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Proc. nº 39/02 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A, com os sinais dos autos, recorre para este Tribunal, ao abrigo do artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que negou a revista da decisão proferida no 2º Juízo Cível de Coimbra que julgara improcedentes os embargos deduzidos à falência contra si decretada em processo especial movido pelo B .
No requerimento de interposição de recurso, disse o recorrente pretender a apreciação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos
147º, 148º e 149º conjugados com o artigo 27º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPERREF) que, segundo ele, violam os artigos 165º nº 2 e 18º nº 2 da Constituição.
Admitido o recurso e produzidas alegações, concluiu o recorrente:
'a) Ao recorrente foi pela petição de 28/6/2000 do B requerida a sua falência na condição de avalista, tendo sido decretada a mesma por sentença de
09/01/2001, da qual o recorrente veio deduzir embargos, os quais foram julgados improcedentes, improcedência esta confirmada pelo STJ, no Acórdão de 27 de Novembro de 2001.
b) De facto o recorrente avalizou duas letras de câmbio com vencimento a 30/06/96 e 18/02/97, sacadas pela sociedade D, a qual não as pagou no seu vencimento.
c) Esta sociedade foi já declarada falida, por sentença de 14/01/98, tendo transitado e por isso cessou a sua actividade e até a sua existência nesta data, como sociedade comercial, assim como a indústria que explorava.
d) E tem de se concluir que a norma do artigo 27º CPEREF, ao permitir declarar o recorrente falido, sendo este apenas um garante do cumprimento daquelas obrigações, assim como ao permitir aplicar ao mesmo as inibições previstas nos artigos 147º, 148º e 149º do CPEREF, têm de ser julgadas inconstitucionais, além do mais por força dos artigos 13º, 18º, 21º, 26º e 27º da Const. Rep.
e) Existe também uma inconstitucionalidade formal, uma vez que a autorização constante do art. 4º da Lei nº 16/92, de 6/8, não oferece respaldo substancial ao conteúdo dos preceitos legais a que se referem os artigos 147º,
148º e 149º daquele Código.
f) E por outro lado as inibições constantes destes artigos 147º,
148º e 149º, permitidas por aquele artigo 27º, não podem deixar de ofender o nº
2 do artº 18º da Constituição da República que determina uma inconstitucionalidade material, nomeadamente quando permite aplicar as mesmas aos garantes ou comuns devedores civis.
g) Em resumo, não deviam os tribunais admitir uma interpretação do novo Código das Falências aprovado pelo Decreto-lei nº 132/93, de 23/4, que acabou com a distinção entre insolvência e falência, que por força daquele art.
27º permita estender a todo e qualquer obrigado ou devedor, independentemente da origem do crédito, a aplicação das leis da falência, muito menos estando em causa apenas um comum devedor civil ou garante ou quanto muito responsável pelo pagamento de um dívida de outrém.'
Em contra-alegações, o recorrido sustenta que as normas em causa não enfermam dos vícios de inconstitucionalidade que o recorrente lhes atribui.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
2 – São objecto do presente recurso as normas constantes dos artigos
27º, 147º, 148º e 149º do CPEREF que dispõem como segue:
Artigo 27º
Devedor não titular de empresa
1 – O devedor insolvente que não seja titular de empresa ou cuja empresa não exerça actividade à data em que o processo for instaurado pode ser declarado em situação de falência, mas não pode beneficiar do processo de recuperação; ser-lhe-á, contudo, possível evitar a declaração de falência, mediante a apresentação de concordata que o juiz homologue nos termos dos artigos 240º a 245º.
2 – É aplicável ao devedor insolvente não titular de empresa, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos anteriores relativos à falência.
Artigo 147º
Limitações resultantes da declaração de falência
1 – A declaração de falência priva imediatamente o falido, por si ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, pelos órgãos que o representem, da administração e do poder de disposição dos seus bens presentes ou futuros, os quais passam a integrar a massa falida, sujeita à administração e poder de disposição do liquidatário judicial.
2 – O liquidatário judicial assume a representação do falido para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à falência.
Artigo 148º
Consequências imediatas da declaração
1 – A declaração de falência determina o encerramento dos livros do falido e implica a sua inibição para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa, sem prejuízo do disposto na alínea d) do nº 1 do artigo 238º.
2 – No caso de declaração de falência de sociedade ou de pessoa colectiva, a inibição a que se refere o número anterior será aplicada pelo juiz ouvido o liquidatário judicial, aos gerentes, administradores ou directores a que se referem os artigos 126º-A e 126º-B.
3 – A pessoa que for objecto da inibição pode, no entanto, ser autorizada pelo juiz, a seu pedido ou sob proposta do liquidatário judicial, a exercer as actividades referidas no número anterior, desde que a autorização se justifique pela necessidade de angariar os meios indispensáveis de subsistência e não prejudique a liquidação da massa.
Artigo 149º
Dever de apresentação O falido e, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, os seus administradores são obrigados a apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo liquidatário, a fim de prestarem os esclarecimentos necessários, salvo a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazerem representar por mandatário.
3 - O Acórdão nº 194/2001 (inédito) pronunciou-se já sobre a questão da constitucionalidade orgânica das normas constantes dos artigos 147º nº 1 e
149º do CPEREF. Fê-lo nos seguintes termos:
'3. A questão de inconstitucionalidade suscitada pela recorrente refere-se, pois, às normas constantes dos artigos 147º, nº 1, e 149º do CPEREF, na medida em que, segundo a recorrente, tais normas dispõem sobre questões atinentes ao estado e capacidade das pessoas e sobre direitos, liberdades e garantias, matérias essas da exclusiva competência da Assembleia da República e para as quais o Governo não possuía autorização válida ou bastante que lhe permitisse regulamentar ou legislar.
Por sua vez, o artigo 4º da Lei nº 16/92, de 6 de Agosto – lei que autorizou o Governo a legislar sobre os processos especiais de recuperação das empresas e de falência -, estabelece:
Fica o Governo autorizado a determinar a inibição do falido ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, dos seus administradores para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação privada de actividade económica ou empresa pública.
4. Sobre semelhante questão de inconstitucionalidade orgânica, ainda que em concreto reportada a outras normas do CPEREF (a do artigo 129º, nº 1, alínea a), e a do artigo 228º), se debruçou já este Tribunal, no seu Acórdão nº
479/98 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40º vol., págs. 491 e ss.); embora nesse aresto a questão se reportasse a pessoa colectiva, não deixou o Tribunal de desde logo antever algumas considerações pertinentes à situação das pessoas singulares, pela forma seguinte:
E, se da declaração de falência porventura decorressem, para pessoas singulares, determinados efeitos com incidência na sua capacidade, nem por isso o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, quanto a esse particular, poderia ser visto como padecendo de vício de desconformidade orgânica com a Constituição, tendo em conta o que se dispõe no artº 4º da Lei
16/92, de 6 de Agosto, segundo o qual ficava o Governo autorizado 'a determinar a inibição do falido ou, no caso de sociedade ou pessoa colectiva, dos seus administradores para o exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial, associação privada de actividade económica ou empresa pública'.
[...] Por último, [...] o dever de apresentação (no caso releva o respeitante aos administradores da pessoa colectiva declarada falida) pessoal no tribunal para prestar os necessários esclarecimentos, sempre que isso seja determinado pelo juiz ou pelo liquidatário, a que se reporta o artº 149º, também não é inserível em matéria que contenda ou afecte o estado e capacidade desses administradores. Por essas razões, a argumentação deduzida pela recorrente neste particular revela-se inapropriada para justificar o vício de inconstitucionalidade que assaca à norma que ora se aprecia (cfr., sobre o ponto, Oliveira Ascenção, Efeitos da Falência sobre a pessoa e negócios do falido in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 55, Dezembro de 1995, 641 a 688, e Luís Carvalho Fernandes, Efeitos substantivos da declaração de falência, estudo publicado na Revista Direito e Justiça, 19 a 49).
[...] Seja como for, aquela norma é, visivelmente, uma norma de estrito âmbito processual, não contendendo, sequer, com qualquer limitação da capacidade da pessoa colectiva falida ou com os direitos e vinculações que os respectivos administradores, perspectivados como pessoas individuais, possam ou não exercer afora a consequência prevista no nº 1 do artº 148º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, plenamente autorizada a ser editada num diploma de origem governamental pelo artº 4º da Lei nº 16/92.
Ora, aquele âmbito processual, até porque não se insere de modo imediato e directo numa adjectivação de «institutos» ou matérias verdadeiramente substantivas que tenham a ver com questões ligadas, qualquer reflexo sobre a já mencionada medida de direitos e vinculações que alguém, pessoalmente, possa exercer e cumprir, afastaria, numa visão de primeira linha, a necessidade da edição da norma pelo órgão parlamentar, fundada na sua reserva relativa de competência [e isto, claro está, independentemente de se saber se estando em causa, por exemplo, matérias ínsitas na alínea a) do nº 1 do artigo 165º da Constituição, a reserva parlamentar há-de abranger somente as suas regras materiais ou também as regras que aquelas adjectivem].
5. Pois bem, e antes de mais, as normas em causa não se mostram inovadoras nem representam qualquer alteração face ao anterior regime, antes consagram aspectos tradicionalmente aceites.
Com efeito, e à semelhança do que já no Código de 1939 se consagrava, o CPC de 1961 dispunha no seu artigo 1189º, sob a epígrafe Inibição do falido:
1. A declaração da falência produz a inibição do falido para administrar e dispor de seus bens havidos ou que de futuro lhe advenham [...].
E o artigo 1193º, por seu lado, impunha o dever de apresentação pessoal do falido em tribunal sempre que tal fosse determinado «pelo juiz ou pelo síndico, a fim de prestar todos os esclarecimentos [...]».
Estes preceitos apenas foram revogados pelo artigo 9º do Decreto-Lei nº 132/93, de 23 de Abril, que aprovou o CPEREF - do qual constam as normas que precisamente os substituíram e cuja inconstitucionalidade vem suscitada - pois que as diversas intervenções legislativas no âmbito do direito falimentar, que foram sucessivamente publicadas após 1976, se debruçaram sobre outros aspectos, nomeadamente os relativos à recuperação de empresas, não se tendo verificado qualquer revogação das referidas normas do Código de Processo Civil.
Assim, para além de se poder, desde logo, entender que estas normas - como se afirmou, de resto, no transcrito Acórdão nº 479/98 - revestem natureza processual, a verdade é que, ainda que se considere que elas regulam, numa determinada perspectiva, direitos, liberdades ou garantias (sobre a natureza e conteúdo da inibição do falido, ver Oliveira Ascensão Efeitos da Falência sobre a pessoa e negócios do falido in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 55, Dezembro de 1995, págs. 647 a 652, e Luís Carvalho Fernandes, O novo regime da inibição do falido para o exercício do comércio, in Direito e Justiça, vol. XIII, tomo 2, 1999, págs. 7 a 13), não assumem elas qualquer carácter inovatório, o que afasta a respectiva inconstitucionalidade orgânica (limitam-se a reproduzir soluções jurídicas já constantes de outras normas que foram revogadas pelo mesmo diploma legal em que elas se inserem).
Aliás, sempre se haveria de concluir pela suficiência da autorização legislativa constante do artigo 4º da Lei nº 16/92, de 6 de Agosto, para a edição das normas questionadas, pois o que nelas se determina corresponde a mera regulamentação do instituto da inibição do falido, em forma em tudo semelhante ao regime já anteriormente vigente, que o legislador parlamentar não pretendeu seguramente que viesse a ser alterado.
Não pode, pois, proceder a invocada inconstitucionalidade orgânica'.
A alegação de inconstitucionalidade (que vem qualificada como
'formal', mas, nos termos em que o recorrente a formula, é, em direitas contas, uma alegação de inconstitucionalidade orgânica) assenta no pressuposto de que se trata de matéria legislativa da reserva relativa de competência da Assembleia da República, pois só assim se compreende a invocação da carência de 'respaldo' das normas em causa no artigo 4º da Lei de autorização legislativa nº 16/92.
A questão deve ser resolvida tendo como parâmetro a Constituição na sua versão emergente da revisão de 89 que vigorava à data da citada Lei nº
16/92, concretamente o artigo 168º da CRP, naquela versão.
As normas que vêm questionadas reportam-se à aplicação ao devedor insolvente dos dispositivos que:
- Privam o falido da administração e poder de disposição dos seus bens presentes e futuros (artigo 147º nº 1);
- Inibem o falido do exercício do comércio, incluindo a possibilidade de ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa(artigo 148º nº 1);
- Obrigam o falido a apresentar-se em tribunal, sempre que lhe seja determinado pelo juiz, para prestar os esclarecimentos necessários (artigo
149º).
Ora, no que concerne às primeira e última normas, não se vê razões para inflectir o que se decidiu já no citado Acórdão nº 194/2001, de que se transcreveu o trecho pertinente, pelo que se dá aqui por integralmente reproduzida a respectiva fundamentação; e tanto basta para julgar improcedente a invocada incontitucionalidade.
No que concerne ao disposto na segunda norma, impõe-se, desde logo, atentar no que dispõe o artigo 4º da Lei nº 16/92 e que representa credencial parlamentar suficiente para o Governo editar uma tal norma.
Amplia-se, de facto, a inibição que anteriormente constava do artigo
1191º do CPC; simplesmente, tal ampliação está expressis verbis autorizada no referido artigo 4º da Lei nº 16/92.
Relativamente a todas as normas em causa e com a ressalva da apontada ampliação da inibição constante do artigo 148º nº 1 do CPEREF, nem se poderá dizer que a anterior declaração de insolvência (do não comerciante) não implicava para o insolvente os mesmos efeitos.
Na verdade, por força do disposto no artigo 1315º do CPC, aplicavam-se á insolvência as disposições respeitantes à falência, 'na parte não relacionada com o exercício da profissão de comerciante', o que compreenderia esses efeitos.
No que respeita à unificação do processo de falência, passando a abranger também o anterior processo de insolvência, o artigo 1º da Lei nº 16/92 não deixa de, implicitamente, credenciar o Governo para o efeito no ponto em que alude à 'cessação da distinção entre insolvência e falência contida no futuro diploma relativo aos processos especiais de recuperação da empresa e da falência'.
Resta acrescentar que, muito recentemente, o Acórdão nº 377/02
(inédito) deste tribunal se pronunciou, também, no sentido de o artigo 27º do CPEREF não enfermar de inconstitucionalidade orgânica.
4 – Sustenta, ainda, o recorrente que a norma do artigo 27º do CPEREF é materialmente inconstitucional, por permitir a declaração de falência de um mero garante de obrigações de uma sociedade comercial, com violação do disposto nos artigos 13º, 18º, 21º, 26º e 27º da CRP.
Do mesmo vício padeceriam as normas dos artigos 147º, 148º e 149º do mesmo Código, permitindo aplicar a esse garante de obrigações as 'inibições' neles previstas.
Cumpre, em primeiro lugar, deixar claro que não compete ao Tribunal Constitucional apreciar se, no caso de um devedor (por força de um aval a uma livrança) não comerciante, impossibilitado de cumprir as suas obrigações, é possível, ao abrigo do CPEREF, declarar a sua falência.
Com efeito, decidido pelo acórdão recorrido, no estrito plano daquele Código, que à situação em causa se pode aplicar o processo de falência, a este Tribunal apenas compete apreciar se uma tal interpretação ofende preceitos constitucionais.
Em segundo lugar, a questão de constitucionalidade colocada só poderá ser resolvida se se tiver em conta os termos em que se processa o pertinente meio processual e, em particular, os efeitos decorrentes da declaração da falência. Com efeito, é em tal âmbito que os direitos do cidadão que se encontra em situação de insolvência sofrem condicionamentos ou limitações que, eventualmente, poderão por em causa direitos fundamentais.
Vejamos, pois.
5 - Como nos dá conta Pinto Furtado ('Perspectivas e Tendências do Moderno Direito da Falência', in Revista da Banca nº 11 pp. 63 e segs.), o conceito de insolvência, reportado à situação de um devedor em que a soma de bens e créditos não iguala a soma das suas dívidas, vem já, no nosso ordenamento jurídico, do Código de Seabra (artigo 1036º); só, porém, com o Decreto nº 21738, de 22/10/1932 se instituiu um processo próprio, com a denominação de insolvência, para os não comerciantes impossibilitados de cumprir as suas obrigações.
No preâmbulo deste decreto logo se evidenciam os inconvenientes de até então se ter esquecido a situação do insolvente não comerciante, considerando-se prejudicial, nesta situação, a mera sujeição do devedor ao regime das acções e execuções individuais. E escreveu-se:
'Prejudicial para os credores, porque o sistema das execuções individuais, não atingindo directamente a capacidade de administração e de disposição do devedor, permite que este agrave continuamente o estado de insolvência, tanto pela prática de actos verdadeiros, como de actos simulados. E, se é certo que tais actos poderão ser anulados, a anulação, além de trazer consigo encargos e demoras, nem sempre é fácil pelas dificuldades da prova.
Por outro lado, a liberdade das execuções individuais, quando o património do devedor é insuficiente para liquidar todos os débitos, agravada ainda pela concessão de direitos preferenciais de carácter processual, constitui um prémio aos credores mais vizinhos do tribunal, mais ardilosos, mais endinheirados, exigentes e sôfregos, em prejuízo dos mais benévolos, residentes em locais afastados do tribunal, ignorantes da exacta situação económica do devedor, dispostos a conceder-lhes facilidades de pagamento, sem usar de meios violentos, de onde resulta que estes ficam quási sempre privados da totalidade dos seus créditos, porque os bens do devedor foram absorvidos pelas penhoras e pelos arrestos dos chamados credores diligentes.
Ora, como justamente observa o notável professor Vivante, um dever de justiça moral impõe ao legislador a constituição de um monte ou massa de todos os bens do devedor, a fim de repartir entre todos os credores que não tenham antecipadas garantias, derivadas de privilégios ou hipotecas, a fim de que todos sejam companheiros nos prejuízos, como o haviam sido no demasiado crédito concedido ao devedor comum'
Já no âmbito do processo então criado, todos os bens do insolvente eram apreendidos para a massa (artigo 15º) e a sentença declaratória da insolvência produzia a 'incapacidade' do insolvente para administrar e dispor dos seus bens (artigo 11º)
O CPC, quer o de 39, quer o de 61, manteve a autonomização do processo de insolvência que, no primeiro, era regulado em termos praticamente idênticos aos do Decreto nº 21738.
Salientando, embora, que o 'exercício da actividade comercial cria obrigações e responsabilidades particulares' (o que justificaria a não aplicação do processo de falência ao não comerciante) escreveu José Alberto dos Reis
('Processos Especiais' vol. II, p. 350 que '(não) convém deixar os não comerciantes sujeitos unicamente às sanções das execuções individuais'. E acrescenta:
'Quando o devedor chega ao estado de não poder solver todos os seus compromissos, o princípio da par conditio creditorum conduz naturalmente á conveniência, ou melhor, à necessidade de se apreender todo o seu património para o repartir igualmente pelos vários credores.'
Vigorando, deste modo, um processo específico de insolvência para os não comerciantes, uma das principais medidas que o CPEREF estabeleceu foi a de unificar num tipo de processo a situação de insolvência de comerciantes e não comerciantes (caracterizada como a situação de impossibilidade de cumprimento pontual das obrigações por insuficiência do activo disponível para satisfação do passivo exigível, nos termos do artigo 3º nº 1) o que, aliás, era já adiantado, como se viu, pelo artigo 1º nº 1 pela Lei de autorização legislativa nº 16/92.
Ora, perpassa por toda a alegação de inconstitucionalidade do recorrente, uma 'desvalorização' da situação de incumprimento da obrigação do avalista de uma livrança – a que indiciou a situação de insolvência do recorrente – para justificar a declaração de falência com todo o cotejo de efeitos ('limitações' ou 'inibições') dela decorrentes.
A verdade é que, desde logo, cabe, nesta matéria, ao legislador uma considerável margem de liberdade de conformação, na escolha dos índices que considera relevantes das situações que, pela incapacidade de gestão patrimonial revelada pelos devedores e os riscos inerentes para o funcionamento dos mercados e para outros credores, devem ser sujeitas ao processo de falência.
De todo o modo, o dador do aval é um responsável solidário e cumulativo pelo cumprimento do obrigação pecuniária em causa, nos mesmos termos que a pessoa por ele avalizada; ele assume uma obrigação com conteúdo patrimonial, o que necessariamente implica o dever de gerir o seu património de modo a poder cumprir essa obrigação se for chamado a solvê-la.
A incapacidade que o avalista revela na gestão do seu património não só para cumprir a obrigação de que é credor o requerente da falência como a
'generalidade das suas obrigações' - o que dá causa à instauração do processo de falência - acaba por consubstanciar um caso paralelo ao da 'empresa' ou de um outro qualquer devedor principal que se coloquem na mesma situação, muito particularmente tendo em atenção a finalidade de protecção dos credores do falido e a prevenção de novas situações de insolvência. O tratamento de todos estes casos segundo um regime unificado nada tem assim de desproporcionado ou arbitrário, como adiante melhor se verá.
Por outro lado, impõe-se realçar que, para o preenchimento desses
índices – em particular do que consta do artigo 8º nº 1 alínea a) do CPEREF – e como se deixou já entender, não basta o incumprimento de uma obrigação (no caso, da referida obrigação de avalista), exigindo-se que a obrigação não cumprida
'pelo seu montante, ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações', o que, no caso, se entendeu como verificado, sem que ao Tribunal Constitucional caiba sindicar um tal juízo.
Nesta conformidade, adianta-se, desde já, que se não reconhece qualquer inconstitucionalidade material das normas em causa.
Em primeiro lugar, pese embora as divergências doutrinais sobre a exacta qualificação de cada um dos efeitos, para o falido, decorrentes da declaração de falência, admite-se que a perda de administração e disposição dos bens que integram a massa falida e a inibição para o exercício de determinadas funções afectem alguns dos direitos fundamentais consagrados na Constituição.
Não seguramente o direito de resistência consagrado no artigo 21º da CRP, pois não se vislumbra em que é que aqueles efeitos ponham em causa o direito de o recorrente resistir a qualquer ordem que ofenda os seus direitos liberdades e garantias.
Nem igualmente os artigos 25º, 26º e 27º uma vez que a declaração de falência nada tem em si de infamante ou que atinja a integridade moral, o bom nome ou reputação do falido (basta recordar que a falência pode ser casual); nem tão pouco afecta o seu direito à capacidade civil, mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há unanimidade na doutrina, no sentido de que se não trata de uma situação de 'incapacidade') nem contende com o seu o seu direito á liberdade. Já tendo em conta os direitos de livre escolha de profissão e de propriedade
(artigos 47º nº 1 e 62º nº 1 da CRP) se admite que eles sejam condicionados ou afectados por aqueles efeitos. No que concerne ao primeiro, deve, contudo, salientar-se que o preceito constitucional ressalva 'as restrições legais impostas pelo interesse colectivo'. Ora, desde logo, o fundamento da inibição do exercício de determinadas actividades, constante do artigo 148º nº 1 do CPEREF, radica claramente em razões de interesse colectivo, constitucionalmente atendíveis.
Enquanto aplicável a pessoas singulares, ele visa evitar a ocorrência de futuras falências, impedindo aquele que revelou incapacidade para gerir o seu património de exercer funções que possam colocar em risco a solvabilidade económica das empresas ou, de novo, do próprio falido em prejuízo dos seus credores que têm o direito de ver satisfeitos os seus créditos.
Trata-se, de facto, de uma medida perfeitamente justificada, atendendo ao seu fim e à incumbência do Estado em 'assegurar o funcionamento eficiente dos mercados' (artigo 83º, alínea e) da CRP) e, em geral, aos objectivos de política agrícola, comercial e industrial, plasmados no Título III, Parte II da Constituição. Note-se, aliás, que a preocupação de justa medida do legislador foi ao ponto de admitir a possibilidade de o falido exercer as actividades previstas no citado nº 1 do artigo 148º do CPEREF quando 'se justifique pela necessidade de angariar os meios indispensáveis de subsistência' desde que não prejudique a liquidação da massa, mediante autorização do juiz, sob proposta do liquidatário ou a pedido do próprio falido (nº 3 do mesmo artigo 148º).
Trata-se, assim, de uma limitação dos direitos do falido consentida pelo citado artigo 47º nº 1 da CRP, não sendo arbitrária nem desproporcionada. Quanto ao disposto no artigo 147º nº 1 do CPEREF, a privação do poder de administração e disposição corresponde, na execução universal e colectiva em que se traduz o processo de falência, à situação em que fica o executado relativamente aos bens penhorados nas execuções individuais.
Constitui esse efeito uma medida absolutamente necessária para salvaguardar o acervo patrimonial do falido como garantia do pagamento dos credores nos termos dos artigos 209º e segs. do CPEREF.
Efectivamente, reconhecida com a declaração de falência a impossibilidade de o devedor satisfazer a generalidade das suas obrigações, impunha-se que a totalidade dos bens do falido fosse apreendida, como garantia mínima do pagamento, ainda que não integral, dos credores, privando aquele que se revelara incapaz de gerir o seu património de agravar, ainda mais, a sua situação patrimonial.
A situação dos titulares dos direitos de crédito, não satisfeitos, sobre o falido justifica, assim, de uma forma proporcionada e justa, a restrição imposta aos direitos do falido, sem ofensa dos preceitos constitucionais invocados.
No que concerne, finalmente, ao disposto no artigo 149º nº 1 do CPEREF, preceito que corresponde rigorosamente ao artigo 1193º do CPC, já aplicável ao
'insolvente' por força do artigo 1315º do mesmo Código, não traduz ele, enquanto consagra o dever de apresentação pessoal do falido em tribunal, mais do que a concretização, no caso, do dever geral das partes de cooperação com o tribunal e, em particular do dever de comparência em tribunal nos termos do artigo 266º nº 3 do CPC.
Não se trata aqui sequer de uma qualquer restrição a um direito fundamental, pelo que é até impertinente a invocação do disposto no artigo 18º da Constitução.
Por fim, mal se compreende a alegação de violação do artigo 13º nº 2 da CRP, uma vez que é dado tratamento igual a todos os que se encontrem na situação em que se colocou o recorrente.
Poderá, porventura, entender-se que o recorrente, com tal alegação, pretende evidenciar, uma vez mais, a situação específica daquele que responde apenas por uma obrigação principal que não contraiu e, assim, merecedora de um tratamento diferenciado.
Mas o que acima se expendeu sobre a relevância que o recorrente dá à situação geradora da falência decretada é suficiente para se concluir que aquela não oferece especiais particularidades em termos de se poder considerar violado o princípio da igualdade em tal vertente; o tratamento igualitário dado pelo legislador, no âmbito dos seus poderes de conformação, não é, pois, arbitrário ou destituído de um fundamento racional.
Improcedem, deste modo, todas as alegações de inconstitucionalidade.
6 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 10 de Outubro de 2002- Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa