Imprimir acórdão
Proc. n.º 326/02 Acórdão nº 432/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por acórdão de 16 de Janeiro de 2002 (fls. 163 e seguintes), o Tribunal da Relação do Porto negou provimento ao recurso interposto por A da sentença que o havia condenado pela prática de um crime previsto e punível pelo artigo 23º, n.º 1, do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Não Aduaneiras
(RJIFNA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na pena de
300 dias de multa à taxa diária de 30.000$00 (149,64 euros), ou em alternativa
200 dias de prisão. Lê-se no texto desse acórdão a propósito da determinação da sanção aplicada:
'[...] conforme o Artº 23º nº 4 do RJIFNA, não pode a pena de multa ser inferior ao valor da vantagem patrimonial pretendida – 8.931.120$00 (44.548,24 Euros), nem superior ao dobro – 2 x 8.931.120$00 = 17.862.240$00 (89.096,48 Euros), sem que esta possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido. Deste modo, tendo o arguido sido condenado na multa global de 9.000.000$00
(44.891,81 Euros), mostra-se a mesma encontrada de harmonia com os referidos preceitos legais e, por isso não merece qualquer censura. Por outro lado não se pode esquecer que a pena de multa para alcançar os seus objectivos não pode ter um carácter meramente simbólico, devendo antes constituir para o condenado um sacrifício pelo crime cometido. Se assim não fosse a pena de multa não possuiria eficácia preventiva nem realizaria as finalidades da punição.'
Relativamente à questão da inconstitucionalidade material do artigo
23º, n.º 4, do RJIFNA, disse o Tribunal da Relação do Porto;
'[...] Alega para o efeito o recorrente que ao fixar a lei o limite mínimo em valor igual ao do imposto em falta, impede-se o julgador de ponderar a situação sócio-económica do arguido na determinação desse montante, violando-se assim o princípio da culpa e o princípio da igualdade previsto no Art° 13° da CRP.
É sabido que o direito penal, no Estado de Direito, tem de edificar-se sobre o homem como ser pessoal e livre – do homem que, sendo responsável pelos seus actos, é capaz de se decidir pelo Direito ou contra o Direito. Há-de ser, por isso, um direito penal ancorado na dignidade da pessoa humana, que tenha a culpa como fundamento e limite da pena, pois não é admissível pena sem culpa, nem em medida tal que exceda a da culpa. Como escreve Eduardo Correia «um direito penal, tendo a culpa como fundamento, limite ou legitimidade das penas, sem desdenhar os seus fins de prevenção geral e especial, o seu carácter acessório, fragmentário, são assim, pontos de referência, linhas transpositivas que o envolvem ou transcendem». A necessidade da pena – que, repete-se, há-de ser uma pena de culpa – limita, pois, o âmbito de intervenção do direito penal, sendo mesmo o critério decisivo dessa intervenção. O princípio da culpa, enquanto princípio conformador do direito penal de um Estado de Direito, proíbe que se aplique pena sem culpa e, bem assim, que a medida da pena ultrapasse a da culpa. Ora um direito penal de culpa não é compatível com a existência de penas fixas já que, é em função dela que, em cada caso, se há-de graduar a medida concreta da pena, situada entre o mínimo e o máximo previsto na lei para aquele tipo de comportamento. Sucede que no caso vertente o que o legislador impõe é um limite mínimo e um máximo, ditado naturalmente pela culpa, tendo em conta os bens jurídicos e os valores económico-sociais em causa com este tipo de criminalidade. Na verdade num Estado de direito, social e democrático, a assunção pelo Estado da realização do bem estar social, através da concretização de uma democracia económica, social e cultural, com respeito pelos direitos e liberdade fundamentais, legitima-se pela necessidade de garantir a todos uma existência em condições de dignidade. A realização destas exigências não só confere ao imposto um carácter de meio privilegiado ao dispor de um Estado de direito para assegurar as necessárias prestações sociais, como também alarga o âmbito do que é digno de tutela penal. Para poder cumprir essas tarefas tem de recorrer a meios que só pode exigir dos seus cidadãos. Esses meios ou instrumentos de realização das suas finalidade são os impostos, cuja cobrança é condição da posterior satisfação das prestações sociais. Daí que o dever de pagar impostos seja um dever fundamental cuja violação, justifique a cominação de sanções criminais de alguma severidade. Por isso se entende que a cominação destes limites não viola o princípio da culpa. Por outro lado também não poderá falar-se de violação do princípio da igualdade, na medida em que a norma considera manifestamente um grau de culpa acentuado para este tipo de criminalidade, sendo certo que o juiz pode adequar a sanção à gravidade da infracção. Improcede assim o recurso também quanto a este ponto.
[...].'
2. Inconformado com o mencionado acórdão do Tribunal da Relação do Porto, A dele veio interpor o presente recurso para o Tribunal Constitucional
(fls. 175), tendo no requerimento respectivo dito nomeadamente o seguinte:
'[...]
[...] o presente recurso funda-se no disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70º [da Lei do Tribunal Constitucional], sendo certo que o recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o Tribunal recorrido em termos de estar obrigado a dela conhecer – cfr. artigo
72º, n.º 2 da mesma Lei Orgânica. Na verdade, o recorrente invocou na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação que o artigo 23º, n.º 4 do RJIFNA é materialmente inconstitucional por violação do princípio da culpa juridico-constitucionalmente reconhecido e por ofensa ao princípio da igualdade previsto no artigo 13º da CRP.
[...].'
O recurso foi admitido por despacho de fls. 178.
3. Nas alegações que produziu junto do Tribunal Constitucional (fls. 198 e seguintes), concluiu o recorrente do seguinte modo:
'1 - O recorrente, nos autos em causa, foi condenado pela prática de um crime de fraude fiscal p.p. no artigo 23°, nº1 do RJIFNA, na pena de multa de
9.000.000$00 (ou 44.891,81 Euros), ou em alternativa 200 dias de prisão.
2 - Prevê o nº 4 da mesma norma legal que «A pena aplicável à fraude fiscal é de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da vantagem patrimonial pretendida, nem superior ao dobro...».
3 - Entende o recorrente que tal norma ao fixar como limite mínimo da pena de multa o valor da vantagem patrimonial pretendida, não observa qualquer princípio ou valor constitucionalmente consagrados, tais como o princípio da culpa, o princípio da igualdade ou o da proporcionalidade.
4 - Esse limite mínimo é totalmente contraditório com a política criminal vigente na nossa ordem jurídica.
5 - Sendo o limite mínimo equivalente ao valor da vantagem patrimonial pretendida, não é possível respeitar os fundamentos que levaram à adopção do sistema dos dias de multa, ou seja, permitir valorar o ilícito e a culpa do agente no acto de determinação do número de dias de multa e considerar a situação económica e pessoal do mesmo no acto de determinação do quantitativo diário.
6 - A norma do artigo 23°, nº 4 do RJIFNA despreza, por isso, a ponderação do grau de culpa do agente e a sua situação econórnico-financeira que deve ser feita na determinação concreta da pena.
7 - Desse modo, não respeita o princípio constitucional da igualdade na medida em que apenas trata de forma diferente duas situações semelhantes com o fundamento na diferente gravidade que expressa a diversa quantia em dívida.
8 - Diante do caso concreto, que pode reputar-se de alguma gravidade, não pode o julgador, ainda assim, avaliar a culpa com que actuou o agente e a sua situação económica com o objectivo de alcançar uma pena concreta completamente adequada, proporcional e que cumpra o princípio da igualdade.
9 - O Tribunal, mesmo apurando a precaridade das condições sócio-econórnicas do recorrente, está sempre vinculado a um mínimo de pena de multa em referência ao montante do imposto em dívida.
10 - A aplicação da pena de multa de 9.000.000$00 viola, claramente, critérios de razoabilidade, exigibilidade, adequação e proporcionalidade que devem ser observados.
11 - A norma do artigo 23°, nº 4 do RJIFNA viola o princípio da igualdade e o princípio da proporcionalidade e adequação previstos no artigo 13° e 18° da Constituição da República Portuguesa, respectivamente.
[...].'
4. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional produziu contra-alegações (fls. 216 e seguintes), nelas tendo assim concluído:
'1 - A norma constante do artigo 23°, n° 4, do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n° 20/A/90 (na redacção do Decreto-Lei n° 394/93) ao erigir como factor determinativo da medida da pena de multa aplicável ao arguido condenado pelo crime de fraude fiscal o montante da vantagem patrimonial auferida em detrimento da Fazenda Nacional – inviabilizando uma adequada ponderação da culpa concreta do agente e da sua real situação económica e financeira, no âmbito de uma sanção susceptível de – através do mecanismo da prisão subsidiária – se repercutir na própria liberdade do arguido condenado, é colidente com os princípios constitucionais da culpa e da adequação e proporcionalidade das sanções de natureza penal.
2 - Termos em que deverá, salvo melhor opinião, proceder o presente recurso.
Cumpre apreciar.
II
5. O artigo 23º do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, tem como epígrafe 'Fraude fiscal', dispondo o seu n.º 4 o seguinte:
'A pena aplicável à fraude fiscal é de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da vantagem patrimonial pretendida, nem superior ao dobro, sem que esta possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido, salvo se, tratando-se de pessoas singulares, na ocultação ou alteração dos factos ou valores ou na simulação se verificar a acumulação de mais de uma das circunstâncias referidas nas alíneas c) a f) do número anterior, caso em que é exclusivamente aplicável a pena de prisão de um até cinco anos.'
No presente recurso está apenas em causa a apreciação da conformidade constitucional da norma contida no mencionado preceito, na parte em que fixa como limite mínimo da multa a aplicar o valor da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, conforme a delimitação do objecto do recurso a que procedeu o próprio recorrente (supra, 3.) e a que o Tribunal Constitucional está adstrito.
6. Do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, que introduziu no RJIFNA o preceito que ora nos ocupa e que procedeu a uma nova tipificação dos crimes fiscais – ao abrigo da Lei de autorização legislativa n.º
61/93, de 20 de Agosto (vejam-se, especialmente, os seus artigos 2º, 3º, n.º 1, e 4º, alínea a)) –, retira-se a preocupação do legislador com o progresso da
(evasão ilegítima e) fraude fiscal, fenómeno que constituiria 'inaceitável violação dos princípios da igualdade e proporcionalidade contributivas, pelo que, não sendo combatido de forma eficaz, criará nos contribuintes uma sensação de impunidade que um Estado de direito não pode permitir'. Tal preâmbulo não contém qualquer referência directa à norma que constitui o objecto do presente recurso, pelo que a sua consagração no RJIFNA parece ter ficado a dever-se à genérica preocupação com o progresso da fraude fiscal e à procura de maior eficácia no seu combate. Saliente-se que o actual Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho – que simultaneamente revogou o RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, excepto o seu artigo 58º, que se manteve em vigor até à publicação de legislação especial sobre a matéria (cfr. artigo 2º, alínea b), da referida Lei) –, não contém, nos seus artigos 103º e
104º (que, respectivamente, prevêem a fraude e a fraude qualificada) e 15º
(relativo à determinação da pena de multa), disposição paralela à do artigo 23º, n.º 4, do RJIFNA. O prejuízo causado pelo crime de fraude é apenas atendido, e só se tal for possível, na determinação da medida da pena (artigo 13º do Regime Geral) e, ainda, enquanto condição negativa de punibilidade, se for de montante diminuto (cfr. o artigo 103º, n.º 2, do Regime Geral, que estabelece que certos factos típicos não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a 7.500 euros) ou circunstância determinativa de dispensa ou atenuação especial da pena (cfr. o artigo 22º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, que se refere ao pagamento da prestação tributária, à restituição de benefícios e ao pagamento de acréscimos legais). De qualquer modo, e como salienta o representante do Ministério Público nas suas contra-alegações, a revogação operada pelo mencionado Regime Geral – e a correlativa necessidade de apurar, nos termos do artigo 2º, n.º 4, do Código Penal, o regime concretamente mais favorável – não torna inútil a apreciação do presente recurso de constitucionalidade, pois que 'importa notar que a questão de constitucionalidade suscitada se mostra directamente conexionada com a própria medida da pena de multa aplicável no âmbito do regime que precedeu a vigência da Lei nº 15/2001 – revelando-se essencial, para que o juiz «a quo» possa realizar a comparação em concreto das penas aplicáveis aos arguidos, a dirimição da questão de constitucionalidade da norma que integra o objecto do recurso. É que tal comparação pressupõe necessariamente a dirimição da questão de constitucionalidade suscitada, em termos de se poder decidir se o regime normativo que constava do nº 4 do artigo 23º do RJIFNA é ou não conforme à Lei Fundamental – e, portanto, convocável e aplicável de modo a integrar um dos termos da comparação de sanções concretas que o juiz tem necessariamente de levar a cabo, por força do preceituado no artigo 2º, n.º 4, do Código Penal'.
7. Sobre questão semelhante à que ora nos ocupa já se pronunciou o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 548/01, de 7 de Dezembro (publicado no Diário da República, II Série, n.º 161, de 15 de Julho de 2002, p. 12639). Neste acórdão, apreciou o Tribunal Constitucional a conformidade constitucional da norma do artigo 24º, n.º 1 do RJIFNA (regulador do crime de abuso de confiança fiscal), na parte em que impõe que o limite mínimo da pena de multa a aplicar ao arguido seja equivalente ao montante da prestação em dívida. Segundo o tribunal então recorrido, que havia recusado a aplicação de tal norma, a equivalência entre o limite mínimo da pena de multa e o montante da prestação em dívida poderia conduzir a que a pena de multa concretamente aplicada a cada arguido excedesse os limites impostos pela sua culpa concreta e se desconsiderasse a sua situação económica. Porém, o Tribunal Constitucional não perfilhou esse entendimento, pelos seguintes fundamentos:
'[...]
5. O julgamento de inconstitucionalidade da norma do nº 1 do artigo 24º do RJIFNA, na parte em que determina que a multa a aplicar será «não inferior ao valor da prestação em falta», assentou, em síntese, na ideia de que tal estatuição levaria a desconsiderar «na pena os princípios elementares que regem a sua determinação concreta» e a «situação financeira de cada arguido», desta forma violando «princípios fundamentais do Estado de Direito como sejam o princípio da culpa, corolário do princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana, e o princípio da igualdade, reconhecidos constitucionalmente». Vejamos sucessivamente as invocadas violações do princípio da culpa e do princípio da igualdade.
6. O princípio da culpa «significa que a pena se funda na culpa do agente pela sua acção ou omissão, isto é, em um juízo de reprovação do agente por não ter agido em conformidade com o dever jurídico, embora tivesse podido conhecê-lo, motivar-se por ele e realizá-lo» (José de Sousa e Brito, «A lei penal na Constituição», in Estudos sobre a Constituição, 2º vol., Lisboa, 1978, págs.
199-200). Implica tal princípio que «não há pena sem culpa, excluindo-se a responsabilidade penal objectiva, nem medida da pena que exceda a da culpa»
(aut. e ob. cit., pág. 200). O princípio da culpa tem assento constitucional, decorrendo da dignidade da pessoa humana (art. 1º) e do direito à liberdade (nº 1 art. 27º), como tem reconhecido a doutrina (neste sentido, José de Sousa e Brito, ob. cit., pág. 199 e Maria Fernanda Palma, «Constituição e Direito Penal – As questões inevitáveis», in Perspectivas Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição de
1976, vol. II, Coimbra, 1997, pág. 234; no sentido de que o princípio da culpa é
«consequência da exigência incondicional de defesa da dignidade da pessoa humana que ressalta dos arts. 1º, 13º-1 e 25º-1 da CRP», v. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – Parte Geral – As consequências jurídicas do crime, Lisboa,
1993, pág. 84; cf. também Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, III, Lisboa, 1999, pág. 25, para quem este princípio se funda «no princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal, que a Constituição consagra logo no artigo
1º») e a jurisprudência constitucional (cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 426/91, in Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992 e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 20º, pág. 423 e segs., nº
524/98, in Acórdãos do Tribunal Constitucional , 40º, pág. 623 e segs., nº
663/98, in Diário da República, II Série, de 15 de Janeiro de 1999, nº 89/2000, in Diário da República, II Série, de 4 de Outubro de 2000, nº 202/2000, in Diário da República, II Série, de 11 de Outubro de 10/2000 e nº 95/2001, não publicado). São consequências desta consagração constitucional, entre outras, a exigência de uma culpa concreta (e não ficcionada) como pressuposto necessário da aplicação de qualquer pena, e inerente proscrição da responsabilidade objectiva; a proibição de aplicação de penas que excedam, no seu quantum, o que for permitido pela medida da culpa; a proibição das penas absoluta ou tendencialmente fixas
(cf. os acórdãos nº 202/2000 e nº 95/2001). Segundo a decisão recorrida, a norma que constitui objecto do presente recurso é violadora do princípio da culpa, na medida em que «poderá conduzir a que a pena de multa concretamente aplicada a cada arguido exceda os limites impostos pela sua culpa concreta». O nº 1 do artigo 24º em análise dispõe, como já se deixou registado, que «Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo legalmente estabelecido». A eventual procedência do julgamento de inconstitucionalidade por violação da proposição segundo a qual a pena não pode exceder a medida da culpa depende da averiguação do exacto alcance da disposição transcrita. Ora, esse exacto alcance parece não ter sido devidamente tido em consideração pela decisão recorrida, como se vai ver.
7. Antes de mais, importa sublinhar que o legislador tem uma ampla margem de liberdade na fixação das sanções correspondentes aos comportamentos que decidiu tipificar como crimes (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na «Constituição da República Portuguesa anotada», 3a edição, Coimbra, 1993, pág. 197, para quem
«resta um amplo campo à discricionariedade legislativa em matéria de definição das penas») embora respeitando os princípios constitucionais, entre os quais se destacam o da necessidade das penas, o da proporcionalidade e o da igualdade. Dentro do âmbito dessa liberdade do legislador cabe – sempre no respeito pelos princípios constitucionais – a escolha da pena ou penas aplicáveis aos diferentes crimes, quer na sua identidade e regime, quer na sua medida abstracta
(penalidade, pena aplicável ou «moldura penal»). Optou o legislador por cominar, relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal, em alternativa, a pena de prisão até três anos ou a pena de «multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo legalmente estabelecido». Assim, os limites da pena de multa são estabelecidos tendo por referência o valor da prestação em falta: o limite mínimo corresponde a tal valor, enquanto o limite máximo corresponde ao dobro desse valor (salvo se o limite máximo legalmente estabelecido for inferior, caso em que este será o limite máximo da multa prevista para o crime de abuso de confiança). Deste modo, e sem prejuízo da intervenção, nos termos gerais, de institutos que permitam atenuar a responsabilidade (atenuação especial, dispensa de pena), é dentro da margem fornecida pelos referidos limites mínimo e máximo (e não fora deles) que o grau de culpa do agente é objecto da devida ponderação. A decisão recorrida apenas pôde considerar que o limite mínimo previsto na parte final do nº 1 do artigo 24º era violador do princípio da culpa porque optou por um diferente enquadramento dogmático. Em vez de apurar os limites mínimo e máximo da pena de multa aplicável em função do montante da prestação tributária em dívida e do dobro desse montante, preferiu aplicar, sem reservas, o artigo
11º, como se esta última disposição não fosse afastada, em grande medida, pela norma especial do artigo 24º. É verdade que o Tribunal a quo se deu conta do carácter «inconciliável» da aplicação simultânea dos artigos 11º e 24º. Todavia, em lugar de, nos termos gerais, fazer prevalecer a regra especial do artigo 24º sobre a regra geral do artigo 11º, insistiu na aplicação integral desta, recusando, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação do limite mínimo previsto naquela. Do exposto se conclui que a adopção de um limite mínimo da pena de multa do crime de abuso de confiança fiscal correspondente ao montante da prestação em dívida, acompanhada pela fixação de um montante máximo correspondente ao dobro daquela soma, não viola o princípio da culpa.
8. Pode, no entanto, suscitar-se a dúvida sobre se o modo de fixação dos limites da pena de multa, atendendo à necessidade de respeitar o limite máximo legalmente estabelecido para a pena de multa, pode provocar a cominação de uma pena de multa fixa. Tal sucederia se o montante de prestação tributária em dívida, que determina o limite mínimo da pena de multa, pudesse igualar o limite máximo legalmente estabelecido. A esta dúvida deve responder-se negativamente. Com efeito, a cominação da pena de prisão até 3 anos ou de multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro (sem que possa exceder o máximo abstractamente estabelecido), nos termos do nº 1 do artigo 24º, não vale para infracções em que a quantia em dívida é inferior a 250.000$00 (caso em que o nº 4 prevê uma multa até 120 dias), ou superior a 5.000.000$00 (hipótese em que o nº 5 comina uma pena de prisão de 1 a 5 anos). Relativamente às quantias que se encontrem entre 250.000$00 e 5.000.000$00, não
é possível ultrapassar o máximo abstractamente estabelecido, já que tal máximo corresponde, por força dos nºs 2 e 3 do artigo 11º, respectivamente, a
36.000.000$00 ou a 500.000.000$00, respectivamente no caso de pessoas singulares ou de pessoas colectivas. Esta conclusão poderia ser posta em causa, se se entendesse que «o limite máximo abstractamente estabelecido», a que se refere o nº 1 do artigo 24º, pressupõe, para cada arguido, a fixação do montante correspondente a cada dia de multa, nos termos do artigo 11º, o que levaria a que o limite mínimo da pena de multa pudesse igualar o limite máximo legalmente estabelecido. Neste sentido deporia a falta de sentido útil de tal limite – já que ele nunca limitaria o montante decorrente do nº 1 do artigo 24º –, se assim não fosse entendido. Apesar deste argumento, porém, não pode deixar de se entender o «limite máximo abstractamente estabelecido» no sentido de verdadeiro limite abstracto, isto é, independente do caso concreto, e, por isso, a implicar a multiplicação do montante máximo previsto para cada dia de multa (cf. nº 3 do artigo 11º) pelo número máximo de dias de multa previstos (nº 2 do mesmo artigo). É que seria valorativamente contraditório estabelecer um sistema de limites da pena de multa no nº 1 do artigo 24º a partir de quantias fixadas por referência à quantia em dívida, e ao mesmo tempo pressupor a necessidade de fixação do montante correspondente a cada dia de multa, para o efeito da determinação do limite máximo abstractamente estabelecido. Tanto mais que tal entendimento conduziria, justamente, à solução absurda de o limite máximo legalmente estabelecido poder ser igual ou inferior ao limite mínimo previsto no nº 1 do artigo 24º.
9. Pelo que toca à alegada violação do princípio da igualdade (art. 13º da Constituição), por impossibilidade de ponderação da situação económica e financeira do arguido, valem, em síntese, mutatis mutandis, as considerações formuladas sobre a não violação do princípio da culpa. Na verdade, nada obsta a que a situação económica e financeira do arguido seja tida em conta dentro dos limites mínimo e máximo estabelecidos no nº 1 do artigo 24º, assim se conseguindo tratar igualmente o que é igual, e desigualmente o que é desigual. Não se diga, por outro lado, que viola o princípio da igualdade a possibilidade de arguidos de situação económica e financeira semelhante virem a ser punidos de modo diferente, em função da existência de diferentes limites mínimo e máximo, determinados pelos montantes em dívida. A diferente penalidade corresponde justamente à diferente gravidade que o legislador fundou na diversa quantia em dívida. Trata-se de uma solução que tem paralelo, por exemplo, na diferenciação de penalidade para crimes contra o património em função do valor em causa [cf. as alíneas a) a c) do artigo 202º e os artigos 203º e seguintes do Código Penal].'
A orientação perfilhada no acórdão acabado de citar foi também adoptada pelo Tribunal Constitucional no seu acórdão n.º 307/02, de 3 de Julho (publicado no Diário da República, II Série, n.º 232, de 8 de Outubro de 2002, p. 16792).
8. Entende-se, tal como se entendeu no citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 548/01, de 7 de Dezembro, a propósito da norma do artigo 24º, n.º 1, do RJIFNA, que a equivalência entre o limite mínimo da multa a aplicar à fraude fiscal e o valor da vantagem patrimonial pretendida pelo agente não obsta, por si, à ponderação da culpa do agente e da sua situação económica e financeira na determinação da medida da pena de multa, nos termos gerais. Na verdade, nada impede que os critérios de determinação da medida da pena de multa, constantes dos artigos 10º e 11º, n.º s 2 e 3, ambos do RJIFNA, funcionem dentro dos limites estabelecidos no artigo 23º, n.º 4, do RJIFNA, ora analisado. Assim sendo, valem no presente caso as considerações tecidas no mesmo acórdão a propósito da violação do princípio da culpa e do princípio da igualdade, para as quais se remete. Por outro lado – e sendo certo que o legislador goza de ampla margem de liberdade na fixação dos limites mínimo e máximo das molduras penais –, não se afigura que o critério da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, adoptado na norma em apreço, se revele ofensivo dos princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação das penas. Contrariamente ao que sustenta o recorrente, a adopção de um tal critério não significa que a pena aplicável ao crime de fraude fiscal prossiga o fim da retaliação ou da expiação. É que a conduta que lhe subjaz é tanto mais grave e socialmente mais lesiva quanto mais elevado for o montante envolvido: como tal, é ainda a protecção de um bem jurídico o que se visa e não a mera censura do agente. Quanto ao argumento do recorrente segundo o qual a norma em apreço não permitiria ponderar a culpa e as condições económicas do agente, quando este se apropriasse de um valor igual ou superior ao máximo da pena de multa aplicável, não há que discuti-lo no âmbito do presente processo, uma vez que a norma impugnada não foi aplicada nessa dimensão. III
9. Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 23º, n.º 4, do RJIFNA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção do Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro, na parte em que fixa como limite mínimo da multa a aplicar o valor da vantagem patrimonial pretendida pelo agente, quando tal limite mínimo seja inferior ao limite máximo a que se refere o mesmo preceito; b) Consequentemente, e na medida em que esta condição foi respeitada na decisão recorrida, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 22 de Outubro de 2002 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa