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Processo nº 376/2002
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 603, foi proferida a seguinte decisão sumária:
«1. A. instaurou no Tribunal judicial da Comarca de Caminha uma acção contra B, e C, pretendendo a condenação dos réus no pagamento da indemnização de
57.342.400$00 por danos sofridos em virtude de um acidente de viação que considera ter sido provocado por culpa do segundo réu, acrescida dos devidos juros de mora. Por sentença de 6 de Abril de 2000, de fls. 319, a acção foi julgada improcedente, por se ter julgado que o acidente foi provocado por culpa exclusiva do autor. Inconformado, A. recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que, por acórdão de 22 de Maio de 2001, de fls. 448, negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida. Interessa agora reter, em especial, que o Tribunal da Relação do Porto não admitiu os documentos que o apelante juntou com as suas alegações, por entender não ocorrer nenhuma das hipóteses em que o artigo 706º do Código de Processo Civil (directamente e por remissão para o artigo 524º do mesmo Código) permite tal junção; e acrescentou 'que, no entanto, não se lhes reconhece [aos documentos] também a virtualidade de, por si só, poderem destruir a prova em que a decisão recorrida se fundou, conforme exigido seria pelo disposto na alínea c) do nº 1 do artº 712º, do Código de Processo Civil. Igualmente se não verificam as situações previstas nas alíneas a) e b) do nº 1 do citado artº 712º do C.P.C. que, aliás, nem sequer vêm invocadas pelo recorrente'. A. recorreu então para o Supremo Tribunal de Justiça. Com as alegações, juntou 4 documentos ( pareceres técnicos e uma certidão de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido a propósito do mesmo acidente). Por acórdão de 28 de Fevereiro de 2002, de fls. 561, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento à revista. Também apenas para o que agora releva, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu 'A este respeito importa observar, antes do mais, que a junção dos mencionados pareceres técnicos bem como do levantamento topográfico não é admissível na presente fase do processo. Com efeito, estabelece o artigo 727º do Código de Processo Civil que ´com as alegações podem juntar-se documentos supervenientes, sem prejuízo do disposto no nº 2 do artigo
722º e no nº 2 do artigo 729º’. Ora nem foi alegado nem resulta dos autos ter havido ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova’
(artigo 722º, nº 2).' Pelo requerimento de fls. 578, A. veio arguir a nulidade 'ou, caso se entenda, a reforma' do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 'suscitando a inconstitucionalidade, em conjugação, do disposto no artigo 727º, nº 2 do artigo
722º e nº 3 do artigo 729º todos do Cod. Proc. Civil', com o fundamento de que
'a interpretação adoptada por este Supremo Tribunal quanto às normas jurídicas em título viola assim o disposto no artigo 2º e no nº 2 do artigo 202º da Constituição'. A arguição foi indeferida, pelo acórdão de fl. 593, de 18 de Abril de 2002.
2. A. veio, finalmente, recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, pretendendo 'que o Tribunal aprecie a inconstitucionalidade, em conjugação, do disposto no artigo 727º, nº 2 do artigo 722º e nº 3 do artigo 729º do Cod. Proc. Civil', por considerar 'violado o princípio geral constante do nº 2 do artigo
202º e o princípio fundamental consagrado no artigo 2º da Constituição'. O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este tribunal (nº 3 do artigo
76º da Lei nº 28/82).
3. O Tribunal Constitucional não pode, porém, conhecer do objecto do presente recurso. O conhecimento do objecto de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas interposto ao abrigo do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 pressupõe que se pretende que o Tribunal Constitucional julgue inconstitucional uma norma, ou uma sua interpretação, cuja inconstitucionalidade foi 'suscitada durante o processo' (citada al. b) do nº 1 do artigo 70º). Ora a verdade é não se pode considerar, no presente recurso, que a inconstitucionalidade tenha sido oportunamente invocada. Como a lei exige e o Tribunal Constitucional tem reiteradamente afirmado, este requisito da invocação da inconstitucionalidade de uma norma ou de uma sua interpretação durante o processo traduz-se na necessidade de que tal questão seja colocada 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer' (nº 2 do artigo 72º da mesma lei), proporcionando-lhe desta forma a oportunidade de a apreciar. Só nos casos excepcionais e anómalos, em que o recorrente não dispôs processualmente dessa possibilidade, é que será admissível a arguição em momento subsequente (cfr., a título de exemplo, os acórdãos deste Tribunal com os nºs
62/85, 90/85 e 160/94, publicados, respectivamente, nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º vol., págs. 497 e 663 e no Diário da República, II, de 28 de Maio de 1994). Ora o requerimento de arguição de nulidade da decisão recorrida não é, em princípio – e não é, seguramente, neste caso –, o momento idóneo para que o recorrente coloque perante o tribunal recorrido a questão da inconstitucionalidade. Como o Tribunal Constitucional tem também repetidamente afirmado, salvo em casos excepcionais – que aqui não ocorrem –, o requerimento de arguição de nulidade da decisão recorrida não é momento processualmente adequado para se suscitar a inconstitucionalidade, porque 'a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui, obviamente, um erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, nem torna esta obscura ou ambígua', de forma a permitir ao tribunal a quo dela conhecer, 'por aplicação do disposto no nº 1 do artigo 666º do Código de Processo Civil' (Acórdão nº 62/85 cit.). Nem pode o recorrente sustentar ter sido surpreendido com a aplicação da norma impugnada, de forma a justificar a alegação de inconstitucionalidade posterior à decisão recorrida, pois que a interpretação adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça quanto aos preceitos impugnados – merece particular referência, a seguir, o nº 3 do artigo 729 º – corresponde ao seu sentido meramente literal; convém, aliás, não esquecer que o mesmo recorrente já foi colocado, pelo Tribunal da Relação do Porto, perante o problema da apresentação tardia de documentos – embora a questão se colocasse, naturalmente, relativamente ao recurso de apelação e, portanto, envolvesse outros preceitos. Em relação ao nº 3 do artigo 729º, e para além de valer o que se disse, a verdade é que o Supremo Tribunal de Justiça nem sequer colocou a hipótese de o aplicar, não cabendo naturalmente no âmbito de um recurso de constitucionalidade avaliar se deveria ou não tê-lo sido.
4. Estão, pois, reunidas as condições para que se proceda à emissão da decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Assim, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido, fixando-se a taxa de justiça em 6 ucs.»
2. Inconformado, o recorrente veio reclamar para a conferência, nos termos previstos no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, sustentando ter invocado oportunamente a inconstitucionalidade que pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, em síntese, pelas seguintes razões: a lei apenas exige que a questão de constitucionaldiade seja suscitada 'estando o processo ainda em curso', não definindo o momento em que deve ser colocada; não poderia deixar de ser assim, porque 'a questão da inconstitucionalidade é pela sua própria natureza uma ‘questão nova’ (...). Assim sendo, o ‘momento processualmente adequado’ para a suscitar será sempre aquele em que a decisão recorrida aplique uma norma inconstitucional – ou uma sua interpretação – ou resulte da mesma uma interpretação inequívoca nesse sentido'; só com a notificação do acórdão recorrido é que 'tomou conhecimento da determinada interpretação' das normas que pretende sejam agora apreciadas; não poderia ter 'adivinhado' antes que
'interpretação o Supremo Tribunal ia adoptar'; e, aliás, o Supremo Tribunal de Justiça conheceu da questão de inconstitucionalidade, embora não tenha chegado a analisar a 'essência das questões invocadas'. A B respondeu, pronunciando-se no sentido de que a reclamação deve ser indeferida.
3. A reclamação não pode proceder, pelas razões apontadas na decisão reclamada e para as quais se remete. Sempre se acrescenta, todavia, o seguinte: Em primeiro lugar, que o reclamante nada opõe à exclusão do objecto do recurso do nº 3 do artigo 729º do Código de Processo Civil pela razão de não ter sido aplicado na decisão recorrida; entende-se, portanto, que aceita a decisão neste ponto. Em segundo lugar, e quanto à questão de saber se a inconstitucionalidade que pretende apreciada foi ou não oportunamente suscitada, cumpre apenas observar que, ao exigir que a questão seja colocada perante o tribunal recorrido de forma a que ele esteja obrigado a dela conhecer, a lei está a definir o que significa suscitá-la 'durante o processo'; e foi justamente essa exigência, como se diz na decisão reclamada, que não foi cumprida. Mais se observa que, tendo o Supremo Tribunal de Justiça aplicado as normas impugnadas, como igualmente ali se disse, no seu sentido literal, e sendo obviamente previsível a sua aplicação, não pode de forma alguma aceitar-se que está em causa uma 'questão nova' ou que só com a notificação da decisão recorrida é que o recorrente poderia suscitar a inconstitucionalidade. Finalmente, é irrelevante, do ponto de vista do preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, saber se o Supremo Tribunal de Justiça conheceu ou não da questão, ainda que sucintamente, como afirma o reclamante, já que em nada se altera a exigência de tais pressupostos. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão reclamada. Custas pelo reclamante, sem prejuízo do apoio judiciário concedido, fixando-se a taxa de justiça em 15 ucs. Lisboa, 15 de Novembro de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida