Imprimir acórdão
Processo nº 528/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. - Nos presentes autos de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação do Porto, interpostos ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, em que é recorrente A, figurando como recorrido o Ministério Público, foi proferida, em 16 de Setembro último, decisão sumária, nos termos do nº 1 do artigo 78º-A daquele diploma legal.
Escreveu-se na mesma:
'1. - A e B, identificados nos autos, foram condenados, por acórdão de 11 de Junho de 2001 da 1ª Vara de Competência Mista da comarca de Guimarães em: a) o primeiro, na pena de sete meses de prisão, pela prática de cada um de três crimes de corrupção, previstos e punidos pelo artigo 372º, nº 2, do Código Penal, fixando-se-lhe, em cúmulo jurídico, a pena única de um ano de prisão e suspendendo-se a execução da pena aplicada pelo período de dois anos; b) o segundo, na pena de oito meses de prisão, pela prática de cada um de três crimes de corrupção, previstos e punidos pelo artigo 372º, nº 2, citado, fixando-se-lhe, em cúmulo jurídico, a pena única de um ano e três meses de prisão e suspendendo-se a execução da pena aplicada pelo período de dois anos. Ambos os arguidos interpuseram, separadamente, recurso para o Tribunal da Relação do Porto. Para A, o acórdão padece da necessária fundamentação, baseando-se em 'exame erróneo e crítico da prova – artigos 379º, nº 1, e 374º, nº 2, do Código Penal'
(terá querido escrever 'Código de Processo Penal'), formando a sua convicção mediante a utilização de prova produzida fora da audiência, sendo certo que 'os reconhecimentos não podem ser considerados como meio de prova, por violação do disposto nos artigos 147º e 149º do Código de Processo Penal', não se mostrando preenchidos os elementos essenciais constitutivos do facto ilícito de que vem acusado (artigo 372º do Código Penal), não tendo praticado os factos objecto dessa acusação. Também para B a decisão carece de fundamentação bastante, sendo a convicção do Tribunal assente 'num exame erróneo e crítico da prova produzida em audiência de julgamento (artigos 379º, nº 1, e 374º, nº 2, ambos do C. P. Penal', não se mostrando preenchido o tipo de crime de que vem acusado (artigo 372º, nº 2, do Código Penal). O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 27 de Fevereiro de 2002, negou provimento a ambos os recursos, confirmando, integralmente, a decisão da 1ª instância.
2. - Inconformado, o arguido A interpôs recurso para o Tribunal Constitucional por entender que o aresto recorrido 'defende doutrina em colisão com os artºs.
127º e 147º do Código de Processo Civil, cuja leitura, conforme ao estabelecido no artº 32º nºs. 1 e 5 da Constituição só consente a interpretação daqueles incisos no sentido de que o julgador deve observância a regras de experiência comum, devendo utilizar como método de avaliação critérios objectivos genericamente susceptíveis de motivação e controlo (cfr. Ac. Trib. Constitucional de 19/12/96 in BMJ 461,93 e Av. T. Const. Nº 137 (2001 in DR II série de 9/6/2001), o que no caso não sucedeu.'
3. - Considerando a incompletude do requerimento apresentado, o Desembargador relator notificou o recorrente, nos termos e para os efeitos dos nºs. 1, 3 e 5 do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, de modo a, em 10 dias, indicar a alínea do nº 1 do artigo 70º deste diploma a coberto do qual pretende recorrer e, em consonância com essa indicação, observar integralmente os requisitos ínsitos no citado artigo 75º-A, nºs. 1 e 3.
4. - Em resposta, o recorrente veio indicar a alínea b) do nº 1 do artigo 70º, interpondo recurso 'de normas cuja inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo, na interpretação que as instâncias lhes deram' e que se tem por violadora do nº 1 do artigo 32º da Constituição da República (CR). Consoante se depreende da mesma peça processual, está em causa a constitucionalidade da interpretação dada nos artigos 127º e 147º do Código de Processo Penal (CPP), feita restritivamente e em afastamento do já decidido pelo Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº. 137/01, publicado no Diário da República, II Série, de 29 de Junho de 2001. Na verdade, este aresto julgou inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no nº 1 do artigo 32ºda Constituição, a norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artigo 147º do mesmo Código. Ora, no caso vertente, a Relação considerou não ser de observar a doutrina do acórdão nº 137/01, como consta da seguinte transcrição:
'O Tribunal Constitucional decidiu, por via do seu AC nº 137/01, de 9/6/01 – DR II s., julgar INCONSTITUCIONAL, por violação das garantias de defesa do arguido do artº 32º nº 1, da CRP, a norma constante do artº 127º, do CPP, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras estabelecidas pelo artº 147º, do CPP. Entendemos, o entanto, que tal douto aresto não se aplica no caso dos autos. Com efeito, no citado Acórdão do TC partiu-se da premissa, fundamental, de que o reconhecimento de arguido em fase de inquérito, ou instrução, não obedeceu, minimamente, aos requisitos legais acima enumerados.
É que, diversamente e no caso em apreço, se lermos os autos de reconhecimento recolhidos nos autos, quer efectuados pelo MP, quer efectuados pela PSP (vide fls. 93, 155 e 219 a 226), verifica-se que os mesmos obedeceram aos requisitos e critérios legais. Não tem, assim, aplicação no caso 'sub-judice', a doutrina do Ac. do TC acabado de citar. Daí que o Tribunal 'a quo', no uso do princípio da livre apreciação da prova, tenha utilizado e valorado tal prova num determinado sentido.'
A passagem transcrita significa, para o recorrente, que 'o tribunal interpretou restritivamente aquela decisão do Tribunal Constitucional (rectius: interpretou-a no sentido de que só seria inconstitucional a interpretação da norma do artº 127º do CPP se fosse julgado admissível levar o princípio da livre apreciação da prova ao ponto de se entender que ele justificaria a possibilidade de ser julgado válido um reconhecimento quando não fosse observada nenhuma das regras do artº 147º do Código de Processo Penal)'.
'[...] Tal entendimento restritivo não parece a nosso ver, constituir a mais adequada leitura do citado aresto, e antolha-se como violador do nº 4 desse normativo que – sem distinguir ou limitar-se a qualquer dos requisitos do reconhecimento – estipula que ‘o reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova’.'
5. - Entende-se ser de proferir decisão sumária, nos termos do nº1 do artigo
78º-A da Lei nº 28/82, por não poder conhecer-se do objecto do recurso.
6. - Com efeito, mesmo a conceder que a questão submetida à apreciação do Tribunal Constitucional foi enunciada inequivocamente – sendo certo que só um critério benevolente o admitirá, não sendo já viável convidar novamente o recorrente a uma melhor equacionação da questão de constitucionalidade –, contrariamente ao que o recorrente defende não se encontram consagrados todos os requisitos de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade fundamentado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º, sem prejuízo de ser possível entender-se ser outra a alínea adequada para a interpretação do recurso. Na verdade, o recorrente só suscitou problemas de constitucionalidade no requerimento de interposição do recurso – nos termos que se deixaram reproduzidos – mostrando-se irrelevante o inciso agora introduzido (fls. 647) nos termos do qual a suscitação ocorreu 'logo após a dita interpretação notificada'. A admissibilidade do recurso com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º pressupõe, com efeito, que o interessado tenha levantado, durante o processo, a questão normativa de constitucionalidade, de modo a que o tribunal que proferiu a decisão impugnada dela tenha conhecimento e sobre ela se possa pronunciar. Sendo esta a regra, só em casos excepcionais a jurisprudência deste Tribunal tem entendido ser equacionável a questão em momento posterior – como o dos autos – por inexistência de oportunidade processual de suscitação atempada, antes de proferida a decisão recorrida, ou por só então se ter colocado a questão perante um circunstancialismo ocorrido posteriormente à última intervenção processual anterior à decisão (a jurisprudência a este respeito é massiva e uniforme: entre tantos outros citam-se os acórdãos nºs. 62/85, 90/85, 450/87, 94/88, 155/95 e
249/99, publicados, respectivamente, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, volumes 5º, págs. 497 e 663 e segs., 10º, págs. 573 e segs., 11º, págs. 1089 e segs., 30º, págs. 737 e segs., e no Diário da República, II Série, de 15 de Julho de 1999). Não se verifica, no entanto, qualquer situação objectivamente inesperada, de modo a integrar, pelo seu carácter anómalo ou imprevisível, dispensa de cumprimento do ónus de suscitação da questão de constitucionalidade durante o processo, por falta de oportunidade processual, pelo que ao recorrente impendia tal ónus. Com efeito, se é certo que o acórdão nº 137/01 foi publicado em data posterior à da motivação do recurso do arguido para a Relação (respectivamente, 29 e 26 de Junho de 2001), não menos exacto é que a problemática da constitucionalidade da livre apreciação da prova tem sido amiudadamente discutida, doutrinária e jurisprudencialmente, sobre esta norma se tendo pronunciado, aliás, no Tribunal da Relação, o magistrado do Ministério Público, no seu 'visto', em termos que foram objecto de notificação, ao abrigo do artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal. De resto, e de acordo com o entendimento que tem vindo a ser professado por este Tribunal, a valoração da prova segundo a livre convicção do julgador não significa uma apreciação contra a prova ou uma valoração que se desprendeu da legalidade dos meios de prova ou das regras gerais da produção da prova, ou seja, não é admissível uma valoração arbitrária da prova, sendo a convicção do julgador 'objectivável e motivável', conjugando-se com o dever de fundamentar os actos decisórios e de promover a sua aceitabilidade (assim, v.g., os acórdãos nºs. 464/97 e 546/98, publicados no Diário da República, II Série, de 12 de Janeiro de 1998 e 15 de Março de 1999, respectivamente). Não foi, no caso subjacente, aplicado o complexo normativo em causa de acordo com um constitucionalmente censurável critério de subjectividade na apreciação da prova, como desde logo resulta da leitura das decisões proferidas que apontam para uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica e da experiência comum, consubstanciadoras de uma objectiva apreciação dos factos. O que vale dizer que, ao recorrer para a Relação, já o recorrente conhecia os argumentos utilizados nessa objectivação, tendo oportunidade – se assim o entendesse – de suscitar atempadamente a questão de constitucionalidade posteriormente equacionada.
7. - Em face do exposto e nos termos do nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso, por inverificação dos pressupostos da sua admissibilidade. Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 (seis) unidades de conta.'
2. - Notificado, reclamou oportunamente o recorrente, de acordo com o nº 3 do artigo 78º-A citado, pretendendo que, deferida a reclamação, seja recebido o recurso.
Em síntese, entende não corresponder ao ocorrido a asserção feita na decisão sumária, que a fundamentou, segundo a qual só no requerimento de interposição do recurso foi suscitada a questão de constitucionalidade – logo, não o tendo sido durante o processo.
Ouvido, o Ministério Público considera a reclamação claramente improcedente, sendo evidente não poder o acórdão da Relação, proferido sobre a questão da validade e licitude dos meios de prova, perspectivar-se como 'decisão-surpresa', já que o objecto de impugnação do recorrente versava precisamente sobre a admissibilidade da valoração em audiência do meio de prova questionado, recaindo, consequentemente, sobre o recorrente o ónus de, nesse momento, equacionar adequadamente as questões de constitucionalidade normativa que tivesse por pertinentes (e que obviamente não dependiam de publicação do acórdão nº 137/01, deste Tribunal).
3. - Não se descortinam razões merecedoras de outro entendimento, diferente do acolhido na decisão sumária que, assim, possam conduzir à sua revogação.
Na verdade, recai sobre as partes o ónus das várias possibilidades interpretativas das normas de que se pretende recorrer, definindo e conduzindo, em função dessa valoração, uma estratégia processual adequada – como constitui jurisprudência corrente deste Tribunal, citando-se, por todos, o acórdão nº 478/89, publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de
1992.
Assim, não assiste razão ao recorrente ao defender que anteriormente lhe era impossível suscitar a questão de constitucionalidade.
E, por outro lado, como bem observa o magistrado recorrido, não sendo o recurso fundado na alínea g) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, torna-se irrelevante a existência ou não de similitude com o caso apreciado no citado acórdão nº 137/01.
4. - Em face do exposto, indefere-se a reclamação, confirmando-se o anteriormente decidido.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta. Lisboa,9 de Outubro de 2002- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida