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Proc. n.º 533/02 Acórdão nº 496/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 644 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal pela A., pelos seguintes fundamentos:
'[...]
6. No requerimento de interposição do recurso para este Tribunal indicam-se as alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, o que indicia que o presente recurso é interposto ao abrigo de ambas as alíneas (cfr. artigo 75º-A, n.º 1, da mesma Lei).
6.1. Relativamente à alínea g), a sua referência no requerimento de interposição do recurso deve-se certamente a lapso, atendendo a que em tal disposição se prevêem os recursos de decisões de tribunais que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal Constitucional e, no que diz respeito às normas dos artigos 502º, n.º 1, e 653º, n.º 2, do Código de Processo Civil – aquelas cuja conformidade constitucional a recorrente pretende ver apreciada –, tal julgamento nunca existiu. Portanto, e na medida em que os pressupostos processuais do recurso previsto na alínea g) manifestamente não estão, no caso, preenchidos, não pode admitir-se o recurso fundado em tal alínea.
6.2. Resta apreciar se se verificam os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b), preceito que prevê os recursos de decisões de tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) é aquele a que se alude nesta mesma alínea e também no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional: o recorrente há-de ter suscitado, durante o processo, a questão de inconstitucionalidade – da norma, ou da interpretação normativa – que pretende ver apreciada. Ora, no caso dos autos, tal não sucedeu. Na verdade, relativamente à norma do artigo 502º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a sua inconstitucionalidade nunca foi suscitada durante o processo, apenas o tendo sido (o que, naturalmente, já é intempestivo) no próprio requerimento de interposição do recurso perante este Tribunal. Basta verificar que, quer nas alegações para a Relação (supra, 1.), quer nas alegações para o Supremo (supra, 3.) a inconstitucionalidade é imputada ao próprio despacho que mandou desentranhar a réplica e demais documentos que a acompanhavam, e ao acórdão que confirmou tal despacho, e não a qualquer norma aplicada nessas decisões. E, relativamente à norma do artigo 653º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a sua inconstitucionalidade também não foi suscitada no processo. Nas alegações para a Relação (supra, 1.), as referências àquele preceito legal nunca são acompanhadas por qualquer alusão à sua inconstitucionalidade; nas alegações para o Supremo (supra, 3.) imputa-se ao próprio acórdão recorrido a violação do artigo 205º da Constituição (cfr. conclusão 36). Não tendo a recorrente suscitado, durante o processo, as questões de inconstitucionalidade normativa que pretende ver apreciadas, não pode conhecer-se do objecto do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, por falta de um dos seus pressupostos processuais.
[...].'
2. Inconformada com a mencionada decisão sumária, a A. dela veio reclamar para a conferência (fls. 657 e seguintes), ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, em síntese pelos seguintes fundamentos:
a) A recorrente reconhece que a forma como colocou, nas instâncias, a questão da inconstitucionalidade não foi a mais feliz e adequada, mas foi surpreendida com as interpretações normativas dadas sucessivamente pelas instâncias aos artigos 502º, n.º 1, e 653º, n.º 2, do Código de Processo Civil;
b) A recorrente, quer nas alegações de apelação, quer nas de revista, sempre invocou a questão da inconstitucionalidade (por violação dos princípios consagrados nos artigos 2º, 20º e 205º da Constituição) subjacente à norma resultante da interpretação dos artigos 502º, n.º 1, e 653º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que nas decisões recorridas vinha sendo feita pelas instâncias;
c) Relativamente à interpretação feita pelas instâncias do disposto no n.º 2 do artigo 653º do Código de Processo Civil, parece à recorrente que ela vem de tal modo ao arrepio da mais recente orientação da jurisprudência, que deve dispensar-se o ónus de suscitação da questão da constitucionalidade durante o processo, caso se entenda que a questão não foi suscitada nas alegações de apelação e de revista;
d) É surpreendente, face às últimas alterações legislativas e às orientações jurisprudenciais mais recentes, a interpretação normativa dada pelas instâncias aos artigos 502º, n.º 1, e 653º, n.º 2, do Código de Processo Civil, pelo que se verifica uma situação do tipo daquelas em que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem admitido a dispensa do ónus de suscitação da questão da inconstitucionalidade durante o processo;
e) No sentido por si propugnado, invoca a recorrente 'os Acórdãos n.º 181/96, o n.º 368/97, publicado no DR II Série, n.º 238 de 14 de Outubro
1997, e o Acórdão n.º 278/98 de 10 de Março de 1998, publicado no BMJ n.º 475, pág. 185'.
Notificados da reclamação, os recorridos B e outros apresentaram a resposta de fls. 661 e v.º, sustentando que a decisão sumária reclamada devia ser mantida.
Cumpre apreciar.
II
3. Na decisão sumária ora reclamada (supra, 1.) concluiu-se que a recorrente não havia suscitado, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 502º, n.º 1, e 653º, nº 2, do Código de Processo Civil.
E expuseram-se, nessa decisão sumária, as razões que alicerçavam uma tal conclusão.
Tais razões não foram minimamente contrariadas na presente reclamação, já que a reclamante, por um lado, admite que não colocou as questões de inconstitucionalidade da forma feliz e adequada perante as instâncias e, por outro lado, limita-se a afirmar, sem fundamentar, que suscitou as questões de inconstitucionalidade nas alegações que produzira na apelação e na revista
(supra, 2., a) e b)).
Em suma, pois, subsistem inteiramente as razões que, na decisão sumária reclamada, conduziram à conclusão de que a recorrente nunca havia suscitado as questões de inconstitucionalidade durante o processo: nem nas suas alegações de apelação, nem nas suas alegações de revista.
4. Entende a reclamante que, de qualquer modo, estaria dispensada de suscitar as questões de inconstitucionalidade durante o processo, atento o carácter surpreendente das interpretações normativas perfilhadas pelas instâncias (supra, 2., c) e d)). Invoca, em abono da sua tese, a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre tal dispensa (supra, 2., d)), apontando ainda alguns acórdãos que, não obstante mal identificados, se presume corresponderem à apontada jurisprudência (supra,
2., e)). A dispensa de cumprimento do ónus consagrado no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, que por vezes este Tribunal tem reconhecido, não decorre do carácter mais ou menos surpreendente das interpretações das instâncias perante o texto da lei ou perante a orientação jurisprudencial dominante. Decorre, diversamente, da circunstância de a questão de inconstitucionalidade surgir no processo depois de proferida a decisão recorrida, sendo consequentemente impossível ou muito difícil para o recorrente suscitá-la antes de proferida tal decisão (isto é, durante o processo). No caso dos autos, as questões de inconstitucionalidade que a recorrente pretende ver apreciadas pelo Tribunal Constitucional não surgiram no processo depois de proferida a decisão recorrida, na medida em que, como a própria recorrente reconhece, dizem respeito a 'interpretações normativas dadas sucessivamente pelas instâncias no que tange aos atacados artigos 502º n.º 1 e
653º n.º 2, ambos do C.P.Civil' (cfr. artigo 4º da reclamação). Isto é, as interpretações normativas contra as quais a recorrente se insurge não foram perfilhadas, pela primeira vez, na decisão recorrida – nada tendo, por isso, de 'surpreendente' –, tendo-o sido já em decisões anteriores proferidas no processo. E tendo sido já perfilhadas em decisões anteriores, estava evidentemente a recorrente em condições de cumprir o ónus consagrado no artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que a dispensa de cumprimento desse ónus nunca se justificaria no caso dos autos.
III
5. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária de fls. 644 e seguintes, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Lisboa, 3 de Dezembro de 2002 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida