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Proc. nº 678/2001
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A.. interpôs recurso de anulação do despacho do Chefe da Delegação Aduaneira de Setúbal, que considerou na situação de 'fazendas demoradas' uma mercadoria importada destinada à construção naval, tendo sido aplicada a taxa ad valorem de
5%, nos termos do artigo 639º, § 2º, do Regulamento das Alfândegas, na redacção do Decreto-Lei n.º 483-E/88, de 28 de Dezembro.
O Tribunal Central Administrativo, por acórdão de 21 de Novembro de
2000, negou provimento ao recurso.
Foi interposto recurso do acórdão de 21 de Novembro de 2000 para o Supremo Tribunal Administrativo. Nas respectivas alegações, a recorrente sustentou a inconstitucionalidade do artigo 639º do Regulamento das Alfândegas, por violação dos artigos 32º e 165º, nº 1, alíneas c) e d), da Constituição.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 11 de Julho de
2001, negou provimento ao recurso.
2. A.. interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão de 11 de Julho de 2001, para apreciação da conformidade à Constituição da norma do artigo
639º, § 2º, do Regulamento das Alfândegas, tendo apresentado alegações que concluiu do seguinte modo: I - A Recorrente não se conforma com o douto acórdão recorrido quando decidiu pela constitucionalidade da taxa estabelecida no parágrafo 2° do art.639° do RA
- a chamada 'taxa de fazendas demoradas' ; II - O entendimento expresso no douto Acórdão desse Venerando Tribunal proferido em 29/06/99 (Proc. 940/98); que se limitou a aferir da proporcionalidade da taxa, considerando que o facto de ser calculável sobre o valor da mercadoria não afecta o princípio da proporcionalidade -, não pode manter-se pelas razões que resultam do texto dos Acórdãos do TJCE proferidos nos processos C-36/94 e, sobretudo, C213/99; III - O TJCE vem defendendo que a questão da admissibilidade da taxa de fazendas demoradas prevista no § 2° do art. 639° RA encontra-se na simbiose entre o
'respeito do princípio da proporcionalidade' e as 'condições análogas às existentes em direito nacional para infracções da mesma natureza e da mesma actividade' – vide ponto 23 do Ac.TJCE de 7/12/2000 (s/n); IV - A norma contida no § 2° do art. 639° RA é inédita, ao permitir a aplicação de uma sanção pecuniária em condições que não encontram paralelo no ordenamento jurídico nacional; V - O já referido Ac. TJCE, proc. C-213/99 alude mesmo (ponto 20.) às infracções aduaneiras, pois estão em causa preceitos contidos no Código Aduaneiro Comunitário (arts.21°, 50° e 53°), qualificando a aplicação da taxa ora discutida de forma substancialmente diferente da jurisprudência nacional; VI - Paralelamente, o mesmo TJCE manda que 'as violações da regulamentação comunitária sejam punidas em condições substantivas e processuais análogas às aplicáveis às violações do direito nacional de natureza e importância semelhantes' (s/n); VII - Não há conhecimento de no nosso ordenamento ser autorizada às autoridades administrativas a aplicação de uma sanção pecuniária, seja de que natureza for, sem a possibilidade de o responsável ser chamado a defender-se: a aplicação de uma sanção pecuniária, ou seja, a possibilidade de atingir o património do particular, sem qualquer contraditório, sem possibilidade de defesa prévia ou imediata, não pode aceitar-se num ordenamento como o português; VIII - A possibilidade de recurso contencioso do acto que a aplique não contraria os argumentos ora expostos pois, nesse caso, estaria aberta a via para a aplicação de sanções administrativas sem qualquer possibilidade prévia de contestação; IX - O art.32° da CRP contém princípios aplicáveis a todo o tipo de sanções aplicáveis pelas autoridades - judiciais ou administrativas -, o que aliás é pacificamente aceite pela doutrina e jurisprudência nacionais ao estender a aplicação do preceito ao regime contraordenacional (que não é expressamente referido no normativo citado). X - Ainda que se trate de sanção meramente administrativa, não contraordenacional, para além de não encontrar paralelo no sistema (não se confunde com o pagamento de taxa de justiça em processo judicial, que assenta no pagamento da utilização dos serviços de justiça), deve necessariamente impor o contraditório.
A Fazenda Pública contra-alegou concluindo o seguinte:
1ª A recorrente confronta o douto acórdão recorrido com os nºs 1, 2, 5 e 8 do art° 32° da Constituição, e só com estes preceitos constitucionais que estabelecem as garantias do processo criminal. Ora,
2ª O pagamento do montante constante do §2° do art° 639° do Regulamento das Alfândegas é uma simples alternativa à venda das mercadorias, oferecida à livre opção do operador económico, consequentemente não tendo a natureza de sanção penal, nem sequer contra - ordenacional, nem a podendo ter, porque o excesso do prazo legal não é uma infracção fiscal aduaneira punível com coima, nem um crime punível com uma pena, é um facto jurídico independente de culpa que desencadeia como efeito jurídico a venda das mercadorias em hasta pública ou, em alternativa, e só em certas circunstâncias e mediante iniciativa do operador económico, o pagamento do dito montante, o qual funciona, assim, como mero estímulo para que os prazos legais não sejam excedidos. Consequentemente,
3ª Não viola nem pode violar o art° 32° da Constituição, que estabelece, e só, as garantias do processo criminal.
Cumpre decidir.
II Fundamentação
3. O artigo 638º, nº 1, do Regulamento das Alfândegas, na redacção do Decreto-Lei nº 483-E/88, de 28 de Dezembro, preceitua que serão vendidas pelos serviços aduaneiros, depois de cumpridas as formalidades legais, além doutras, 'As mercadorias armazenadas em quaisquer depósitos de regime aduaneiro ou de regime livre, quando neles excedam os respectivos prazos de armazenagem'.
Porém, o artigo 639º dispõe que 'os donos das mercadorias demoradas além dos prazos legais de armazenagem podem despacha-las desde que assim o requeiram no prazo de seis meses contados a partir da sujeição da mercadoria ao regime de hasta pública', sem prejuízo do pagamento de todos os encargos e imposições devidos acrescidos de uma percentagem de 5% do valor das mercadorias
(cf. §2º do mencionado artigo).
O Tribunal Constitucional já procedeu à apreciação da conformidade à Constituição da norma que constitui objecto do presente recurso. Com efeito, nos Acórdãos nºs 414/99 e 564/2001 (D.R., II Série, de 13 de Março de 2000 e de 1 de Fevereiro de 2002, respectivamente), o Tribunal Constitucional procedeu ao confronto da norma em causa com o princípio da proporcionalidade.
No Acórdão nº 414/99 (para o qual remeteu o Acórdão nº 564/2001), o Tribunal Constitucional considerou o seguinte: A actuação da Administração está efectivamente vinculada á observância do princípio da proporcionalidade, de modo particularmente relevante no âmbito do desenvolvimento de uma actividade discricionária, da qual constitui um dos limites jurídicos (artigo 266º, n.º 2 da Constituição e artigo 5º, n.º 2 do Código de Procedimento Administrativo). O princípio da proporcionalidade impõe que exista uma adequação não só entre o fim da lei e o fim do acto como entre o fim da lei e os meios escolhidos para alcançar tal fim. A adequação terá ainda de manter-se entre as circunstâncias de facto que ocasionam o acto e as medidas que vierem a ser efectivamente tomadas. A proporcionalidade abrange assim não só a congruência, adequação ou idoneidade do meio ou medida para realizar o fim que a lei propõe como também a proibição do excesso. Admitindo que no caso em apreço se está no domínio de intervenção do princípio da proporcionalidade, a fixação de uma percentagem fixa de 5% sobre o valor das mercadorias em causa, já sujeitas ao regime de venda em hasta pública, é medida adequada e idónea para realizar o fim da lei – a liberação das mercadorias do referido regime – passando-as de novo à livre prática? A resposta é indubitavelmente afirmativa: num momento em que o fim das mercadorias é a sua venda pública, com a consequente perda para o respectivo dono, pode este desembaraçar a mercadoria pagando o quantitativo fixado legalmente. Este quantitativo tem o seu valor pré-fixado na lei, dependendo o quantitativo a desembolsar de mera operação aritmética de acordo com o valor declarado das mercadorias. Dado que a finalidade da medida é a de promover o respeito dos prazos de desalfandegamento, é manifesto que os operadores económicos que incumpriram esses prazos verão as mercadorias ser vendidas, com o consequente prejuízo. Porém, a lei admite que possam obviar a tal venda e prejuízo pagando além das despesas a referida percentagem. O valor da quantia a pagar depende do valor das próprias mercadorias, e a opção, entre o seu pagamento ou não, está na disponibilidade do respectivo dono, dependendo apenas de sua vontade em dispor das mercadorias, pois a administração, feito o pedido de despacho, está obrigada a desembaraçar as mercadorias. Não existe, assim, no caso em apreço uma situação relativamente à qual se possa afirmar que a estipulação da medida administrativa compulsória em causa seja intoleravelmente desproporcionada ou exorbitante e, por isso, seja constitucionalmente inadmissível.
Em consequência, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional a norma apreciada.
Nos presentes autos seguir-se-á tal entendimento, remetendo-se, no essencial, para a fundamentação citada.
4. A recorrente sustenta, porém, que a aplicação de uma taxa com natureza sancionatória sem a possibilidade de o responsável poder defender-se previamente consubstancia caso único no ordenamento jurídico português, violando tal disposição normativa o artigo 32º da Constituição. Desde logo, cabe salientar que a medida em questão não consubstancia uma verdadeira sanção, constituindo antes a alternativa à venda em hasta pública das mercadorias armazenadas, decorrente da ultrapassagem dos prazos máximos de armazenamento das mercadorias na Alfândega. Na verdade, a taxa aplicada (e cujo pagamento é voluntário) constitui a última possibilidade de o sujeito reaver, desalfandegando, mercadorias cuja titularidade já perdeu, por terem sido ultrapassados os prazos legais de armazenamento. Visa-se, assim, o desalfandegamento célere das mercadorias e a fixação de um destino para os bens armazenados que não são desalfandegados (evitando-se desse modo a eternização do armazenamento). Conforme resulta da razão de ser do referido regime legal, é manifestamente inadequado invocar o disposto no artigo 32º da Constituição.
Mas, mesmo assim, deve salientar-se que este regime não constitui caso único no ordenamento português. Com efeito, existem outras situações em que a aplicação de uma medida pecuniária justificada pelo incumprimento de prazos não é precedida de 'defesa' prévia, como é o caso, por exemplo, da liquidação de juros de mora (cf. artigos 110º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares e 44º da Lei Geral Tributária). Até mesmo a aplicação administrativa de certas coimas (nomeadamente no direito estradal) não é precedida da contestação do arguido. São casos em que a infracção é detectável em face de elementos objectivos de fácil apreensão, pelo que não é exigida uma investigação prévia desenvolvida. A solução normativa em apreciação não consubstancia, portanto, caso único no ordenamento nacional, ao contrário do que sustenta a recorrente, nunca chegando a estar, assim, sequer, em causa qualquer conflito com a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, independentemente da relevância de tal argumento no plano da constitucionalidade. O § 2º do artigo 639º do Regulamento das Alfândegas nunca violaria o princípio do contraditório, caso se tratasse de uma situação directamente do seu âmbito, porque é efectivamente assegurada a possibilidade de impugnação contenciosa da decisão que aplica a medida, o que é suficiente para a realização do
'contraditório' em face do tipo de questão que não envolve especiais problemas de prova ou interferências com o núcleo essencial de direitos fundamentais (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 80/99 e 550/99 – inéditos –, nos quais o Tribunal considerou não violar o princípio do contraditório a norma do artigo
78º-B da Lei do Tribunal Constitucional quando prevê a possibilidade de ser proferida decisão sumária sem audiência prévia do recorrente, uma vez que está também prevista a possibilidade de reclamação para a Conferência).
Não se verifica, pois, qualquer violação do artigo 32º da Constituição.
III Decisão
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucional o artigo 639º, § 2º, do Regulamento das Alfândegas, negando provimento ao recurso de constitucionalidade e confirmando, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa, 2 de Outubro de 2002- Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa