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Processo nº 437/02 Plenário Relator: Cons. Benjamim Rodrigues
A – O relatório
1. REQUERENTES E OBJECTO DO PROCESSO.
1.1. Um Grupo de 25 deputados do Partido Socialista requereu a declaração abstracta sucessiva de constitucionalidade das normas constantes dos artigos 4º,
7º e 9º da Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio (primeira alteração à Lei n.º
109-B/2001, de 27 de Dezembro que aprova o Orçamento do Estado para 2002).
1.2 Estes preceitos são do seguinte teor: Artigo 4º Cláusula de estabilidade orçamental
1 – Sem prejuízo do disposto no art.º 2º da Lei n.º 109-B/2001, de 27 de Dezembro, ficam cativos 387 431 054 euros das dotações inscritas no capítulo 50 do Orçamento do Estado em financiamento nacional, a repartir por ministério, mediante despacho do Ministro das Finanças.
2- A desactivação de verbas incluídas no montante referido no número anterior só poderá fazer-se por razões excepcionais, designadamente para fazer face ao pagamento de despesas dos anos anteriores, estando sempre sujeita à autorização do Governo, través do Ministro das Finanças, que decidirá os montantes a descativar em função da evolução da execução orçamental.
Artigo 7º Endividamento municipal em 2002
1 – Por forma a garantir o cumprimento dos objectivos do Governo em matéria do défice público para o conjunto do sector público administrativo, no qual se integram as autarquias locais, deverão os municípios, excepcionalmente, observar as seguintes regras: a. Não poderão ser contraídos quaisquer empréstimos que impliquem o aumento do seu endividamento líquido no decurso do ano orçamental, a partir da entrada em vigor da presente lei; b. O disposto na alínea anterior aplica-se igualmente às empresas municipais; c. Ficam excepcionadas das alíneas anteriores os empréstimos destinados a programas de habitação social promovidos pelos municípios, à construção e reabilitação das infra-estruturas no âmbito do EURO 2004 e ao financiamento de projectos com comparticipação de fundos comunitários, devendo, no entanto, ser utilizados prioritariamente os recursos financeiros próprios para esse efeito.
2 – Caso não seja cumprido o disposto no número anterior, poderá o Governo determinar a redução, em proporção do incumprimento verificado, das transferências a efectuar, nos termos da Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto, após audição do respectivo município.
Artigo 9º Colocação de funcionários e agentes pertencentes a serviços e organismos que sejam objecto de extinção, fusão ou reestrururação
1- Fica o Governo autorizado a rever o Decreto-Lei n.º 353/99, de 13 de Dezembro, respeitante ao regime de colocação de funcionários e agentes pertencentes a serviços e organismos que sejam objecto de extinção, fusão ou reestruturação, no sentido de flexibilizar a reafectação de pessoal cuja colocação não seja directamente determinada pelos diplomas legais que procedam à extinção, fusão ou reestruturação desses serviços e organismos.
2- Com esse objecto e sentido a legislação a adoptar pode estabelecer: a. A plena produção de efeitos das alterações orgânicas independentemente do desenvolvimento do processo de reafectação do pessoal; b. A possibilidade de os diplomas legais que extingam, fundam ou reestruturem serviços ou organismos definirem critérios de colocação de pessoal a transferir para os serviços que absorvam total ou parcialmente as atribuições e competências dos serviços abrangidos, com respeito pelos princípios da transparência, equidade e prevalência do interesse público; c. A criação, junto da secretaria geral de cada ministério de um quadro de supranumerários que integre o pessoal que não haja sido directamente colocado nos novos serviços; d. A definição de mecanismos e procedimentos tendentes à reafectação célere a outros serviços ou organismos do pessoal integrado nos quadros supranumerários; e. A definição de mecanismos de flexibilização dos regimes de reclassificação e reconversão profissional aplicáveis ao pessoal integrado nos serviços em processo de extinção, fusão ou reestruturação, tendo em vista assegurar o melhor aproveitamento do pessoal e alargar o espectro de saídas profissionais; f. O estabelecimento de mecanismos que permitam à Direcção-Geral da Administração Pública constituir-se como interlocutor na política activa de emprego, com base na mobilidade de pessoal; g. O regime de penalização aplicável aos serviços que recusem, injustificadamente, a colocação de pessoal nos quadros de supranumerários; h. A definição dos direitos e deveres do pessoal integrado nos quadros de supranumerários, designadamente a possibilidade de redução progressiva do vencimento de exercício, a graduar em função do período de inactividade, ou de passagem á situação de licença sem vencimento de longa duração, no caso de recusa injustificada da colocação oferecida; i. A possibilidade de opção por mecanismos excepcionais de descongestionamento voluntário a definir, aplicáveis ao pessoal integrado nos quadros supranumerários; j. A possibilidade de transferir dos orçamentos e serviços a extinguir, fundir ou reestruturar para as secretarias-gerais, e destas para os serviços onde os funcionários sejam colocados, as verbas afectas aos encargos com o pessoal a reafectar.
1. FUNDAMENTOS DO PEDIDO Como fundamentos do seu pedido pretextaram o seguinte:
«1. O art.º 4º da Lei n.º 16º-A/2002, de 31 de Maio procede a uma cativação de
387 431 054 euros do Capítulo 50 do Orçamento do Estado, a repartir por Ministérios, mediante despacho do Ministro das Finanças. A fórmula usada afigura-se desconforme à Constituição, desde logo porque não é compatível com o disposto no n.º 1, alínea a) e no n.º 3 do art.º 105º da Lei Fundamental, os quais exigem discriminação e especificação das despesas e contraria o preceituado no art.º 105, n.º 4 da Constituição.
2. O artigo 7º da Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio é merecedor de um juízo similar de inconstitucionalidade. O preceito do n.º 2 do art.º 7º da Lei que altera o Orçamento de Estado para 2002 determina que 'caso não seja cumprido o disposto no número anterior, poderá o Governo determinar a redução, em proporção do incumprimento observado, das transferências a efectuar, nos termos da Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto (...).
Apesar da deficiente técnica legislativa, a norma aprovada pela maioria parlamentar visa conceder ao Governo a possibilidade de usufruir, de imediato, em derrogação da Lei das finanças locais, do poder de sancionar autarquias locais que não cumpram o disposto no orçamento suplementar, aplicando critérios puramente político-administrativos na imposição concreta das sanções, fixados mediante acto administrativo, porventura sem caracter geral e abstracto. São, por esta forma, contrariados três princípios e normas constitucionais: a. o princípio da autonomia do poder local (art.º 6º, n.º 1 da CRP); b. as normas que estabelecem que o regime das finanças locais é matéria de reserva de lei [art.º 238º, n.º 2 e 165, n.º 1 alínea q)]; c. e a norma do art.º 112º, n.º 6, que proíbe que qualquer lei possa conferir a actos de outra natureza, nomeadamente actos não legislativos, o poder de modificar, suspender ou revogar qualquer preceito legislativo. Saliente-se, ainda, que o estabelecimento de uma forma de tutela sancionatória, como a tentada neste artigo, contraria uma das decorrências do princípio da autonomia do poder local que resulta do art.º 242º da Constituição que afasta este tipo de tutela [cfr. neste sentido, por exemplo, Freitas do Amaral;Curso de Direito Administrativo, vol. I, 2ª ed., 1994, pág. 706]
3. O art.º 9º da Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio viola o art.º 53º da Constituição, o qual consagra o direito à segurança no emprego, enquanto um direito fundamental, da máxima dignidade. No contexto da Função Pública, esse direito tem uma configuração clara: os seus trabalhadores desfrutam de um vínculo vitalício, que não pode ser desfeito no quadro actual: Esta segurança máxima foi substituída na Lei n.º 16-A/ 2002, de 31 de Maio pela insegurança total para alguns trabalhadores. De facto, e de acordo com as alíneas do n.º 2 do art.º 9º da Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio, esses trabalhadores não só podem ver-se abrangidos por esquemas de reafectação e de flexibilização dos mecanismos de reclassificação e de reconversão, como podem ver o seu vencimento reduzido. Além disso o art.º 9º da Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio prevê, inclusive, a possibilidade de alguns trabalhadores serem obrigados a passar à situação de licença sem vencimento de longa duração. Isso tem um significado claro: o trabalhador vê o seu vínculo com a administração supenso, por um período indeterminado e prolongado no tempo, não recebendo qualquer remuneração e não podendo progredir na carreira. O período de licença não conta, ainda, para efeitos de aposentação. Sem ser um despedimento formal, equivale em muitos dos efeitos a um despedimento tendo, aliás, a característica singular de não proporcionar ao trabalhador o acesso ao subsídio de desemprego, apesar de ser retirado ao trabalhador o direito á remuneração. O art.º 9º da Lei n.º 16-A/2002, de 31 de Maio, é ainda inconstitucional uma vez que, contendo uma autorização legislativa, não respeita o art.º 165º, n.º 2 da Constituição, por não definir com suficiente densidade o objecto, o sentido e a extensão dessa autorização. Viola-se, ainda, o direito de negociação e a participação dos trabalhadores, consagrado na Constituição [art.ºs 56º, n.º 2, al. a] e na Lei (n.º 23/98, de 26 de Maio)».
1. AUDIÇÃO DO ÓRGÃO AUTOR DAS NORMAS Ouvido o Presidente da Assembleia da República sobre o pedido veio ao processo oferecer o merecimento dos autos e juntar ainda os Diários da Assembleia da República que contêm os trabalhos preparatórios relativos ao diploma em apreciação.
2. MEMORANDO E DEBATE Elaborado o memorando a que alude o art.º 63º da Lei Orgânica de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional pelo presidente do Tribunal e entregue o mesmo a todos os juizes foi aquela peça processual sujeita debate, tendo-se aí fixado a orientação do Tribunal. Cumpre assim decidir de harmonia com o que aí se estabeleceu.
B – A fundamentação
3. Da (in)constitucionalidade do art.º 4º da Lei n.º 16-A/2002 Os requerentes questionam a constitucionalidade desta norma com base no argumento de que ela ofenderá os princípios da especificação e discriminação das despesas, com o que violaria o disposto no art.º 105º n.º 1 al. a), n.º 3 e n.º
5 da Constituição da República Portuguesa. Diversa foi, porém, a conclusão do tribunal. Não há dúvida que a Constituição da República Portuguesa afirma, de forma clara, no artigo 105º n.ºs 1 al. a), 3 e 4, os princípios da discrimimação e da especificação das despesas, conquanto cingindo-a apenas aos planos orgânico e funcional (deixando de fora uma exigência constitucional de uma classificação económica). Segundo ensinou José Joaquim Teixeira Ribeiro (Lições de Finanças Públicas, 5ª ed. refundida e actualizada, 1995, a págs. 84) na classificação orgânica as despesas distribuem-se por Encargos Gerais da Nação, os de cada um dos ministérios; dentro e cada departamento, por organismos (capítulos; dentro de cada capítulo, por serviços (divisões) e eventualmente subdivisões, dentro de cada divisão ou subdivisão, por artigos, números e, porventura, alíneas'. Por seu lado, 'temos a classificação funcional – a classificação das despesas segundo a natureza das funções exercidas pelo Estado e que segue o esquema usado pelo Fundo Monetário Internacional'. Estamos, de resto, em face de princípios que têm sido assumidos pelas diferentes Leis de Enquadramento Orçamental que se têm sucedido, como aconteceu com a última (Lei n.º 91/2001, de 20 de Agosto, alterada posteriormente pela designada Lei de Estabilidade Orçamental n.º
2/2002, de 28 de Agosto). A discriminação das despesas (e das receitas) tende a cumprir uma dupla função, ambas explicitadas no n.º 4 do mesmo art.º 105º: uma é a que o orçamento deve incluir todas as despesas que entrecruzadas com as receitas, igualmente sujeitas a discriminação, revelem o cumprimento do princípio de um orçamento equilibrado e unitário; a outra é a de que, sendo da competência exclusiva da Assembleia a aprovação dessa especificação não possa, em princípio, o Governo na sua execução vir a alterá-la. Fala-se a este propósito num um princípio da 'inalterabilidade governamental do orçamento'
(cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da república Portuguesa, 3ª edição, Coimbra, 1993, pág. 469). Mas diz-se em princípio, porque, com um inteiro respeito por tal princípio democrático, o n.º 4 do art.º 105º permite, entre o mais que dele consta, que a lei defina 'os critérios que deverão presidir às alterações que durante a execução, poderão ser introduzidas pelo Governo nas rubricas de classificação orgânica no âmbito de cada programa orçamental aprovado pela Assembleia da República, tendo em vista a sua plena realização'. Ora, em nenhuma destas suas densificações sai ofendido o princípio da especificação das despesas. O que resulta do controvertido artigo 4º da Lei n.º
16-A/2002 é tão só uma decisão antecipada da própria Assembleia de não gastar, dentro do montante global aí apontado de 387 431 054 euros, as dotações inscritas no capítulo 50 do Orçamento (rectificado) do Estado em financiamento nacional, a repartir por ministério, mediante despacho do Ministro das Finanças. Deste modo, a cativação representa um simples meio jurídico de reter o nível de despesas abaixo dos montantes discriminados para cada ministério, traduzindo-se num simples meio de execução orçamental adequadamente apto, sob o ponto de vista financeiro, para poder contribuir para a redução do défice. No caso, não se verifica qualquer adulteração da discriminação orgânica que foi aprovada pela Assembleia, dado que a cativação acontece dentro das dotações inscritas no capítulo 50 de cada ministério. A operacionalidade deste meio apenas se poderia traduzir, a manterem-se os fluxos previsionados das receitas e o nível autorizado das restantes despesas a um orçamento superavitário: mas este é sempre um orçamento equilibrado', nas palavras de J. J. Teixeira Ribeiro (Lições de Finanças Públicas, 5ª edição. Coimbra, 1995, págs. 91, nota 2).
Nesta perspectiva não ocorre qualquer paralelismo com as situações que foram equacionadas e resolvidas no sentido da inconstitucionalidade, no primeiro caso por unanimidade, e no segundo por maioria, nos acórdãos deste tribunal n.ºs
144/85 e 267/88. No aresto apontado em primeiro lugar - e para o que aqui importa relevar - estava-se perante uma norma da Lei do Orçamento para o respectivo ano em que se autorizava o Governo a, na execução do mesmo Orçamento, efectuar transferências, sem qualquer limitação quantitativa, dentro das verbas nele inscritas para
'Investimentos do Plano', independentemente dos ministérios e das classificações funcionais das despesas. O Tribunal considerou que esta norma atentava contra a regra da especificação orçamental, e era consequentemente inconstitucional, por o Governo ficar com a possibilidade de, ao longo do ano, modificar como quisesse a distribuição – 'a discriminação orgânica e funcional das verbas em causa. Diferentemente se passam as coisas no preceito em apreço, pois aqui mantém-se a especificação orgânica das despesas constantes do capítulo 50 do Orçamento do Estado, antes estabelecida pela Assembleia da República, dispondo-se antecipadamente, já em sede de execução do Orçamento, apenas no sentido de as não gastar, a não nos casos excepcionais constantes do n.º 2 do mesmo artigo. E no que diz respeito ao Acórdão n.º 267/88 (AcTC, 12º, págs. 293 e ss) em que estava em causa a norma do artigo 19º n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 2/88, de 26 de Janeiro, o Tribunal considerou que, não obstante 'a aprovação do Orçamento de Estado não implica necessariamente que os serviços tenham sempre de utilizar os créditos abertos até ao esgotamento, pois que apenas em relação às despesas obrigatórias - decorrentes de leis preexistentes ou de contratos - se verifica o
ónus de utilização forçada', tudo se passa de modo diferente no caso da «dotação concorrencial», a que o dito preceito estabelecia. «É que ela - continuou ele a ponderar - opera não apenas ao nível da execução orçamental, mas sim, e desde logo, ao nível da sua previsão. Na verdade, o que há de verdadeiramente novo na dotação negativa é o facto de as despesas previstas não poderem ser efectivamente realizadas pelo valor inscrito, visto que a respectiva soma excede o montante das receitas orçamentadas. A previsão de cada despesa só pode ter aquele valor se deduzido do equivalente à dotação concorrencial. Ou seja: a previsão de despesas não pode ter efectivamente o valor enunciado nos mapas de despesas; a especificação das despesas está sob reserva da dotação concorrencial. Das despesas especificadas há necessariamente uma ou mais que não podem ser realizadas no todo ou em parte, até à concorrência de 33 milhões de contos» (ibidem, págs. 382-383). Segundo a óptica deste acórdão, a dotação concorrencial, prevista naquele artigo
19º n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 2/88, traduzia-se, ao fim e ao cabo, num instrumento jurídico que, atenta a sua mobilidade orgânica dentro de cujos contornos dogmáticos estava estruturado, já que se estendia, não apenas às verbas para investimentos (entretanto denominados investimentos do PIDDAC), mas também à generalidade das despesas de funcionamento do Estado, tinha como consequência necessária que a previsão de cada despesa apenas pudesse ser considerada, para efeitos de poder ser efectivamente realizada, pelo valor constante da sua previsão deduzido do equivalente á dotação concorrencial que sobre ela poderia vir a recair, em sede de execução do orçamento, e não pelo valor inscrito. Ora, na previsão normativa aqui sob análise, em nada é alterada a previsão da despesa orgânica previamente estabelecida: o seu valor previsional não é alterado, podendo ser efectivamente realizado pelo valor inscrito, caso seja necessário para acautelar as situações de cumprimento referidas no n.º 2 do art.º 4º. O que a Assembleia da República tomou foi - repete-se - apenas uma decisão antecipada da não gastar as verbas cativadas, a menos que fosse caso das ressalvas contempladas em tal n.º 2.
4. Da questão da (in)constitucionalidade do art.º 7º, n.º 2 da Lei n.º
16-A/2002 Neste âmbito os requerentes questionam a compatibilidade constitucional do n.º 2 do art.º 7º da Lei n.º 16-A/2002 com os artigos 6º, n.º 1, 112º n.º 6, 165º, n.º
1, alínea q), 238º n.º 2 e 242º da Constituição da República Portuguesa. Mas também sem razão como concluiu este tribunal. No n.º 1 do referido artigo 7º o legislador orçamental limitou-se a fixar um conjunto de 'regras de boa conduta financeira', tidas por ele como necessárias para se garantir 'o cumprimento dos objectivos do Governo em matéria de défice público para o conjunto do sector público administrativo no qual se integram as autarquias locais. E fê-lo em termos estritamente precisos e vinculados que nem sequer vêm postos em causa pelos requerentes. A sua dúvida prende-se com os termos em que, está prevista, no n.º 2 do mesmo artigo, a reacção jurídica contra o eventual incumprimento por parte dos municípios dessas regras de boa conduta financeira pré-estabelecidas para o período restante da execução orçamental: 'caso não seja cumprido o disposto no número anterior, poderá o Governo determinar a redução, em proporção do incumprimento verificado, das transferências a efectuar, nos termos da Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto, após audição do respectivo município'. Tal como a jurisprudência deste tribunal se tem proficientemente pronunciado, o que se proíbe no n.º 6 do art.º 112º da CRP é, seguindo a afirmação constante do Acórdão n.º 586/01 (DR, I, 25/1/2002), somente que a «a lei se 'rebaixe', de modo a determinar que a matéria sobre a qual incide possa ser ulteriormente regulada, diferentemente, por um acto normativo de dignidade inferior, como designadamente regulamentos do Executivo». Ora, no caso, o preceito em causa não veio conceder ao Governo a faculdade de alterar ele próprio, por outra via que não a legislativa, o regime estabelecido pela lei quanto ao montante das transferências a efectuar anualmente do Orçamento do Estado para os municípios, ora constante da Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto. O que o preceito instituiu e concedeu ao Governo foi uma simples faculdade, que nem sequer se poderá ter por totalmente sinónima da atribuição de qualquer discricionariedade administrativa, para, verificados certos pressupostos rigorosamente predefinidos, reduzir, na circunstância concreta, e cumpridos certos deveres procedimentais - dever de audição do município - e princípios substanciais, como o da proporcionalidade, este abertamente referido ('em proporção do incumprimento verificado'), o montante das transferências a efectuar nos termos da Lei n.º 42/98, de 6 de Agosto, em vigor. E diz-se que o preceito em causa confere um simples faculdade, porque nada nele aponta para a conformação desse poder que foi conferido ao Governo enquanto um dever de necessariamente agir em caso de incumprimento. Estamos, pois, no caso, perante uma hipótese em que o próprio legislador define por completo, na lei, o regime jurídico aplicável, deixando, todavia, nele, espaços jurídicos abertos a uma posterior avaliação do Governo sem que os termos em que esta haja de fazer-se tenham sido deixados para um acto normativo de dignidade inferior ao da lei. Deste modo temos de concluir que a norma em causa não afronta a proibição constante do art.º 112º n.º 6 da Constituição da República Portuguesa. Do mesmo passo, e pelas mesmas razões, se tem de concluir não afrontar, também, a mesma o princípio da reserva de lei constante dos art.ºs 238º, n.º 2 e 165º, n.º 1, alínea q) da mesma Lei Fundamental. Importa, agora, encarar a imputação feita de que o remédio jurídico que está previsto, para o caso de incumprimento no n.º 2 do art.º 7º da Lei n.º 16-A/2002 das 'denominadas regras de boa conduta financeira' viola o princípio da autonomia do poder local em geral consagrado no artigo 6º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e da decorrência que dele se extrai do princípio da exclusão, referido no art.º 242º da mesma Lei fundamental, da aplicação, no mesmo domínio, de uma tutela 'sancionatória'. O n.º 1 do artigo 242º da CRP estatui que 'a tutela administrativa sobre as autarquias locais consiste na verificação do cumprimento da lei por parte dos
órgãos autárquicos e é exercida nos casos e segundo as formas previstas na lei'. Tais termos apontam inexoravelmente para a inadmissibilidade da existência de qualquer tipo de tutela substitutiva, correctiva, homologatória ou orientadora
(Cf. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, p. 897; António Cândido de Oliveira, 'Poderes de intervenção do Estado em matéria de urbanismo. Autonomia Local. Tutela', in Scientia Iurídica, t. XLI, 1992, pp. 171 e ss.) sobre as autarquias locais. A sua admissibilidade negaria intrinsecamente o espaço jurídico de liberdade de autodeterminação e decisão jurídicas que são próprios e conaturais do reconhecimento de qualquer poder de autonomia (cf. José Casalta Nabais, 'A Autonomia Local', in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Afonso Rodrigues Queiró, II, Boletim da Faculdade de Direito, número especial, Coimbra, 1993). Mas, ao admitir nos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo a existência de 'medidas tutelares restritivas da autonomia local', obrigando a que as mesmas sejam
'precedidas de parecer de um órgão autárquico, nos termos definir por lei' e ao prever a dissolução de órgãos autárquicos, que só 'pode ter por causa acções ou omissões ilegais graves', a nossa Lei Fundamental não deixou de reconhecer estarem as autarquias sujeitas a formas sancionatórias de tutela de legalidade
(cfr. neste sentido, o Acórdão n.º 260/98 in AcTC, 39º vol. 1998, págs. 107 e Acórdão 379/96, in AcTC, 33º vol., 1996, págs. 595 e segs.). Ora, no caso, e conquanto a utilização da medida 'tutelar' tenha sido deixada pelo legislador ao critério facultativo (ou maxime discricionário) do Governo, o que é certo é que todos os seus demais pressupostos se encontram enunciados de forma taxativa na lei (n.º 1 do art.º 7º). Por outro lado, igualmente, todo o critério de decisão da medida que é susceptível de ser aplicada consta igualmente da lei (n.º 2 do art.º 7º). Ao Governo, como se repete, apenas foi deixada a liberdade de agir ou de não agir, verificados aqueles pressupostos. Estamos, neste caso, perante uma situação em que ao Governo apenas cabe uma função de puro controlo de legalidade das decisões administrativas tomadas sobre a matéria enunciada para seu cumprimento no n.º 1 do artigo 7º. A sua finalidade
é apenas a de verificar o cumprimento da lei por parte dos órgãos autárquicos, com o que acompanhando Diogo Freitas do Amaral, se poderá qualificá-la, também neste domínio, como sendo de tipo meramente verificativo' (Direito do Urbanismo. Sumários, Lisboa, 1993, p.61).
É claro que a lei prevê, no n.º 2 do art.º 7º, a aplicação de uma medida reactiva ou de reacção contra o incumprimento das regras de boa conduta financeira antes enunciadas. Mas não se trata de uma medida cuja aplicação esteja dependente, segundo a sua previsão legal, de qualquer juízo governamental sobre o merecimento, a utilidade ou a inconveniência das decisões tomadas pelas autarquias em vista dos fins que eventualmente se propuseram ao violar regras de conduta definidas no n.º 1 do art.º 7º. Quer os pressupostos da sua aplicação, quer a sua extensão, quer a sua natureza estão totalmente tipificadas na lei, congregando um bloco normativo exaustivamente previsto para ser cumprido numa determinada conjuntura. Assim sendo, mesmo que qualificada como 'sancionatória', como o fazem os requerentes, - qualificação esta que apenas encontrará arrimo na simples circunstância de se estar perante uma medida reactiva contra regras de conduta pré-estabelecidas em lei anterior, sempre a medida prevista no referido preceito deverá ser tida e entendida como integrando-se numa simples tutela de legalidade. Nesta medida, a possibilidade de redução de transferências para os municípios prevista no art.º 7º, n.º 2 da Lei n.º 16-A/2002 não é incompatível com os princípios do art.º 242º da CRP, nem por consequência com o princípio da autonomia local. De resto, cabe notar que se acha já prevista na Lei das Finanças Locais n.º
42/98, de 6 de Agosto, uma possibilidade paralela à discutida, sob os dois aspectos que se abordaram, embora versando naturalmente sobre uma situação diferente. Referimo-nos ao art.º 8º (na redacção da Lei n.º 94/2001, de 20 de Agosto. Diz ele o seguinte: 'quando as autarquias tenham dívidas definidas por sentença judicial transitada em julgado ou por elas não contestadas junto dos credores no prazo máximo de 60 dias após a respectiva data de vencimento, pode ser deduzida uma parcela às transferências resultantes da aplicação da presente lei, até ao limite de 15% do respectivo montante global'. Aliás, já o art.º 17º da Lei n.º 1/87, de 6 de Janeiro previa um regime semelhante.
5. Da questão de (in)constitucionalidade da norma do art.º 9º - recte das alíneas d), e) e h) do seu n.º 2 - da Lei n.º 16-A/2002 com o disposto nos art.ºs 53º, 56º, n.º 2 alínea a) e 165º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa
7.1. Muito embora as não especifiquem, os requerentes apenas põem em causa, pelos fundamentos que aduzem, as normas que constam das alíneas d), e) e h) do n.º 2 do art.º 9º, pois só elas contendem com as questões postas. A elas se cingirá, pois, o exame do tribunal.
7.2. Assim os requerentes pretextam que é violado o direito à segurança no emprego (artigo 53º da CRP), na medida em que, tendo esse direito, no contexto da função pública, a 'configuração clara' de um 'vínculo vitalício', este é substituído pela 'insegurança total quanto a alguns trabalhadores', os quais,
'não só podem ver-se abrangidos por esquemas de reafectação e de flexibilização dos mecanismos de reclassificação e reconversão, como podem ver o seu vencimento reduzido', para além de que podem ainda certos deles 'serem obrigados a passar à situação de licença sem vencimento de longa duração', o que tem o 'significado' e o alcance negativo que se descreve.
7.3. Afirmam, ainda, por outro lado, existir violação do art.º 165º, n.º 2, por se estar perante uma autorização legislativa que não define com suficiente densidade o respectivo objecto, sentido e extensão.
7.4. Finalmente sustentam que foi violado o direito de negociação e participação dos trabalhadores consagrado no art.º 56º, n.º 2, alínea a) da CRP, e bem assim, da Lei n.º 23/98, de 26 de Maio.
7.5. Adiante-se, desde já, que nenhuma destas questões postas pelos requerentes mereceu uma resposta positiva do tribunal.
7.6. Comecemos pelo exame da colocada em último lugar. Relativamente a ela importa, porém, referir que o diploma legislativo governamental cuja emissão foi autorizada pelo preceito em causa, nas alíneas indicadas, foi já publicado. Trata-se do Decreto-Lei n.º 193/2002, de 25 de Setembro. E como consta do respectivo preâmbulo, 'foram ouvidos.... as organizações representativas dos trabalhadores, tendo sido, quanto a estas, observados os procedimentos decorrentes da Lei n.º 23/98, de 26 de Maio, e incorporadas no presente diploma diversas propostas formuladas no âmbito das negociações'. Assim sendo, coloca-se a questão de saber se persiste o interesse em agir do tribunal ou, dito por outro modo, se existe uma real utilidade 'jurídica' do conhecimento do pedido. Na verdade, ainda que as normas questionadas da lei de autorização venham a ser julgadas inconstitucionais, nem por isso essa declaração se poderá estender automaticamente ao decreto-lei autorizado por as normas dele constantes não se integrarem nas da lei de autorização, constituindo a expressão de um poder normativo diferente e de normas distintas. Por outro lado, tal extensão também não poderia ser feita pelo Tribunal em virtude deste estar limitado ao princípio do pedido (art.ºs 281º da CRP e 51º da LOFPTC). Ora, a este respeito o tribunal considera, assim, que perdeu entretanto interesse a averiguação em causa, já que, de todo o modo, se deve entender que a eventual falta de audição que haja ocorrido se tornou irrelevante, pelo facto de ter sido entretanto emitido o diploma autorizado (o referido DL. n.º 193/2002) e de se haver cumprido, quanto a este, a reclamada exigência. Uma tal conclusão é, de resto, a que se posta logicamente ao lado da orientação que o tribunal adoptou em outros casos com algum paralelismo com o presente - como os dos Acórdãos n.º 285/92 (AcTC, 22º vol.), n.º 257/97 (AcTC, 36º vol.) e
745/98 (AcTC, 41º vol.) ou ainda no acórdão n.º 368/02 (inédito). Mas, por outro lado, será, mesmo, também, a única solução que se mantém dentro de uma linha de inteira coerência com o ponto a que se levou tal orientação no Acórdão n.º
581/95 (proferido num caso em que o Tribunal foi chamado a conhecer e apreciar a conformidade constitucional de normas contidas simultaneamente na lei de autorização e no decreto-lei autorizado, sendo que apenas em relação a este havia sido satisfeito o direito de participação das organizações dos trabalhadores (cfr. AcTc, 32º vol.). Desta sorte considera este Tribunal precludida a apreciação da questão da eventual inconstitucionalidade das normas em causa por violação do disposto no art.º 56º, n.º 2, alínea a), da CRP.
7.7. Um outro vício de inconstitucionalidade que os requerentes apontam ás normas agora em causa é o de que elas terão sido emitidas com violação do condicionamento que o art.º 165º n.º 2 da CRP estabelece para as leis de autorização legislativa, quanto á indicação do seu objecto, sentido e extensão. A temática dos condicionamentos das leis de autorização legislativa tem sido abordada por este Tribunal, por diversas vezes e a propósito dos mais variados diplomas legislativos delegados. Sobre ela se pronunciou profundamente, até em termos de análise do direito comparado, o Acórdão n.º 358/92, de 11/11/1992, publicado no Diário da República, I Série, de 26 de Janeiro de 1993. Escreveu-se então aí: «Quanto ao objecto da autorização, ele consiste na enunciação da matéria sobre a qual a autorização vai incidir, enunciação essa que, sem prejuízo das garantias de segurança do sistema jurídico, pode ser feita por remissão e abranger inclusive mais do que um tema ou assunto. Como já se escreveu, «a determinação do objecto definido pode ser feita de forma indirecta ou até implícita, quer por referência a actos legislativos preexistentes (que a delegação pretenda coordenar, refundir ou pôr em execução), quer por natural decorrência dos princípios e critérios directivos aplicados a uma matéria genericamente enunciada ou a matérias complexas (cf. António Vitorino, As Autorizações Legislativas na Constituição Portuguesa, ed. pol.; Lisboa, 1985, p.
231). E continuando: «Por seu turno, a extensão da autorização especifica quais os aspectos da disciplina jurídica da matéria em causa sobre que vão incidir as alterações a introduzir por força do exercício dos poderes delegados». E sobre o que deve ter-se pelo sentido da autorização, afirmou-se aí, por remissão para o Autor citado: «O sentido da autorização legislativa, sendo algo mais do que a mera conjugação dos elementos objecto (matéria ou matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sobre que incidirão os poderes delegados) e extensão (aspectos da disciplina jurídica daquelas matérias que integram o objecto da autorização que vão ser modificados), não constitui, contudo, exigência especificada de princípios e critérios orientadores [...], mas algo mais modesto ou de âmbito mais restrito, que deve constituir essencialmente um pano de fundo orientador da acção do Governo numa tripla vertente: Por um lado, o sentido de uma autorização deve permitir a expressão pelo Parlamento da finalidade da concessão dos poderes delegados na perspectiva dinâmica da intenção das transformações a introduzir na ordem jurídica vigente
(é o sentido da óptica do delegante); Por outro lado, o sentido deve constituir indicação genérica dos fins que o Governo deve prosseguir no uso dos poderes delegados, conformando, assim, a lei delegada aos ditames do órgão delegante (e o sentido na óptica do delegado); e Finalmente, o sentido da autorização deverá permitir dar a conhecer aos cidadãos, em termos públicos, qual a perspectiva genérica das transformações que vão ser introduzidas no ordenamento jurídico em função da outorga da autorização
(é o sentido da óptica dos direitos dos particulares, numa zona revestida de especiais cuidados no texto constitucional - as matérias que incluem a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República)». Temos, deste modo, que na definição do sentido da autorização legislativa, a Assembleia da República pode ir mais ou menos longe, vinculando o legislador delegado a adoptar soluções que podem transportar uma maior ou menor pre-definição do regime jurídico adoptando e que, deste modo, podem, assim, ser enunciadas por uma forma mais ou menos precisa, mais ou menos minuciosa e mais ou menos completa - «já que resta sempre a possibilidade de apreciar ulteriormente e corrigir, se necessário, a legislação governamental (art.º 169º da CRP); e com isso fica também (sem que haja violação da Constituição) uma margem maior ou menor para o Governo modelar, em definitivo, as soluções normativas». Ora tendo em conta a dimensão significante das referidas exigências constitucionais que se deixou pincelada, pode concluir-se, sem reservas, terem elas sido cumpridas satisfatoriamente no caso. O objecto da autorização está expressivamente enunciado no n.º 1 do art.º 9º, aqui em causa, sendo «o regime de colocação de funcionários e agentes pertencentes a serviços e organismos que sejam objecto de extinção, fusão ou reestruturação e a revisão do Decreto-Lei n.º 535/99, de 13 Dezembro», que versa sobre tal regime. A extensão, ou sejam os aspectos da disciplina jurídica da matéria objecto da autorização, está pormenorizadamente descrita nas diversas alíneas de a) a j) do n.º 2 do mesmo artigo que acima se transcreveram. Por último, o sentido da autorização está expressado em termos inequívocos, conquanto genéricos, como é também próprio das normas jurídicas, não só no n.º 1 do preceito - 'flexibilizar a reafectação do pessoal cuja colocação não seja directamente determinada pelos diplomas legais que procedam à extinção, fusão ou reestruturação desses serviços e organismos', como, ainda, nas diferentes alíneas do n.º 2, nomeadamente, cingindo-nos às que se erigiram a objecto do pedido, nas alíneas d), e) e h).
7.8. Resta apreciar a última questão suscitada - a da eventual violação do direito à segurança no emprego que se encontra consagrado no art.º 53º da Constituição da República Portuguesa. O que os requerentes aqui questionam é, maxime, a possibilidade constitucional que é aberta por essas normas de os funcionários a que a respectiva legislação delegada seja aplicável ficarem sujeitos a esquemas jurídicos de 'reafectação'
[alínea d)], de 'flexibilização dos mecanismos de reclassificação e de reconversão' [alínea e)], bem como a poderem ver o seu 'vencimento reduzido' e a
'serem obrigados a passar à situação de licença sem vencimento de longa duração', com as consequências que aí se explicitam [ alínea h)]. Os requerentes estribam, aqui, o seu pedido no pressuposto - aliás expressamente afirmado - de que os trabalhadores da Função Pública 'desfrutam de um vinculo vitalício, que não pode ser desfeito no quadro actual', beneficiando, assim, de uma 'segurança máxima' de emprego. Mesmo que se tivesse por dado adquirido - e não o será, como se seguida se demonstrará - que assistisse aos trabalhadores da Função Pública uma garantia constitucional de 'vitalicidade' do vínculo laboral, sempre os argumentos desferidos pelos requerentes seriam juridicamente improcedentes. Na verdade, em nenhuma das situações cuja adopção está permitida à legislação delegada - e os mais paradigmáticos vistos da perspectiva dos requerentes seriam os que dizem respeito á 'possibilidade de redução progressiva do vencimento de exercício, a graduar em função do período de inactividade ou de passagem à situação de licença sem vencimento de longa duração, no caso de recusa injustificada da colocação oferecida' [ alínea h)] - será possível surpreender a extinção ou
'morte jurídica' do vínculo laboral existente entre o trabalhador e a Administração Pública que acabasse com a sua pretensa 'vitalicidade' pessoal. O vínculo laboral continua a subsistir, apenas modificado quanto aos concretos deveres ou direitos ali implicados exigíveis de cada uma das partes, durante o período em que ocorram aquelas situações. Mas independentemente de se saber até que ponto será até exacto, no plano da lei ordinária, o pressuposto da 'vitalicidade' do vínculo laboral de que partem os requerentes - sendo certo que assim o será, no plano prático da vida, para uma larguíssima categoria de trabalhadores - , acresce que a nossa Constituição não afirma qualquer garantia de vitalicidade do vínculo laboral da Função Pública. Os trabalhadores da Função Pública não beneficiam de um direito à segurança do emprego em medida diferente daquela em que tal direito é reconhecido aos trabalhadores em geral. E neste plano não pode deixar de referir-se até que as soluções que a lei de autorização admite que possam ser adoptadas, acabadas de referir, não deixam de substancialmente se postar ao lado de outras que são permitidas pela lei geral para os demais trabalhadores e cuja legitimidade constitucional se não questiona. Tem o tribunal em vista quanto à situação de redução do vencimento prevista pela lei de autorização como solução passível de ser adoptada pela lei delegada, o que se passa, no domínio dos trabalhadores em geral, com a situação de law off (prevista no Decreto-Lei n.º 398/83, de 2 de Novembro, com as alterações introduzidas posteriormente pelo Decreto-Lei n.º 64-B/87, de 27 de Fevereiro) em que igualmente acontece uma redução de vencimentos, nem sempre atingindo a mesma categoria funcional, ou toda ela, de trabalhadores. E mais. Sem se pretender questionar, aqui, a admissibilidade da figura no domínio da Função Pública, sempre caberá dizer que a solução mais gravosa que está prevista na citada alínea h) - a da licença de vencimento de longa duração, no caso de recusa injustificada da colocação oferecida - é muito menos grave do que uma das medidas previstas para os trabalhadores em geral, como é o caso do despedimento colectivo.
7.9. Mas poderá cogitar-se, porém, sobre se, essencialmente, estas duas figuras normativas de modificação dos direitos e obrigações emergentes do vínculo laboral da Função Pública cuja adopção está prevista como susceptível de ser adoptada na lei delegada - a da possibilidade de redução progressiva do vencimento de exercício, a graduar em função do período de inactividade e a da passagem à situação de licença sem vencimento de longa duração, no caso de recusa injustificada da colocação oferecida - não serão inconstitucionais com base em outros fundamentos, de que este Tribunal pode conhecer oficiosamente
(art.ºs 204º da CRP e 79º-C da LOFPTC), como o da violação do princípio da protecção da confiança. A resposta é também negativa. Sobre a existência e a conteúdo jurígeno deste princípio, na nossa Constituição, escreveu-se no Acórdão n.º 156/95 (Diário da República, 2ª série, de 21/06/1995) o seguinte:
«Tem este tribunal, aliás, na esteira de uma jurisprudência já perfilhada pela Comissão Constitucional, defendido que o princípio do Estado de direito democrático (proclamado no preâmbulo da Constituição e, pós a revisão constitucional de 1982, consagrado no seu artigo 2º) postula 'uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas', razão pela qual 'a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do estado de Direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela lei básica'
(cf. o Acórdão n.º 303/90, publicado no Diário da República, 1ª série, de 26 de Dezembro de 1990)». E alinhando pelo mesmo pensamento, disse-se no Acórdão n.º 222/98, de 04/03/1998
(publicado no Diário da República, 2ª série, de 55 de Julho de 1998) mais o seguinte:
«Sequentemente..., o princípio do Estado de direito democrático hà-de conduzir a que «os cidadãos tenham, fundadamente, a expectativa na manutenção de situações de facto já alcançadas como consequência do direito em vigor».
«Todavia, isso não leva a que seja vedada por tal princípio a estatuição jurídica que tenha implicações quanto ao conteúdo de anteriores relações ou situações criadas pela lei antiga, ou a que tal estatuição não possa dispor com um verdadeiro sentido retroactivo. Seguir entendimento contrário representaria, ao fim e ao resto, coarctar a «liberdade constitutiva e a autorevisibilidade do legislador, características que são típicas, ainda que limitadas» da função legislativa (cf. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição da República Portuguesa, p. 309). Haverá, assim, que proceder a um justo balaceamento entre a protecção de expectativas dos cidadãos decorrentes do princípio do Estado de direito democrático e a liberdade constitutiva e conformadora do legislador, também ele democraticamente legitimidado, legislador ao qual, inequivocamente, há que reconhecer a legitimidade (senão mesmo o dever) de tentar adequar as soluções jurídicas às realidades existentes, consagrando as soluções mais razoáveis, ainda que elas impliquem que sejam 'tocadas' relações ou situações que, até então, eram regidas de outra sorte. Um tal equilíbrio, como o Tribunal tem assinalado, será postergado nos casos em que, ocorrendo mudança de regulação pela lei nova, esta vai implicar, nas relações e situações jurídicas já antecedentemente constituídas uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico que regia a constituição daquelas relações e situações. Nesses casos impor-se-á que actue o subprincípio da protecção da confiança e segurança jurídica que está implicado pelo princípio do Estado de direito democrático, por forma que a nova lei não vá, de forma acentuadamente arbitrária ou intolerável, desrespeitar os mínimos de certeza e segurança, que todos têm de respeitar». Não se vêem quaisquer razões para abandonar uma tal tese sobre a existência no nosso ordenamento constitucional de tal princípio da tutela da confiança, bem como sobre a sua dimensão significante. Mas o que é certo é que a situação acima desenhada não se acha acobertada à sua sombra. Pese embora seja possível afirmar, segundo os dados da experiência histórica, a existência, no domínio da função pública, de uma certa estabilidade/imutabilidade do vínculo laboral estabelecido, senão mesmo da existência, até, uma certa expectativa no sentido do seu desenvolvimento que é próprio de um esquema geral de progressão nas carreiras, tal como nela está comummente estabelecido, não se segue daí que esses vínculos laborais possam ficar imunes, ex natura ou por qual razão especial, às contingências financeiras supervenientes, mormente no que toca à dificuldade da administração não poder suportar os gastos normais do funcionamento dos serviços, entre eles se contando os relativos trabalhadores, ou a leste da necessidade sentida pelo legislador de proceder a uma melhor adequação dos serviços na perspectiva de uma melhor e actual pacificação das necessidades demandadas pelos interesses públicos que lhe cabe primacialmente definir e prosseguir. Num domínio, altamente sensível às vicissitudes da realidade económico-financeira sob a qual os direitos pretensamente atingidos se movem e onde se cruzam, com sentidos divergentes por vezes, as expectativas das suas carreiras, mesmo no aspecto remuneratório, e a necessidade sentida pelo legislador de procurar salvaguardar, por outros meios organizatórios ou até materiais, a realização do interesse público que lhe cabe determinar, não será possível vislumbrar a constituição de uma expectativa materialmente fundada não só à manutenção das suas previsões anteriores sobre o provável andamento das suas carreiras, como mesmo das situações já alcançadas em função do direito em vigor. A extinção, fusão e reestruturação de serviços públicos pode assumir-se, assim, como uma verdadeira necessidade de adaptação aos novos tempos de uma boa gestão do interesse público, na própria óptica quer do interesse geral, quer no dos próprios trabalhadores, não podendo essa matéria deixar de ser tida como inserida numa discricionariedade normativo-constitutiva do legislador, insusceptível de fundar, ao nível da manutenção actual do seu estatuto profissional, salva, porventura, a reserva do seu núcleo essencial, a constituição de expectativas dignas de tutela constitucional. Perante a existência de evidentes dificuldades financeiras do Estado, as medidas de forma alguma poderão ser tidas como intoleráveis, arbitrárias ou demasiado opressivas do mínimo de segurança quanto ao andamento sem quaisquer sobressaltos económico-financeiros das carreiras projectadas de tais trabalhadores. A aleatoriedade das condicionantes financeiras susceptíveis de se repercutir nas situações sob exame é uma questão que nunca poderá deixar de ser tida em conta para fundar quaisquer expectativas legitimamente fundadas. Ao que vem de ser dito, acresce ainda, para desvelar a inexistência de qualquer expectativa de manutenção das situações e previsões de facto, que o instrumento jurídico de redução do vencimento de exercício se equivale até ao que está legalmente admitido para os trabalhadores em geral no caso de law off cuja legitimidade constitucional não se contesta. E quanto à medida da passagem à situação de licença sem vencimento de longa duração, poder-se-á antes asseverar que a sua inclusão sob a sombra protectora deste princípio constitucional se afirmaria antes como uma auto-negação dos valores da justiça que o mesmo procura acautelar, dados os termos em que a mesma está prevista ou, seja apenas para os casos de recusa injustificada da colocação oferecida. C – A decisão
9. Destarte, atento tudo o exposto, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes dos artigos 4º, 7º, n.º 2 e 9º, n.º 2, alíneas d), e) e h) da Lei n.º
16-A/2002, de 31 de Maio. Lisboa, 7 de Janeiro de 2003 Benjamim Rodrigues Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Gil Galvão Pamplona de Oliveira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Mário Torres (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta) Maria Fernanda Palma (vencida em parte, nos termos da declaração de voto junta). José Manuel Cardoso da Costa
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido de ser declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 9.º da Lei n.º
16-A/2002, de 31 de Maio, na dimensão considerada como integrante do objecto do pedido, por violação do direito de participação das organizações representativas dos trabalhadores na elaboração da legislação do trabalho, consagrado nos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição da República Portuguesa (doravante designada por CRP), pelas razões a seguir sumariamente expostas.
1. À questão da determinação dos efeitos da omissão da participação das organizações representativas dos trabalhadores (doravante designadas por ORTs) na elaboração de lei de autorização legislativa em matéria laboral (incluindo a 'legislação laboral da função pública') quando, como no presente caso se verificou, essa participação veio a ocorrer subsequentemente, no âmbito da elaboração do decreto-lei editado ao abrigo daquela autorização legislativa, têm sido dadas basicamente três soluções: (i) a da inexistência de inconstitucionalidade, por a participação não ser exigida relativamente a leis de autorização legislativa; (ii) a da 'irrelevância' ou 'preclusão' da inconstitucionalidade efectivamente verificada por o objectivo constitucionalmente visado ter sido afinal alcançado pela via da participação na elaboração do decreto-lei autorizado; e (iii) a da efectiva ocorrência de inconstitucionalidade, que se mantém apesar da participação na elaboração do decreto-lei autorizado, por esta participação não ser sucedânea nem consumir a devida participação na elaboração da lei de autorização legislativa.
Perfilho convictamente esta última posição.
2. A primeira posição (que o precedente acórdão não acolheu) assenta na negação da existência de um direito de participação das ORTs na elaboração das leis de autorização legislativa, por as normas autorizadoras carecerem de carácter material, detendo tão-só natureza 'competencial': a lei de autorização seria uma lei de mera delegação de competência do poder de legislar sobre as matérias constantes de reserva parlamentar, não incorporando ainda qualquer normação dessa matéria. Não se trataria, pois, de 'legislação do trabalho'; logo, a participação das ORTs não seria constitucionalmente devida; consequentemente, nenhuma violação da CRP se perpetraria com a omissão desta participação.
A crítica desta tese está feita, em termos que inteiramente perfilho, por José Joaquim Gomes Canotilho e Jorge Leite (A Inconstitucionalidade da Lei dos Despedimentos, Coimbra, 1988, págs. 15 a 18 e
64 a 70). As leis de autorização não são simples 'normas sobre a produção jurídica' ou normas 'organizatório-competenciais', assumindo uma carácter
'normativo-material', com 'efeitos externos' (José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 6.ª edição, Coimbra, 2002, pág.
761).
Trata-se, aliás, de entendimento constante deste Tribunal: cf. Acórdãos n.ºs 107/88, 64/91, 285/92, 806/93 e 581/95. Como se reafirmou no Acórdão n.º 64/91:
'Sobre esta questão, entende o Tribunal que a sua anterior jurisprudência é inteiramente correcta, do ponto de vista jurídico-constitucional, e que deve ser mantida.
Por um lado, as leis de autorização legislativa não são meras leis formais, nem se esgotam no plano de ordenação do exercício da função legislativa, não podem considerar-se puras leis organizatórias da competência legislativa, situadas no domínio do direito constitucional. Elas contêm os parâmetros normativos fundamentais que estabelecem os limites de validade da legislação autorizada (cf. Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, policopiado, pp. 471 e segs.; J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4.ª ed., Coimbra, 1986, pp. 629 e segs.).
Por outro lado e decisivamente, a imposição constitucional de que as leis de autorização legislativa definam «o sentido, a extensão e a duração da autorização» (artigo 168.°, n.° 2) implica que, em matéria de legislação laboral, as organizações dos trabalhadores devam ter a possibilidade de influenciarem, logo na fase parlamentar de apreciação da lei de autorização legislativa, os juízos políticos e de decisão jurídica da Assembleia da República sobre a futura legislação autorizada e, também, de opinarem sobre a vantagem de delegar no Governo a elaboração da tal legislação, sobre a oportunidade da autorização, sobre as directrizes, princípios ou orientações gerais da futura disciplina material e sobre a própria extensão da autorização, isto é, sobre a amplitude das inovações ou reformas a introduzir em matéria laboral. Acrescente-se que tal audição há-de ser realizada directa e autonomamente perante a Assembleia da República, devendo este órgão proceder à consulta das organizações dos trabalhadores, nos termos da Lei n.° 16/79.'
Neste ponto (rejeição da tese da inexistência do direito de participação) partilho da posição assumida no precedente acórdão, sendo de assinalar que a Lei n.º 23/98, de 26 de Maio, que estabelece o regime de negociação colectiva e de participação dos trabalhadores da Administração Pública em regime de direito público, garante expressamente, na alínea i) do n.º
1 do seu artigo 10.º, o direito de esses trabalhadores participarem, através das suas associações sindicais, 'na elaboração dos pedidos de autorização legislativa sobre matéria sujeita à negociação ou participação'.
3. A segunda posição atrás enunciada – reconhecendo que as leis de autorização legislativa em matéria laboral são 'legislação do trabalho' em cuja elaboração é constitucionalmente exigida a participação das ORTs e que, consequentemente, se verifica inconstitucionalidade se essa participação é omitida –, sustenta, porém, que a 'questão' da inconstitucionalidade deve ter-se por 'precludida' quando tenha sobrevindo participação das ORTs na elaboração do decreto-lei emitido ao abrigo da autorização legislativa em causa.
Foi esta a posição que obteve vencimento no precedente acórdão e da qual discordo.
Não tem sido uniforme a configuração jurídica avançada por essa posição para fundamentar a conclusão da 'preclusão da questão'. No Acórdão n.º 285/92 referiu-se que 'tendo o diploma autorizado sido submetido a apreciação prévia pelas organizações sindicais, será de concluir que o desiderato substantivo do disposto nos artigos 54.º, n.º 5, alínea d), e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição, no que à matéria em causa se refere, se encontra plenamente consumido pela audição promovida pelo Governo quanto ao decreto' autorizado entretanto publicado. No Acórdão n.º 581/95 considerou-se que 'a inconstitucionalidade formal' (por falta de participação das ORTs) da Lei n.º 107/88, de 17 de Setembro, então em causa, 'não deve ter-se hoje já por relevante, pois que o Decreto-Lei n.º 64-A/89, posteriormente emitido ao abrigo dessa autorização foi ele mesmo objecto de audição das organizações representativas dos trabalhadores'. A ideia de que a audição a respeito do decreto-lei autorizado consome a falta de audição relativamente à lei autorizadora foi retomada, entre outros, nos Acórdãos n.ºs 257/97, 477/98,
478/98 e 745/98, enquanto a concepção da irrelevância da inconstitucionalidade da lei de autorização por o 'desiderato substantivo' da norma constitucional consagradora do direito de participação ter sido alcançado pela via da participação na elaboração do decreto-lei autorizado reaflora no Acórdão n.º
368/2002.
Não subscrevo este entendimento, em qualquer das suas formulações, pois entendo que as participações das ORTs nos apontados dois momentos do processo legislativo complexo em causa são cumulativamente exigíveis, por visarem objectivos distintos, terem objectos diferenciados, destinatários autónomos e diversificada eficácia, não sendo, assim, fungíveis entre si.
A participação na elaboração da lei de autorização legislativa deve ser promovida directa e autonomamente pela Assembleia da República, a quem se dirigirão as posições que vierem a ser assumidas pelas ORTs, enquanto a participação na elaboração do decreto-lei autorizado é promovida e tem por destinatário o Governo.
Os objecto e objectivo da primeira participação são muito mais vastos do que os da segunda: aquela engloba, desde logo, a própria necessidade e oportunidade da intervenção legislativa, a forma final dessa intervenção que se reputa mais adequada (lei ou decreto-lei autorizado) e a delimitação do âmbito, extensão e sentido concreto da intervenção; esta (a participação na elaboração do decreto-lei autorizado) já não pode questionar as opções fundamentais impostas pela Assembleia ao Governo, quando define, com a exigível densidade, o objecto, o sentido e a extensão da autorização.
A eficácia da participação também é extremamente diferenciada: aquando da elaboração da lei de autorização está tudo em aberto, enquanto na elaboração do decreto-lei as opções fundamentais já estão tomadas, não sendo lícito ao Governo desrespeitar o sentido fixado na credencial parlamentar.
Se se quiser – como cumpre – 'levar a sério' o direito fundamental, atribuído aos trabalhadores qua tales de, através das suas organizações representativas, participarem na elaboração da legislação do trabalho, não se pode ver nele uma mera 'formalidade' de submeter à consideração das ORTs opções e medidas já definitivamente tomadas: 'o direito de participação supõe, por um lado, que as decisões ainda não estão tomadas e, por outro lado, que as posições que as organizações dos trabalhadores venham a tomar podem efectivamente alterar as soluções em projecto', pois, se 'o direito de participação não se traduz em expropriar os órgãos legislativos do seu poder', ele 'consiste seguramente na possibilidade de influenciar as suas tomadas de decisão' (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª edição revista, Coimbra, 1993, págs. 295 e 296).
No presente caso, não foi concedida às ORTs possibilidade de influência real na decisão da Assembleia da República de iniciar o processo de revisão do Decreto-Lei n.º 535/99, de 13 de Dezembro, nem na tomada das opções de, nesse âmbito, se proceder à redução progressiva do vencimento de exercício, a graduar em função do período de inactividade, e de impor a passagem à situação de licença sem vencimento de longa duração, no caso de recusa injustificada da colocação oferecida. O 'desiderato substantivo' do direito constitucional em causa não se pode considerar alcançado com a subsequente participação das ORTs na elaboração do decreto-lei autorizado, vinculado ao respeito por aquelas opções.
Em suma: não sendo fungíveis as participações nesses dois momentos distintos do procedimento legislativo, a efectiva participação na elaboração do decreto-lei autorizado não 'consome' nem torna 'irrelevante' a
(falta de) participação na elaboração da lei de autorização, pelo que não posso considerar 'precludida' a questão da inconstitucionalidade desta lei. Mário José de Araújo Torres
Declaração de voto
1. Votei vencida a decisão de não declarar a inconstitucionalidade do artigo 9º da Lei nº 16-A/2002 por violação do artigo 56º, nº 2, alínea a), da Constituição com fundamento na sua 'preclusão'. Com efeito, apesar de o dever de audição dos trabalhadores ter sido cumprido quanto à lei autorizada, ainda assim a não audição na fase da autorização legislativa pode ter comprometido o processo negocial e restringido o direito de participação dos trabalhadores.
A tese segundo a qual se verificaria, nestes casos, uma consunção da não audição da lei de autorização legislativa pela audição efectuada quanto à lei autorizada (rectius, uma sanação da não audição fundamentada na ideia de que a segunda audição consome a primeira) não é correcta porque ignora, desde logo, a exigência de subordinação do decreto-lei autorizado à respectiva lei de autorização legislativa (cfr. o artigo 112º, nº 2, da Constituição). Na verdade, ao aprovar o decreto-lei autorizado, o Governo está conformado por uma lei anterior, relativamente à qual os trabalhadores não foram ouvidos. O direito de participação dos trabalhadores é assim restringido, uma vez que já não são viáveis, nessa fase do processo legislativo, soluções normativas não contempladas ou excluídas pelo Parlamento.
Não faz sentido, pois, considerar inútil a primeira audição por estar já devidamente assegurada a protecção constitucional da participação dos trabalhadores com a segunda audição (como também seria errado considerar a segunda audição redundante quanto à primeira, dado que o decreto-lei autorizado sempre conterá uma margem de inovação normativa sobre a qual é indispensável ouvir de novo os trabalhadores).
2. Votei ainda vencida a não declaração de inconstitucionalidade do artigo 9º, alínea h), no que se refere à possibilidade de redução de vencimento por violação do artigo 2º da Constituição, na perspectiva da violação do princípio da confiança como emanação do Estado de direito democrático.
Diferentemente do entendimento sustentado no Acórdão, parece-me que, apesar de não existir na Constituição garantia de que o emprego na Função Pública seja vitalício nem garantia de que nunca haverá reduções de vencimento em situações de crise na Administração Pública, não pode deixar de se considerar, na situação em apreço, que há uma tradição de estabilidade firmada ao longo de décadas. E esta tradição tem proporcionado um 'investimento na confiança' significativo quanto às carreiras da Administração Pública, levando muitas pessoas a preferirem o emprego público, embora porventura menos remunerado do que emprego idêntico no sector privado.
Esta 'estabilidade' é, aliás, manifestação de uma certa credibilidade do Estado empregador e expressão do bom funcionamento de uma Administração Pública baseada na experiência dos seus funcionários, em contraponto a uma maior instabilidade das empresas privadas que se determinam por solicitações por vezes conjunturais do mercado. Uma tal tradição reflecte um valor de estabilidade do Estado de direito democrático nas sociedades modernas. A necessidade de reorganização de serviços e funções não pode ser exclusivamente levada a cabo com sacrifícios directos de certos funcionários, devendo antes, por razões de justiça imanentes ao Estado de direito democrático, ser dissolvida no conjunto do edifício da Administração Pública.
Assim, não vejo fundamentação constitucional para aplicar à Administração Pública soluções típicas de uma sociedade de mercado, no seu modelo puro e não solidário, ou para introduzir na Função Pública os mecanismos do despedimento colectivo ou do 'lay off'. A jurisprudência constitucional chegou mesmo a declarar a inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança, de reduções 'retrospectivas' de vencimentos em situações em que até se justificaria, por razões de igualdade, uma redução de vencimentos dos funcionários que exerciam funções de apoio a órgãos de soberania (maxime os chamados funcionários parlamentares da Assembleia da República) pelo facto de esses vencimentos ultrapassarem o do Presidente da República (cfr. Acórdão nº
141/2002, D.R., I Série-A, de 9 de Maio de 2002). E a violação da confiança não seria aí sequer tão significativa dada a precariedade de tais funções, assentes, por vezes, na confiança política. A possibilidade de redução dos vencimentos dos trabalhadores que são afectados por necessidades de reestruturação e tornados 'vítimas sacrificiais' do interesse público constitui um modo de actuação do Estado que o desacredita como Estado de direito democrático, frustra as expectativas legítimas sedimentadas ao longo de décadas e põe em crise o papel organizador da sociedade e de referência para o próprio sector privado que o Estado desempenha. Deste modo, tal como se disse no Parecer nº 16/92 da Procuradoria Geral da República, citado, aliás, em termos fundamentadores no referido Acórdão nº
141/2002, apesar de a garantia de irredutabilidade dos vencimentos da função pública não ter 'autonomamente, directa protecção constitucional, a função pública rege-se, contudo, segundo uma arquitectura normativa, clara e segura, desde a definição das condições de ingresso, acesso, direito à carreira, responsabilidade funcional e disciplinar e escalas remuneratórias, integrando um estatuto funcional típico. A relação de emprego público, nesse complexo próprio de direitos, regalias, deveres e responsabilidades, distingue-se da relação de emprego comum típica das relações laborais privadas (...) A componente remuneratória própria e caracterizadora de cada categoria integra um elemento fundamental do respectivo estatuto e, nessa medida, a confiança essencial na manutenção do estatuto típico da relação funcional compreende a integralidade e a não redutabilidade remuneratória. (...) A garantia da integralidade remuneratória resulta, porém, não de qualquer autónomo princípio de irredutabilidade (inscrito ao nível fundamental), ou mesmo de protecção de direitos adquiridos (...) mas da circunstância de uma modificação estatutária, com semelhante conteúdo, traduzir uma violação intolerável, inadmissível e demasiado acentuada do princípio da confiança ínsito na ideia de Estado de Direito democrático'.
É certo que os trabalhadores da Função Pública também perdem o vencimento de exercício noutras situações, incluindo os casos de faltas justificadas que se estendam para além de determinado limite. No entanto, seria equivocado comparar tais situações à que agora se analisa. Nesta última situação, a inactividade do trabalhador é-lhe imposta unilateralmente pela Administração Pública (aliás, de modo duvidosamente compatível com o direito ao trabalho, consagrado no artigo
58º, nº 1, da Constituição, que tem como corolário, assinalado pela doutrina e pela jurisprudência laboral, o direito de ocupação efectiva), sendo inaceitável
à luz dos princípios de justiça e equidade por que se rege o Estado de direito democrático, que dessa imposição resulte ainda uma diminuição de vencimento.
Por estas razões votei a inconstitucionalidade das normas referidas. Maria Fernanda Palma