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Proc. nº 722/01 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A, identificada nos autos, impugnou judicialmente a liquidação da receita fiscal autárquica denominada 'compensação por despesas de fiscalização de obras', efectuada pela Câmara Municipal de Lisboa, na sequência da abertura de valas no subsolo do domínio público, para colocação ou reparação de infra-estruturas de telecomunicações.
O Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa julgou a impugnação improcedente por ter ocorrido a excepção da caducidade do direito de acção, absolvendo a Câmara do pedido.
Inconformada com a decisão, a recorrente interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo que, por acórdão de fls. 126 e segs. decidiu que a impugnação era tempestiva, por se tratar de uma impugnação/reclamação necessária, seguindo o regime previsto no artigo 123º nº. 1 alínea a) do CPT e não no nº. 2 da mesma norma, como tinha decidido o tribunal a quo.
Quanto à natureza do tributo impugnado, considerou aquele aresto tratar-se de uma contribuição especial, porquanto apesar de a importância exigida pela Câmara respeitar ao 'pagamento do acréscimo da actividade municipal, provocada pelas obras', tal actividade 'não visa a satisfação individual do sujeito passivo do tributo em causa – a impugnante', pois a abertura de valas na via pública se revela 'indispensável ao cumprimento do contrato de concessão de serviço público de telecomunicações (...) e, portanto para satisfação do interesse público.'; por seu turno, 'os encargos que tais obras acarretam para a autarquia visam também a satisfação de necessidades colectivas' pelo que 'não se provou a existência clara de qualquer vantagem suficientemente individualizada e caracterizada para a impugnante, que possa tomar-se como contraprestação da pretendida taxa.'
Assim, a referida 'compensação pela modificação da resistência dos pavimentos e pelas despesas de fiscalização', configura-se como uma contribuição especial, que deve ser tratada como um verdadeiro imposto, pelo que, tendo sido criada pela CML, viola o artigo 168º nº. 1 alínea l) da CRP, na versão aplicável; nesta conformidade, o acórdão recorrido recusou a aplicação do artigo
39º nº. 2 do Regulamento de Obras na Via Pública da Câmara Municipal de Lisboa
(Edital 156/63 de 21/09/63) e Tabela anexa, por inconstitucionalidade orgânica.
Deste acórdão interpôs o Ministério Público, recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea a) da LTC.
Nas suas alegações, o Magistrado do Ministério Público, junto deste Tribunal, pugnou pela atribuição da qualificação de taxa ao invocado tributo, concluindo do seguinte modo:
'1º - Estando o pagamento à autarquia da 'compensação pela modificação da resistência dos pavimentos e pelas despesas de fiscalização' directa e concretamente conexionado com obras levadas a cabo na via pública por certa entidade – funcionando, deste modo, o pagamento de tal 'tributo' como contrapartida de uma intervenção consentida em bens do domínio público, cuja guarda ou tutela está cometida aos municípios – verifica-se a bilateralidade de tal prestação, que caracteriza o núcleo essencial do conceito de 'taxa'.
2º - A circunstância de o interesse 'individual' da entidade devedora coincidir com o 'interesse público' na realização das atribuições postas a cargo de empresa concessionária sobre que recai a obrigação de pagamento daquele tributo não preclude a dita 'bilateralidade' – nada obstando a que possam ser devidas 'taxas' por certa entidade pública em benefício de outra pessoa colectiva pública.
3º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de constitucionalidade da norma regulamentar questionada, estranha ao âmbito da 'Constituição fiscal' e da reserva de lei que caracteriza o conceito jurídico-constitucional de 'imposto'.
Cumpre decidir.
2 – Constitui objecto do recurso a norma ínsita no artigo 39º nº 2 do Regulamento de Obras na Via Pública (ROVP) editado pela Câmara Municipal de Lisboa e publicado no respectivo Diário Municipal de 21/9/63 intepretada em termos de sujeitar a A ao pagamento da taxa aí prevista devida 'pela modificação da resistência dos pavimentos e despesas de fiscalização' em virtude de trabalhos executados pela A nas faixas de rodagem e passeios de arruamentos para colocação ou reparação de infra-estruturas de telecomunicações.
Como se deixou relatado, para o acórdão recorrido, o tributo em causa não é qualificável como taxa, mas como 'contribuição especial' que deve ser tratada como imposto, o que levou à recusa de aplicação da referida norma por inconstitucionalidade orgânica (violação do disposto no artigo 168º nº 1 alínea i) da CRP).
Para chegar a uma tal conclusão, a decisão impugnada fixa-se num critério de distinção entre taxa e imposto assente na unilateralidade ou bilateralidade da prestação exigida pelo ente público, sendo que na taxa a receita produzida tem a sua contrapartida numa actividade do ente público dirigida especificamente ao sujeito a quem é exigida a prestação; procurando seguir na esteira da jurisprudência do Tribunal Constitucional, entende ainda que a taxa deve ter como contrapartida a satisfação de uma necessidade individual de um bem semi-público por parte do sujeito ao tributo.
Entrando na aplicação do direito aos factos, não põe o mesmo acórdão em causa que 'foram as obras efectuadas pela impugnante na via pública que determinaram a actividade fiscalizadora da CML e, provavelmente, lhe trarão encargos acrescidos, pela modificação da resistência dos pavimentos'; e, por isso, entende que existe 'uma relação directa entre as referidas obras e a fiscalização efectuada pela CML ', visando a importância exigida pela CML 'o pagamento do acréscimo da actividade municipal, provocado pelas ditas obras'.
Simplesmente, não se verificaria, no caso, a satisfação de um interesse individual ou individualizável da A, uma vez que as obras por esta efectuadas visavam a satisfação de um interesse público, no cumprimento do contrato de concessão de serviço público; por outro lado, os encargos da Câmara visam também a satisfação de necessidade colectivas, no âmbito da salubridade pública, saneamento básico ambiente e qualidade de vida do respectivo agregado populacional.
É, assim, por esta via que o acórdão recorrido qualifica o tributo em causa como 'contribuição especial' e não como 'taxa'.
Que dizer ?
3 – Cumpriria, em princípio, a este Tribunal, face ao julgado e aos termos em que ele é impugnado pelo Magistrado recorrente, apreciar qual a natureza do tributo imposto pela Câmara Municipal de Lisboa à A, para, em função da resposta dada a esta questão e porque se trata de norma editada por aquele
órgão autárquico, resolver se esta norma enferma de inconstitucionalidade orgânica.
Torna-se, porém, irrelevante apreciar e decidir aquela primeira questão – e, logo, também, a segunda - considerando que, mesmo a entender-se, na esteira do julgado pelo Tribunal Central Administrativo, que se não estava perante uma taxa, não poderia o Tribunal Constitucional julgar a norma organicamente inconstitucional.
E isto por uma simples razão: é que o tributo imposto foi criado por um regulamento municipal aprovado em 19/6/63, publicado, como se disse, no Diário Municipal de 21/9/63, anterior, pois, à Constituição de 76 e quando vigorava a Constituição de 33.
Ora, como Tribunal Constitucional tem decidido – e, precisamente, quando apreciou a constitucionalidade de outros tributos (taxas ou impostos) criados por regulamento – designadamente nos Acórdãos nºs 2/84, 261/86 e 443/87, publicados in Acórdãos do Tribunal Constitucional 2º vol. p. 198, 8º vol. p. 351 e 10º vol. p. 541, dado o disposto no artigo 290 nº 2º da CRP e a circunstância de, no caso, se tratar de direito ordinário anterior á entrada em vigor da Constitução, a permanência deste direito só é excluída se se verificar discrepância material com a mesma Constituição.
Escreveu-se, a propósito, no citado Acórdão nº 261/86:
'(...) compreende-se que o legislador constituinte, sob pena de vir a criar um hiato ou vazio global de regulamentação jurídica, haja desejado assegurar uma continuidade fundamental do ordenamento, apenas dela excluindo aquilo que intoleravelmente brigasse com a nova ordem de valores constitucional; entretanto, e por outro lado, não se compreenderia que se fosse averiguar da regularidade 'formal' (no sentido complexivo da palavra) de determinadas normas jurídicas recorrendo a critérios e princípios constitucionais que só posteriormente à emissão delas vieram a ser consagrados'.
E, mais adiante, afrontando a questão de o tributo então em causa poder infringir o 'princípio da legalidade tributária', considerou-se no mesmo acórdão:
'(...) assumindo o princípio da legalidade dos impostos uma dimensão
'garantística' dos cidadãos – isto é, traduzindo-se verdadeiramente num seu
'direito fundamental' (...) poderia dizer-se que a violação dele transcende a mera infracção de regras constitucionais de competência e de forma e se consubstancia, em rigor, uma inconstitucionalidade 'material'. E a verdade é que essa violação assim era e vem sendo considerada, não apenas na jurisprudência como na doutrina constitucionalista e fiscalista (a essa ideia tendo aderido, o que sem constangimento se reconhece, o ora relator, com referência à Constituição de 1933.cf. J. M. Cardoso da Costa, Curso de Direito Fiscal, 2º ed. Pp. 180 e segs.). Smplesmente, do que aqui se trata não é de saber se uma tal violação (admitindo que ela ocorra no caso) deve receber em geral (ou num plano meramente dogmático), a qualificação referida, mas tão-só se deve recebê-la para os efeitos do artigo 293º da Constituição (norma que então correspondia ao actual artigo 290º nº 2). Ou seja: para o efeito da 'caducidade' (que a tanto, na hipótese, se reconduz a 'inconstitucionalidade') do direito pré-constitucional. Ora, como quer que seja, subsiste que a infracção ao princípio da legalidade dos impostos radica sempre num vício relativo à 'forma' (em sentido amplo) de determinadas normas, de modo que, em se tratando de direito anterior à Constituição, a sua relevância implicará que se leve em conta,
'retroactivamente', o que a nova Constituição veio dispor em matéria de repartição de competência normativa ou de exigências formais dos diplomas. Isto, porém, não se vê que esteja de harmonia com o sentido do artigo 293º da nossa lei fundamental (ut supra). A não se entenderem as coisas como vem de referir-se, dir-se-ia então que a
'caducidade' do direito anterior ocorreria, pelo menos, quando não se houvesse nele observado uma forma correspondente à exigida pela nova Constituição. Só que este outro entendimento levaria pressuposta, por sua vez, uma particular sensibilidade do legislador constituinte de 1976 aos precedentes critérios orgânico-formais de legitimação constitucional, o que não é muito plausível em todas as situações.
De qualquer modo, por último e em definitivo, não se afigura crível
– reportando-nos agora especificamente aos reflexos do artigo 293º no domínio dos impostos – que haja estado nas intenções do mesmo legislador constituinte inconstitucionalizar a posteriori, por motivos exclusivamente à 'forma' como foram estabelecidas, quaisquer figuras tributárias. Não é isso crível atenta a sua preocupação de salvaguardar basicamente a continuidade do ordenamento jurídico, e atenta, em particular, a imprevisibilidade das consequências de tal solução, dados os seus imediatos reflexos financeiros, sobre o funcionamento das instituições'.
Ora, no caso, se discrepância existe, ela situar-se-á igualmente ao nível da
'forma' (tomada também em sentido amplo) – e foi nesse nível que o acórdão julgou a norma inconstitucional - não se vislumbrando ofensa aos 'princípios' consignados na Constituição.
Não pode, assim, manter-se o julgado de inconstitucioalidade recorrido.
4 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se conceder provimento ao recurso, devendo o acórdão recorrido ser reformado de acordo com o presente juízo de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Outubro de 2002- Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da