Imprimir acórdão
Proc. n.º 378/02 Acórdão nº 61/03
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A propôs, no Tribunal Judicial de Almada, acção de reivindicação contra B e mulher, alegando, entre o mais, que a qualidade de proprietária do imóvel que os réus ocupavam e cuja restituição pretendia lhe adviera da aquisição, por arrematação, num processo de execução fiscal movido pela Fazenda Pública contra os réus.
Na contestação (fls. 86 e seguintes), alegaram os réus, entre o mais, a ilegitimidade da autora, atendendo a que corria termos no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Setúbal uma acção de anulação da venda judicial em que a autora alicerçava o seu direito de propriedade.
A fls. 205 e v.º, proferiu o juiz do Tribunal Judicial de Almada o seguinte despacho:
'[...] II. É questão controvertida nestes autos a titularidade do direito de propriedade sobre a fracção em causa. Apesar de inscrita em nome da A. na competente conservatória do Registo Predial, discute-se a validade do acto de transmissão, em particular, colocou-se a dúvida sobre a existência de uma possível causa de anulação da venda. Solicitada a informação ao Proc. 292/98, da DSJC da DGCI, sobre o estado desses autos, aqueles informaram-nos que tal processo se encontra em fase de instrução e que há possibilidades de a venda efectuada vir a ser anulada. Tal questão, nos termos do art. 279/1 e 3 do CPC, configura uma questão prejudicial à colocada nestes autos – só depois de assente quem é o verdadeiro proprietário da fracção se pode colocar uma outra: a da legitimidade para reivindicar o direito. Assim sendo, nos termos da disposição legal supra citada, o tribunal decide suspender a instância até à data em que for proferida decisão final no Proc. nº
292/98 da DSJC da DGCI. Notifique as partes e aquele processo para informar estes autos do desenrolar do processo, com certidão da decisão final a proferir.'
Deste despacho não houve recurso.
Por sentença de fls. 216 e seguintes, julgou-se procedente a acção de reivindicação, em síntese porque 'os réus não ilidiram a presunção resultante da inscrição predial a favor da autora, tendo esta pago na íntegra o preço devido pela compra e cumprido as suas obrigações fiscais, e também porque não foi proferida qualquer decisão prejudicial à presente causa pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância de Setúbal, nem há possibilidade de a Administração Fiscal vir a anular a venda efectuada no processo de execução fiscal' (fls.
225). No que se refere a estes dois últimos fundamentos, lê-se na sentença:
'[...]
[...] na referida acção não se chegou sequer a apreciar do mérito, na medida em que por despacho do Mmº Juiz foi dado sem efeito todo o processado praticado pelo mandatário dos requerentes, por falta de junção das necessárias procurações forenses e ratificação do processado, ao abrigo do disposto no art. 40° do C.P.C. Tal despacho foi notificado aos requerentes e ao seu mandatário, que não interpuseram recurso do mesmo, pelo que, o mesmo transitou em julgado e se formou caso julgado formal – cfr. art. 672° do C.P.C. Pelo que, nenhuma dúvida resta de que a excepção de ilegitimidade invocada pelos requerentes na contestação não pode proceder. Por fim, cumpre apenas apreciar a eventual possibilidade de anulação da venda por via da própria Administração Fiscal, o que os réus também invocaram. Cumpre dizer que como refere o parecer da D.S.J.C da Direcção Geral dos Impostos, o processo de execução fiscal é constituído por uma fase administrativa, da competência do chefe da Repartição de Finanças, e uma fase jurisdicional, da competência dos Tribunais. Ora segundo o art. 43°, alínea g), do C.P.T, cabe à Administração Fiscal instaurar os processos de execução fiscal e realizar os actos a eles respeitantes, salvo o disposto no nº 2 do artigo 237°. Este último artigo, preceitua por sua vez que, compete ao Tribunal Tributário de
1ª Instância da área onde correr a execução .., a anulação da venda. E, como já foi decidido por Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, da 2ª secção, de 28 de Junho de 1995, a falta de citação é mera causa de verificação da anulação da venda, pelo que «sempre que esteja em causa a anulação da venda, directa ou indirectamente, deverá considerar-se competente para o litígio o Tribunal Tributário de 1ª Instância...». Assim, resulta com clareza que a Administração Fiscal não pode decidir a anulação da venda de bens penhorados em processo de execução fiscal.
[...].'
2. Inconformados, B e mulher interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (fls. 229), tendo nas alegações respectivas (fls.
234 e seguintes) concluído do seguinte modo:
'1ª- Não se encontra ainda decidida a questão prejudicial que determinou a suspensão dos presentes autos;
2ª- Estava por isso vedado ao Mermº Juiz proferir a sentença de que ora se recorre;
3ª- Aliás, tendo a ora Recorrente arguido a nulidade por falta da sua citação no processo de execução fiscal e implicando a procedência daquela arguição a anulação da venda, constitui também uma questão prejudicial;
4ª- Portanto, os presentes autos só podem ser decididos depois de estar definitivamente julgada a questão da validade da venda da fracção dos autos;
5ª- Tendo decidido como decidiu, o Mermº Juiz a quo violou, designadamente, os artºs 283º, 284º nºs 1 c) e nº 2 e 666º do CPC.'
A recorrida, nas alegações (fls. 245 e seguintes), sustentou que ao recurso devia ser negado provimento.
3. Por acórdão de fls. 256 e seguintes, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e remeteu para os fundamentos da decisão impugnada, nos seguintes termos:
'[...]
É certo que, uma vez proferido o despacho mencionado na alínea s) da matéria de facto do presente relatório [trata-se do despacho de fls. 205 e v.º, já mencionado: supra, 1.], talvez mais correcto fosse que o tribunal «a quo», antes de conhecer de mérito no saneador sentença, proferisse despacho a levantar a suspensão da instância, invocando o disposto na alínea c) do nº 1 do art. 284º do CPC. O Tribunal «a quo» seguiu outro caminho, conhecendo da [...] cessação da suspensão no próprio saneador sentença, pelo que, se irregularidade ocorreu ela deveria ter sido arguida em sede de recurso, pese a circunstância de tal irregularidade, por omissão, não produzir, em nosso entender nulidade, por não influir, em si mesma, no aspecto formal, no exame ou na decisão da causa. Efectivamente, no que respeita ao objecto, ou seja, no que respeita às questões suscitadas pelos Apelantes elas sempre poderiam ser objecto de apreciação na sentença final e em sede de recurso como efectivamente o foram.
[...].'
B e mulher requereram a aclaração deste acórdão (fls. 262 e seguintes), tendo o pedido sido indeferido, por acórdão de fls. 287.
4. B e mulher interpuseram então recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por ofensa do caso julgado formado pelo despacho de fls. 205 (fls. 289 e seguintes). Nas alegações respectivas (fls. 300 e seguintes), concluíram do seguinte modo:
'1ª- Por douto despacho de fls. 205 foi ordenada a suspensão da instância;
2ª- Tal despacho transitou em julgado e passou a gozar de força e autoridade de caso julgado formal, tendo ficado esgotado o poder jurisdicional do Mermº Juiz quanto a essa matéria, obstando a que no processo se decidisse diferentemente;
3ª- Acresce que não se verificou qualquer alteração das circunstâncias que determinaram a prolação do despacho que ordenou a suspensão;
4ª- Efectivamente, não havia noticia nos autos de que a questão prejudicial que determinou a suspensão se encontrava definitivamente decidida, pelo contrário, a informação é que estava em fase de instrução;
5ª- Desse modo, estava vedado ao Mermº Juiz proferir a sentença, fazendo cessar implicitamente a suspensão da instância anteriormente ordenada;
6- E o douto acórdão recorrido ao ter decidido que nada obstava a que o Mermº Juiz tivesse decidido o mérito da causa como decidiu, não respeitou igualmente o caso julgado formal;
7ª- Seja como for, sempre se justificaria a suspensão da instância, uma vez que a Recorrente-mulher no processo de execução fiscal onde se procedeu à venda da fracção dos autos arguiu a nulidade por falta da sua citação;
8ª- E sendo esta nulidade insanável, podendo ser conhecida enquanto os autos não estiverem findos, devem os presentes autos aguardar a decisão final sobre a invocada nulidade;
9ª- Na verdade, se a arguição da invocada nulidade for procedente, implicará a anulação dos actos subsequentes à falta de citação, resultando daí a anulação da venda;
10ª- Assim, trata-se de uma questão prejudicial em relação à questão que se discute nos presentes autos;
11ª- Decidindo como decidiu, o acórdão recorrido violou as normas dos artºs 279º nºs 1 a 3, 283º, 284º nº 1 al. c), 666º, 672º e 677º do C.P.C.'
A recorrida não contra-alegou.
5. Por acórdão de fls. 363 e seguintes, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, podendo ler-se no texto respectivo, para o que aqui releva, o seguinte:
'[...] A questão única que temos para dar resposta é a de saber se o acórdão recorrido, ao confirmar a sentença da primeira instância – que conheceu do mérito da causa, julgando procedente a acção –, ofendeu o caso julgado formal, alegadamente decorrente do despacho de fls. 205, que tinha ordenado a suspensão da instância, nos termos da al. c) do nº 1 do artigo 276º e do nº 1 do artigo 279º, ambos do Código de Processo Civil, até que fosse proferida a decisão final no processo nº
292/98 da DSVC da DGCI [assim, no original].
[...] Como se vê pelo supra transcrito despacho de fls. 205, a instância foi suspensa com o fundamento da existência de causa prejudicial, onde se discutiria a
(in)validade da venda efectuada a favor da autora, em processo de execução fiscal, da fracção de imóvel por ela ora reivindicado na presente acção. Esse despacho, notificado às partes, não foi impugnado, tendo por isso transitado em julgado – artigo 677º. E porque as circunstâncias que lhe subjazem não foram, entretanto e supervenientemente, alteradas, defendem os recorrentes que a suspensão da instância teria que se manter até à decisão definitiva da causa prejudicial, nos termos do artigo 284º, nº 1, al. c) e por força do disposto no artigo 672º. Vejamos. Nos termos do nº 1 do artigo 279º o tribunal pode ordenar a suspensão da instância, além do mais, quando a decisão da causa esteja dependente do julgamento de outra já proposta. Este poder facultado ao juiz não é, assim, discricionário, dependendo o seu exercício da verificação da pendência da causa prejudicial. Melhor dizendo, como se lê no acórdão do STJ, de 1/10/1991, BMJ 410º-656, o poder do juiz, discricionário em si, é limitado à existência efectiva da condicionante, tornando-se vinculado. Ou seja, a decisão que vier a ser promanada da causa indicada como prejudicial tem que revestir a virtualidade de uma efectiva e real influência na causa suspensa, por forma a poder concluir-se que a decisão desta depende incontornavelmente daquela. Logo, só quando se encontra indiscutivelmente assegurada esta condicionante de uma real e efectiva prejudicialidade, é que o referido poder do juiz (de suspender a instância), discricionário em si, se torna vinculado. E, consequentemente, só nesta hipótese é que o respectivo despacho de suspensão da instância assume força de caso julgado formal, nos termos do artigo 672º. A não ser assim atendido, abrir-se-á escancaradamente a porta para que as acções judiciais fiquem com a instância suspensa a aguardar, de outros processos, decisões completamente inócuas para as acções suspensas, num total e inadmissível desrespeito por princípios fundamentais do direito adjectivo, como são o da economia (artigo 137º) e o da celeridade processuais (artigo 265º). O que sucederia no caso que nos ocupa se o Mmº Juiz da primeira instância não tivesse decidido, e bem, avançar com o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, concluindo, com toda a clareza, que não se verificava, realmente, a alegada prejudicialidade, fundamentadora do despacho de suspensão da instância, proferido a fls. 205, pois que:
– nem tinha sido proferida, pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância de Setúbal, qualquer decisão prejudicial à presente causa;
– nem há possibilidade da Administração Fiscal vir a anular a venda efectuada no processo de execução fiscal (dado que tal anulação é da competência exclusiva dos tribunais tributários). E a verdade é que o acerto desta argumentação não foi minimamente posto em causa pelos recorrentes na apelação que interpuseram, sendo certo que o podiam ter feito, uma vez que o conhecimento do respectivo objecto não estava restringido à ofensa do caso julgado, como sucede [...] com o presente recurso. Resta esclarecer que o processo nº 292/98 da DSVC da DGCI [sic], indicado como causa prejudicial no despacho de fls. 202, nem sequer tem a natureza de processo tributário ou de execução fiscal. Trata-se de um processo interno, que corre termos nos Serviços Jurídicos e Contencioso da Direcção-Geral das Contribuições e Impostos do Ministério das Finanças-Lisboa, com o fito de investigar a legalidade da actuação da Administração Fiscal e respectivos agentes intervenientes no processo de execução fiscal, onde se procedeu à venda da fracção dos autos. Por conseguinte, a decisão que nele venha a ser proferida, de cariz meramente disciplinar, nunca por nunca afectaria a decisão a proferir nos presentes autos. De todo o exposto resulta que bem andou a Relação em ter homologado a sentença recorrida, fase derradeira a atingir, rápida e eficazmente, em qualquer processo e onde todas as questões não cobertas pelo caso julgado – como, pelas razões já ditas, sucede in casu – devem ser apreciadas pelo juiz, conforme determina o nº
2 do artigo 660º.
[...].'
6. Inconformados com o mencionado acórdão do Supremo, B e mulher interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, 'com fundamento na inconstitucionalidade da norma do artº 672º do CPC na interpretação com que foi aplicada na decisão recorrida, por violação dos princípios constitucionais da segurança e certeza jurídica consagrados no artº 2º da Constituição' (fls. 376 e seguinte). Acrescentaram ainda, no requerimento de interposição do recurso, não ter suscitado anteriormente tal questão de inconstitucionalidade, 'pois apenas no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça invocaram a violação da mencionada norma [...] e era-lhes de todo imprevisível que o Supremo Tribunal de Justiça em vez de decidir se se verificavam ou não os pressupostos do caso julgado, isto é, se a decisão tinha ou não transitado em julgado, viesse antes reapreciar os fundamentos da decisão transitada em julgado, violando assim os referidos princípios constitucionais'.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 379.
Na sequência do despacho de aperfeiçoamento de fls. 390, proferido já no Tribunal Constitucional, vieram os recorrentes esclarecer que '[...] consideram inconstitucional a norma do artº 672 do Código de Processo Civil interpretada no sentido de permitir que as questões apreciadas em decisão proferida no uso do poder previsto no artº 279º n.º 1 do C.P.C., transitada em julgado, possam ser reapreciadas e a decisão transitada modificada ou desrespeitada com fundamento em se considerar inexistente o pressuposto que determinou a decisão, isto é, com fundamento em erro de julgamento. [...]' (fls.
396 e seguinte).
Nas alegações que produziram no Tribunal Constitucional (fls. 400 e seguintes), concluíram assim os recorrentes:
'1ª- A norma do art. 672º do CPC é inconstitucional quando interpretada no sentido de que as questões apreciadas em decisão proferida no uso do poder previsto no art. 279º nº 1 do C.P.C., transitada em julgado, podem ser reapreciadas e a decisão transitada modificada ou desrespeitada com fundamento em se considerar inexistente o pressuposto que determinou a decisão, isto é, com fundamento em erro de julgamento;
2ª- Desde logo, precisamente porque se trata de um despacho susceptível de afectar os direitos processuais das partes, é um despacho recorrível;
3ª- Consequentemente, uma vez transitado em julgado, tem força e autoridade de caso julgado formal (art. 672º do C PC);
4ª- Ora, o art. 672º do CPC visa tutelar a certeza e confiança dos cidadãos nas decisões judiciais transitadas em julgado, impedindo que estas possam ser modificadas;
5ª- Assim sendo, não pode deixar de se considerar que a interpretação dada pelo douto Acórdão recorrido ao art. 672º do CPC colide frontalmente com o princípio constitucional da protecção da confiança, segurança e certeza jurídica consagrado no art. 2º da Constituição.
6º- Portanto, estava vedado ao Venerando Tribunal recorrido modificar, com fundamento em erro de julgamento, o despacho de fls. 205 transitado em julgado;
7º- Decidindo como decidiu, o acórdão recorrido violou a norma do art. 672º do CPC e artº 2 da Constituição.'
A recorrida não contra-alegou (fls. 411).
Cumpre apreciar.
II
7. Constitui objecto do presente recurso a apreciação da conformidade constitucional da norma do artigo 672º do Código de Processo Civil, interpretada no sentido de permitir que as questões apreciadas em decisão proferida no uso do poder previsto no artigo 279º, n.º 1, do Código de Processo Civil e transitada em julgado possam ser reapreciadas e a decisão transitada modificada ou desrespeitada, com fundamento em se considerar inexistente o pressuposto que determinou a decisão, isto é, com fundamento em erro de julgamento (supra, 6.).
O artigo 672º do Código de Processo Civil dispõe o seguinte:
'Artigo 672º
(Caso julgado formal) Os despachos, bem como as sentenças, que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, salvo se por sua natureza não admitirem o recurso de agravo.'
Por seu turno, o artigo 279º, n.º 1, do mesmo Código determina:
'Artigo 279º
(Suspensão [da instância] por determinação do juiz)
1. O tribunal pode ordenar a suspensão [da instância] quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proferida ou quando ocorrer outro motivo justificado.
[...].'
Em síntese, a questão que se coloca no presente recurso é a de saber se é constitucionalmente conforme uma interpretação normativa que admita a reapreciação do pressuposto da prejudicialidade em que assentou certa decisão, transitada em julgado, de suspensão da instância.
8. Embora os recorrentes não tenham suscitado durante o processo a questão da inconstitucionalidade que pretendem ver apreciada (cfr. artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional), não lhes era exigível tê-lo feito, justificando-se a dispensa de cumprimento de tal ónus.
A razão dessa inexigibilidade não se prende, todavia, com a alegada
(supra, 6.) circunstância de só no recurso para o Supremo os recorrentes terem invocado a violação do artigo 672º do Código de Processo Civil (pois que nada os impedia de o terem também feito no recurso para a Relação) mas, mais exactamente, com a circunstância de, no acórdão da Relação (supra, 3.), se ter considerado que podia ser proferida sentença por ter havido (implicitamente) cessação da suspensão da instância, nos termos do artigo 284º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil. Tendo-se perfilhado tal entendimento no acórdão da Relação, não seria possível aos recorrentes sustentar, perante o Supremo, que a Relação admitira a reapreciação dos pressupostos em que assentara a decisão transitada que tinha decretado a suspensão da instância, nem colocar a correspondente questão de constitucionalidade: é que a invocação da figura da cessação da suspensão permite subentender a aceitação, pela Relação, da ocorrência de circunstância superveniente, que é algo de substancialmente diverso da reapreciação dos pressupostos de uma decisão.
Em suma, só no acórdão do Supremo (supra, 5.) se admitiu claramente a possibilidade de modificação da decisão que decretou a suspensão da instância com fundamento em inexistência do pressuposto que a determinou: no caso, inexistência de causa prejudicial. Como tal, não seria aos recorrentes exigível colocar a presente questão de constitucionalidade perante o Supremo. O que também significa que não existe obstáculo ao conhecimento do presente recurso.
9. O Tribunal Constitucional por diversas vezes reconheceu a protecção constitucional do caso julgado, alicerçando-a, quer no disposto no n.º 3 do artigo 282º da Constituição, quer nos princípios da confiança e da segurança jurídica, decorrentes da própria ideia de Estado de Direito (artigo 2º da Constituição).
Essa protecção naturalmente pressupõe que o legislador não é inteiramente livre, quer na escolha dos mecanismos susceptíveis de modificar uma decisão que a própria lei já considerara definitiva, quer na selecção das decisões susceptíveis de constituírem caso julgado.
Este último aspecto é particularmente relevante na dilucidação da questão ora em apreço, atendendo a que à decisão recorrida subjaz o entendimento de que só em certas hipóteses o despacho de suspensão da instância adquire força de caso julgado: concretamente, não a adquiriria quando não ocorresse uma 'real e efectiva prejudicialidade'. De tal entendimento parece decorrer a constante possibilidade de reapreciação dos pressupostos da decisão de suspensão da instância ou, dito de outro modo, a livre modificabilidade da decisão de suspensão da instância (pois que, para a sua modificação, não se exigiria a verificação de circunstâncias supervenientes).
Será tal entendimento – cuja conformidade com a lei ordinária o Tribunal Constitucional não pode, obviamente, sindicar – compatível com a protecção constitucional do caso julgado? Especialmente tendo em conta que tal protecção há-de abranger, não apenas a decisão de mérito, mas também aquela que verse sobre a relação processual?
A resposta seria necessariamente negativa, se se entendesse que a protecção que a Constituição dispensa ao caso julgado significa que o legislador está sempre impedido de seleccionar as decisões que são aptas a constituírem caso julgado.
Todavia, tal entendimento não pode ser perfilhado: desde que os princípios que fundamentam a própria protecção constitucional do caso julgado não sejam postos em causa, deve reconhecer-se que o legislador pode estabelecer que certa decisão é livremente modificável.
Como reconheceu a Comissão Constitucional no acórdão n.º 87, de 16 de Fevereiro de 1978 (publicado no Apêndice ao Diário da República, de 3 de Maio de 1978, p. 24): '[o] caso julgado não é um valor em si; a sua protecção tem de se estear em interesses substanciais que mereçam prevalecer, consoante o sentido dominante na ordem jurídica'.
Ora, no caso sub judice, não se vê em que medida a confiança, a segurança jurídica ou a ideia de Estado de Direito – que fundamentam a protecção constitucional do caso julgado – impõem a imodificabilidade da decisão que decreta a suspensão da instância. Tal decisão não julgou qualquer pretensão das partes e, como tal, estas não pautaram a sua conduta em função de qualquer direito que lhes tivesse sido reconhecido ou negado.
Não infringe, pois, a Constituição, nomeadamente o seu artigo 2º, a interpretação normativa questionada pelos recorrentes.
III
10. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003 Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Pamplona de Oliveira José Manuel Cardoso da Costa