a generalidade dos senhorios, do ponto de vista que agora nos interessa, diferenças suficientes para suportar um tratamento materialmente diferente. Sem necessidade de maiores desenvolvimentos, basta atentar que o IGAPHE é um instituto público a que a lei cometeu a tarefa de prosseguir a 'política definida para a habitação social' (cfr. al. a) do artigo
2º do Decreto-Lei nº 88/87), no âmbito da qual lhe cabe celebrar os contratos de arrendamento que agora estão em causa (artigo 3º, nº 1, b). Não está, assim, em causa o interesse particular e privado de nenhum senhorio, mas antes o interesse público da protecção do direito à habitação, constitucionalmente tutelado
(artigo 65º da Constituição). Finalmente, basta ainda relembrar que, como se referiu atrás ao citar o acórdão nº 760/95, conferir o poder de criar títulos executivos significa reconhecer a uma entidade uma especial credibilidade, já que se trata de provar a constituição de obrigações com uma eficácia que a lei considera suficiente para dispensar o recurso à acção declarativa; ora não se levantarão dúvidas sérias de que não haverá a lei de ter de avaliar da mesma forma a concessão deste poder a um instituto público e à generalidade dos senhorios privados. Não pode, assim, dizer-se que a norma em apreciação viole o princípio constitucional da igualdade.
Assim, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs (a suportar em conjunto), sem prejuízo do apoio judiciário concedido. Lisboa, 8 de Novembro de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida