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Procº nº 397/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Não se conformando com o despacho proferido em 1 de Fevereiro de
2002 pelo Presidente da Câmara Municipal de Alter do Chão que lhe impôs a coima de 3€ por violação da alínea a) do artº 94º do Código de Posturas Municipais daquele concelho, veio A impugnar judicialmente tal imposição.
Por sentença, proferida em 7 de Maio de 2002 pelo Juiz do Tribunal de comarca de Fronteira, foi determinado o arquivamento dos autos, para tanto se tendo recusado a aplicação dos artigos 93º e 94º do Código de Posturas Municipais de Alter do Chão, dado que do mesmo não contava 'qualquer indicação de onde se extraia, directa ou indirectamente, implícita ou explicitamente, qual a lei definidora da competência do órgão de que emanou tal Regulamento e, bem assim, qual a lei que habilitaria a emissão de normas com o conteúdo das que estão em causa - ou seja, a definição de determinados comportamentos como ilícitos contra-ordenacionais'.
Pode, na verdade, ler-se, em dados passos, nessa sentença:-
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Em relação à publicação deste Regulamento, e com relevância para a decisão deste processo, importa reter que:
- No Edital nº 23/85 da Câmara Municipal de Alter do Chão, consta o seguinte texto: ‘F..., Presidente da Câmara Municipal do Concelho de Alter do Chão: Torna público e faz saber que, em reunião ordinária de 1 de Agosto corrente e após cumprido o que está estabelecido na alínea a), do nº 2, do artigo 39º do D.L. 100/84, de 29 de Março, foi aprovado o novo ‘Código de Posturas Municipais’, que passa a vigorar em todo o concelho. Mais faz saber que o referido Código de Posturas, entra em vigor 10 dias a contar da data do presente edital, sendo o mesmo exposto para conhecimento nos locais habituais. E para constar se passou este e outros de igual teor que vão ser afixados nos lugares públicos do estilo. Paços do Conselho de Alter do Chão, 7 de Agosto de
1985’.
- No artigo 94º, alínea a), desse Código diz-se que nas instalações sanitárias públicas é proibido ‘utilizá-las para fins diferentes daqueles a que se destinam’.
No artigo 95º prescreve-se que ‘as contravenções ao preceituado no artigo anterior são passíveis de coimas de 500$00 a 1.000$00’.
- no texto do Código de Posturas não se refere qualquer outro diploma.
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No edital, acima transcrito, consta a norma da Lei das Autarquias Locais que diz que compete à assembleia municipal :’a) Aprovar posturas e regulamentos’.
Ora, se ficou claro, com a indicação de tal norma, que a Assembleia Municipal de Alter do Chão tinha poderes para aprovar posturas e regulamentos
(competência subjectiva), não foi, sequer minimamente (ou implicitamente) indicada a norma legal que atribuísse competência à Assembleia Municipal de Alter do Chão para editar normas respeitantes à matéria que regulamentou
(competência objectiva).
Ou seja, nada se diz sobre a competência da Assembleia Municipal de Alter do Chão para emitir normas que qualifiquem determinados comportamentos como contra--ordenações.
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É verdade que qualquer jurista não desconhece esta competência, mas tendo em conta todo o teor do Código e do edital publicado, é por demais claro que ‘os destinatários das normas em questão ficam totalmente desprovidos do conhecimento da lei habilitante, assim não se alcançando os valores da certeza e transparência que o preceito constitucional’, agora ínsito no nº 8 do artigo
115º da Constituição da República Portuguesa, visa acautelar (...).
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É da decisão de que se encontra transcrita parte que, pelo Ministério Público, e fundado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vem interposto o vertente recurso.
2. Determinada a feitura de alegações, rematou e entidade recorrente a por si formulada com as seguintes «conclusões»:-
'1 - O princípio da primariedade ou precedência da lei sobre o regulamento implica que todo e qualquer diploma regulamentar deva conter citação da respectiva lei habilitante, de modo a facultar aos destinatários da norma a fácil e efectiva percepção das normas legais que suportam tal regulamento.
2 - Tratando-se de regulamentos autónomos, editados pelas autarquias locais no exercício das suas atribuições próprias, tal citação deverá permitir a identificação das normas que atribuem competência subjectiva e objectiva para a emissão da norma regulamentar.
3 - Satisfaz, de modo minimamente adequado, a referida exigência constitucional a invocação, em regulamento autónomo editado pela autarquia, da norma da lei das autarquias locais que atribui à assembleia municipal competência para a edição de posturas e regulamentos - naturalmente conexionadas com as genéricas atribuições de tais entes públicos.
4 - No caso dos autos, incidindo a norma regulamentar sobre a disciplina da utilização de bens públicos municipais, é patente e notória a conexão de tal norma com as atribuições dos municípios, mostrando que a assembleia municipal não desbordou das suas competências legais.
5 - Termos em que deverá proceder o presente recurso'.
De seu lado, o recorrido A concluiu assim a sua alegação:-
'I- A posição assumida pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, nas suas doutas Alegações, é uma posição isolada perante a doutrina e perante a jurisprudência deste Altíssimo Tribunal. II- O ‘Código de Posturas Municipais’, aprovado pela Assembleia Municipal de Alter do Chão em 22 de Fevereiro de 1985, sofre de inconstitucionalidade formal, na medida em que não indica expressamente a lei que tem como objectivo regular. III- Viola o disposto no n.º 8 do art. 112° da Constituição da República Portuguesa. IV - Ao contrário do defendido pelo Ministério Público, não deve vigorar um
‘critério funcionalmente adequado’. V- O que a Lei Fundamental pretende garantir com o dever de citação da lei habilitante, é a subordinação do regulamento à lei. VI- Analisando o teor do ‘Código de Posturas Municipais de Alter do Chão’, bem como do Edital n° 23/85, nada consta no sentido de indicar a lei que visa regular . VII - O ‘Código de Posturas Municipais de Alter do Chão’ é omisso no que tange à indicação expressa da lei que visa regulamentar . VIII- O ‘Código de Posturas Municipais’ em apreço não indica, implicitamente sequer, a lei ao abrigo da qual foi emitida. X- Os Regulamentos que não respeitem a imposição feita pelo art.112°. n.º 8 C.R.P. são constitucionalmente ilegítimos. XI- Esta é a jurisprudência defendida por este Tribunal Constitucional. XII- Por todo o exposto, deve ser julgado inconstitucional, por violação do n.º
8 do art. 112° C.R.P ., o ‘Código de Posturas Municipais de Alter do Chão’'.
Cumpre decidir.
3. Visa-se, com o presente recurso de constitucionalidade, apurar se a menção constante do edital nº 23/85, emanado da Câmara Municipal de Alter do Chão em 7 de Agosto de 1985, e em que se refere que o Código das Posturas Municipais daquele concelho foi aprovado de acordo com o 'estabelecido na alínea a) do nº 2 do artº 39º do Decreto-Lei nº 100/84 de 29 de Março' é dotada de suficiência para os efeitos do que se consagra no nº 7 do artigo 115º da Constituição na versão decorrente da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro.
Aquele preceito constitucional dispunha, com efeito, que os regulamentos deviam indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão, o que significa que nele se dava expressão àquilo que, pela doutrina, é designado como o princípio da precedência da lei a que devem obedece as normas regulamentares e o dever de citação da lei habilitante por banda dos regulamentos.
Como se escreveu no Acórdão nº 253/88 deste Tribunal (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 9 de Fevereiro de 1989), 'no exercício do poder regulamentar têm que ser respeitados diversos parâmetros, e assim é que cada autoridade ou órgão só pode elaborar os regulamentos para cuja feitura a lei lhe confira competência, não podendo invadir a de outras autoridades ou
órgãos (competência subjectiva) e nessa feitura deverá visar-se o fim determinante da atribuição do poder regulamentar (competência objectiva') (cfr. quanto ao ponto, Afonso Queiró, Teoria dos Regulamentos, in Revista de Direito e Estudos Socais, ano XXVII, nºs 1, 2, 3 e 4, 19.
4. No Decreto-Lei nº 100/84 - cfr. alínea a) do nº 2 do seu artº 39º
- prescreve-se que é da competência da assembleia municipal a aprovação de posturas e regulamentos. De acordo com tal prescrição, torna-se desde logo límpido que, no caso da postura em causa, da menção constante do edital que a tornou pública e, desta arte, a deu a conhecer ao universo a que se destinava, se retira inequivocamente qual fosse a competência subjectiva do órgão dotado de poderes para a respectiva emissão, ou seja, que esse órgão era a assembleia municipal.
Mas, porque, a par da indicação do órgão de onde emana a norma regulamentar, o citado dispositivo constitucional impõe ainda a indicação do poder facultado a tal órgão para a edição de normas com o conteúdo das sub iudicio, mister é que se saiba se da aludida se pode retirar sem grandes equivocidades que aquele poder estava, concretamente, cometido à assembleia municipal em causa, ou seja, qual a competência objectiva para editar as normas respeitantes à matéria que regulamentou.
Do cotejo do disposto neste artigo 39º com o conteúdo de outras normas, contidas na mesma lei, que, seguidamente, se enunciarão, a resposta a esta última questão não poderá deixar de ser afirmativa.
5. Efectivamente, no caso, não se poderá olvidar o que se encontra estabelecido nos artigos 1º, 2º e 30º do Decreto-Lei 100/84.
Dispõe-se no nº 2 do mencionado artº 1º que as autarquias locais são pessoas colectivas dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas; no nº 3, que de entre aqueles
órgãos se conta o município; e, no artº 30º, que de entre os órgãos representativos do município se conta a assembleia municipal a assembleia municipal.
Neste contexto, é de fácil apreensão a ideia de que as assembleias municipais, sendo um órgão do município – cfr. artº 2º do mencionado diploma -, visam a prossecução dos interesses próprios das autarquias, competindo-lhes, nomeadamente, proceder à administração dos bens próprios sob a sua jurisdição.
Deste modo, ligar-se-á a actividade da assembleia municipal à defesa e prossecução dos objectivos definidos nestes normativos legais, enquadrando-se a sua actividade dentro dos limites dos poderes que lhe estão atribuídos para regulamentar e proceder à administração dos bens da autarquia, zelando pelos bens que sejam do domínio público.
Se assim é, nenhuma dificuldade se depara quanto à efectivação de um raciocínio de harmonia com o qual qualquer assembleia municipal terá uma ampla legitimação para editar regulamentos autónomos sobre toda e qualquer matéria que se situe no âmbito das suas atribuições e competências legais, designadamente e para o que ora releva, com o intuito de proceder à regulação das formas de administração, conservação e utilização dos bens do domínio público autárquico.
Ora, a norma questionada – artigo 94º do Código de Posturas Municipais – tem como objecto a regulamentação da utilização de instalações sanitárias pertencentes ao Município; logo, tem como fim implícito a regulamentação de matérias que se situam no âmbito da sua competência legal, uma vez que estabelece o uso e destino a dar para a conservação, manutenção e fruição de determinados bens pertencentes ao domínio público da autarquia, desta arte se vislumbrando o objectivo determinante que presidiu a esta específica actividade regulamentar na matéria.
Por outro lado, a regulamentação visada no referido Código de Posturas, no ponto que ora nos interessa, é, de modo inequívoco, enquadrável no poder regulamentar próprio das autarquias – e, assim, da assembleia municipal, enquanto seu órgão –, sendo, pois, expressão da autonomia normativa local.
Como dizem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 895), 'o núcleo da autonomia local consiste no direito e na capacidade efectiva de as autarquias locais regularem e gerirem, nos termos da lei, sob sua responsabilidade, e no interesse das populações, os assuntos que lhe estão confiados'.
Assiste, pois, razão à entidade recorrente quando afirma na sua alegação que, 'no que respeita à competência objectiva, ela decorre, bem vistas as coisas, da ampla legitimação dos municípios para editarem regulamentos autónomos sobre toda e qualquer matéria situada no âmbito das suas atribuições e competências legais, exercendo, por esta via, o poder regulamentar autónomo que a própria Lei Fundamental lhes outorga'.
6. Ora, no caso em análise –, em que está apenas em causa a regulamentação da disciplina de utilização de bens do domínio público municipal que são as instalações sanitárias abertas ao público num mercado municipal –, torna-se notório, através do que se prescreve no indicado artº 39º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 100/84, que é deste normativo que resulta a atribuição, por lei formal, da competência «objectiva» à assembleia municipal para edição de normas regulamentares que visem a prossecução dos interesses que a mesma lei comete aos cabidos órgãos autárquicos e que, indubitavelmente, se conexionam com o exercício das suas próprias e genéricas atribuições.
Consequentemente, de concluir é que a menção ínsita no edital nº 23/85 da Câmara Municipal de Alter do Chão deve considerar-se suficiente para definir com clareza , quer a competência objectiva, quer a subjectiva, para a emissão da Postura em causa, desta sorte se satisfazendo a exigência constitucional constante do nº 7 do artigo 115º da Lei Fundamental na versão decorrente da Lei Constitucional nº 1/82.
7. Em face do que se deixa dito, decide-se conceder provimento ao recurso, em consequência se determinando a reforma da sentença recorrida de harmonia com o presente juízo sobe a questão de constitucionalidade.
Sem custas, por não serem elas devidas pela entidade impugnante. Lisboa, 2 de Outubro de 2002- Bravo Serra Maria Fernanda Palma Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa