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Proc. nº 368/02
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional: I – Relatório.
1. Por decisão do ICP – Instituto das Comunicações de Portugal, de 17 de Abril de 2001, foi a ora recorrente A condenada na coima de 2.5000.000$00, por, no dia
5 de Maio de 2000, durante a prestação de serviço de audiotexto, através de três números de telefone, não informar os utilizadores da natureza e do preço dos serviços e não sinalizar, através de sinais sonoros, a cadência por cada minuto de comunicação, o que, no entender daquela decisão, consubstancia a prática de três ilícitos contra-ordenacionais, previstos nos artigos 9º, nºs 2 e 3 do DL nº
177/99, de 21 de Maio, puníveis nos termos do art. 14º, nº 1, al. b) e nº 2 do mesmo diploma.
2. Inconformada com esta decisão a arguida recorreu para o Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa que, por decisão de 29 de Outubro de 2001, julgou o recurso improcedente.
3. Ainda inconformada a arguida recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo, a concluir a sua alegação, dito, designadamente, o seguinte:
'(...)
18º - A prova constante dos autos e apresentada como fundamento da deliberação do Conselho de Administração do ICP e da acusação daí resultante, resulta dos autos de notícia lavrados por dois fiscais do ICP que têm por base exclusiva as ligações telefónicas efectuadas para os números de telefone mencionados na acusação. Ora,
19º - O art. 34º da CRP, incluído no âmbito dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, estabelece a proibição de toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal. Sublinhando-se que,
20º - As restrições a este princípio estão autorizadas apenas em processo penal e estão igualmente sob reserva de lei (vide art. 18º, nº 2 e 3 da CRP), só podendo ser decididas por um juiz (art. 32º, nº 4 da CRP). Assim,
21º A prova admitida foi obtida exclusivamente através da ingerência nas telecomunicações ofendendo o já referido preceito constitucional previsto no art. 34º, nº 4 da Lei Fundamental.
22º - Não nos deparamos sequer perante uma excepção, pois a mesma só é permitida em processo penal e não no processo contra-ordenacional, não existindo qualquer lei que autorize a fiscalização efectuada por qualquer entidade ou órgão público através da ingerência nas telecomunicações e se existisse tal lei estaria ferida de inconstitucionalidade material. Assim,
23º - Em conformidade com a lei e a Constituição não deveriam ter sido tomadas em consideração provas proibidas para sustentar a decisão recorrida.
24º - O método utilizado pelo ICP para fiscalizar é inconstitucional, pois dúvidas não restam que a fiscalização é feita através da ingerência nas telecomunicações, independentemente de se ouvir somente a gravação ou de se proceder a conversação com os operadores da empresa.
(...)':
5. O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 20 de Março de 2002, decidiu negar provimento ao recurso. Sobre a alegada incompatibilidade entre o método de obtenção das provas utilizado pelos fiscais do ICP e o art. 34º, nº 4 da Constituição, ponderou aquele Tribunal:
'(...) Porém, no caso, não foram realizadas quaisquer escutas telefónicas ou intercepções telefónicas e o facto de os fiscais do ICP terem efectuado ligações telefónicas para os números referidos na acusação e de terem ouvido as mensagens destinadas directamente aos utilizadores, constatação que veio a dar origem aos autos de notícia constantes dos autos, não constitui qualquer ingerência nas telecomunicações. Esta só existiria se os fiscais tivesse interceptado, através dos meios técnicos apropriados, conversações estabelecidas entre outros utilizadores da linha telefónica, por forma a captar conversas tidas por terceiros, uma vez que a tutela constitucional se dirige à inviolabilidade e reserva das telecomunicações, visando preservar o sigilo envolvido nessas comunicações. No caso, não foi posta em causa a reserva de qualquer comunicação estabelecida através do telefone, tendo sido obtida a prova, de forma directa, pela constatação feita pelos fiscais ao telefonarem para os números colocados à disposição do público, como se se tratasse de consumidores do serviço fornecido pela recorrente, sem que isso represente qualquer ingerência, violação ou interferência nos meios de comunicação, confundindo a recorrente esta situação com a de intercepção telefónica.
(...)'.
6. É desta decisão que vem interposto, ao abrigo da alínea b), do nº 1, do artigo 70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da inconstitucionalidade do 13º nº 2 do Decreto-Lei nº 177/99, de 21 de Maio, por alegada violação do artigo 34º, nº 4 da Constituição.
7. Já neste Tribunal foi a recorrente notificada para alegar, o que fez, tendo concluído da seguinte forma:
'1 – O Tribunal da Relação baseou a condenação do recorrente em meios probatórios que assentam a sua existência em uma grave violação do art. 34º, nº
4 da CRP.
2 – Procedeu assim a uma interpretação materialmente inconstitucional daquela norma.
3 – Em conformidade com a lei e a Constituição não deveriam ser tomadas em consideração provas proibidas para sustentar a decisão recorrida.
4 – Pelo que deve o acórdão proferido ser revogado e ainda ser declarada materialmente inconstitucional a interpretação dada pela decisão recorrida relativamente ao art. 34º, nº 4'.
8. Contra-alegou o Ministério Público, ora recorrido, tendo concluído da seguinte forma:
'1º - Tendo o acórdão recorrido considerado expressamente que a actividade levada a cabo pelos fiscais do ICP não traduziu realização de quaisquer escutas ou intercepções de comunicações telefónicas – limitando-se estes a ouvir as mensagens destinadas directa e publicamente aos utilizadores dos serviços de audiotexto, constatando, através dessa mera audição, o incumprimento pelos operadores das obrigações legais que os vinculavam – é manifesto que não foi feita aplicação de qualquer norma em termos de dela decorrer a possibilidade de feitura de escutas telefónicas no âmbito do processo contra-ordenacional.
2º - Termos em que não deverá sequer conhecer-se do recurso interposto'.
9. Notificada a recorrente para responder, querendo, à questão prévia suscitada pelo Ministério Público, pela mesma não foi apresentada qualquer resposta. Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
II – Fundamentação.
10. Questão prévia: admissibilidade do recurso. O recurso previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que: i) o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua dimensão normativa -; e que, ii) não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado, como ratio decidendi, no julgamento do caso. Dito isto, importa começar por averiguar se a recorrente suscitou, durante o processo, a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 13º, nº 2 do Decreto-Lei nº 177/99, de 21 de Maio, quando interpretada em termos de conferir aos fiscais do ICP o poder de realizarem escutas telefónicas (cfr. fls. 202) no
âmbito de um processo contra-ordenacional e sem prévia autorização judicial. Ora, se atentarmos no teor das conclusões da alegação para o Tribunal da Relação de Lisboa, verificamos que aí não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando-se a recorrente a imputar ao 'método utilizado pelo ICP para fiscalizar (cfr. conclusão 24º) - e não a qualquer norma jurídica, designadamente ao artigo 13º, nº 2 do Decreto-Lei 177/99, de 21 de Maio, que não é, nesta parte, sequer referido - a violação do disposto no artigo
34º, nº 4 da Constituição. Para o demonstrar basta recordar aqui a parte da alegação para o Tribunal da Relação de Lisboa em que alegadamente teria sido suscitada, perante o Tribunal Recorrido, a questão da inconstitucionalidade do artigo 13º, nº 2 do Decreto-Lei
177/99, de 21 de Maio:
'(...)
18º - A prova constante dos autos e apresentada como fundamento da deliberação do Conselho de Administração do ICP e da acusação daí resultante, resulta dos autos de notícia lavrados por dois fiscais do ICP que têm por base exclusiva as ligações telefónicas efectuadas para os números de telefone mencionados na acusação. Ora,
19º - O art. 34º da CRP, incluído no âmbito dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, estabelece a proibição de toda a ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações, salvo nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal. Sublinhando-se que,
20º - As restrições a este princípio estão autorizadas apenas em processo penal e estão igualmente sob reserva de lei (vide art. 18º, nº 2 e 3 da CRP), só podendo ser decididas por um juiz (art. 32º, nº 4 da CRP). Assim,
21º A prova admitida foi obtida exclusivamente através da ingerência nas telecomunicações ofendendo o já referido preceito constitucional previsto no art. 34º, nº 4 da Lei Fundamental.
22º - Não nos deparamos sequer perante uma excepção, pois a mesma só é permitida em processo penal e não no processo contra-ordenacional, não existindo qualquer lei que autorize a fiscalização efectuada por qualquer entidade ou órgão público através da ingerência nas telecomunicações e se existisse tal lei estaria ferida de inconstitucionalidade material. Assim,
23º - Em conformidade com a lei e a Constituição não deveriam ter sido tomadas em consideração provas proibidas para sustentar a decisão recorrida.
24º - O método utilizado pelo ICP para fiscalizar é inconstitucional, pois dúvidas não restam que a fiscalização é feita através da ingerência nas telecomunicações, independentemente de se ouvir somente a gravação ou de se proceder a conversação com os operadores da empresa'. (Sublinhado nosso).
Por tudo o exposto, torna-se evidente que não pode conhecer-se do objecto do presente recurso, já que nem a recorrente imputou, durante o processo, a inconstitucionalidade ao artigo 13º, nº 2 do Decreto-Lei nº 177/99, de 21 de Maio. III – Decisão. Em face do exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso. Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em oito unidades de conta. Lisboa, 30 de Outubro de 2002- José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida