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Processo nº 567/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.1. - A, identificado nos autos, intentou, no Tribunal Judicial da comarca da Maia, acção declarativa de condenação, na forma sumária, contra B, igualmente identificado nos autos, alegando, em síntese, ser proprietário da casa que este último habita, a qual tinha sido dada de arrendamento, por contrato verbal, pelo seu avô ao pai do demandado, mediante a renda mensal de
3.150$00, desde 1997, sendo de 180$00 a acordada inicialmente.
Falecido o pai do réu, comunicou este tal facto ao autor que declarou ser sua intenção não manter o arrendamento, declaração essa que não teve qualquer oposição.
Concluiu pedindo a condenação do réu a despejar o locado, livre de pessoas e bens.
O réu contestou e deduziu pedido reconvencional, pedindo a condenação do autor no pagamento de quantia correspondente a obras que levou a efeito na casa.
Prosseguiram os autos seus termos, vindo a ser proferida sentença, em 11 de Abril de 2000, em que se decidiu:
'a) julgar a presente acção procedente, por provada, e em consequência, condenar o réu a despejar o locado, devendo entregá-lo ao autor livre de pessoas e bens até ao próximo dia 1 de Junho do corrente ano; b) condenar o autor a pagar ao réu, os restantes 189.000$00 referentes à 2ª metade da indemnização a que alude o artº 89º-A do RAU, pagamento esse que deverá ocorrer no termo do contrato, ou seja, em 01/06/2000; c) julgar o pedido reconvencional parcialmente procedente, por provado, e, em consequência condenar o autor/réu reconvindo a pagar ao réu (autor na reconvenção) a quantia de 100.000$00, a título de indemnização devida pelas benfeitorias realizadas por este no locado.'
1.2. - Recorreu o réu, de apelação, para o Tribunal da Relação do Porto, e, nas alegações, suscitou a questão da inconstitucionalidade orgânica dos artigos 89º-A, nº 3 e 89º-D, do Regime do Arrendamento Urbano, na redacção da Lei nº 278/93, de 10 de Agosto, por alegada violação da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República.
Contra-alegou o autor, defendendo, na parte que interessa, a inexistência do apontado vício.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 7 de Junho de 2001, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida, não dando como procedente a suscitada questão de inconstitucionalidade.
2. - Inconformado, do mencionado acórdão interpôs B, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo a apreciação das seguintes normas do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de
15 de Outubro, na redacção do Decreto-Lei nº 278/93, de 10 de Agosto:
a)- a norma do nº 3 do artigo 89º-A, interpretada com o sentido e alcance de presumir aceitação de denúncia por falta de oposição;
b)- a norma do artigo 89º-D, interpretada no sentido e alcance da caducidade do direito pelo não cumprimento dos prazos fixados na secção III do capítulo II do diploma.
No entendimento defendido pelo recorrente, estas normas
'contendem com o regime comum, geral ou normal do arrendamento urbano, pelo que são da competência exclusiva da Assembleia salvo lei de autorização'.
Como a iniciativa legislativa do Governo – observa – não se encontra credenciada ao abrigo da Lei nº 14/93, de 14 de Maio – maxime nas alíneas b) e d) do artigo 2º - as normas em sindicância não estão inseridas no
âmbito dessa autorização pelo que padecem de inconstitucionalidade orgânica, por violação do disposto nos artigos 168º, nº 1, alínea h), e 164º, alínea e); 169º, nº 3, e 168º, nº 2, da Constituição da República(CR), segundo a versão então vigente.
3. - Neste Tribunal, foi proferido despacho pelo relator, cuja transcrição se impõe, na parte relevante:
'[...] 2- Afigura-se, porém, não poder conhecer-se do objecto do recurso no que toca à primeira das normas enunciadas. Com efeito, colhe-se da leitura do acórdão recorrido não ter sido aplicada na decisão a norma do nº 3 do artigo 89º-A do RAU. Assim, aí se escreveu quanto às interpretações possíveis a conceder a este preceito, na perspectiva da caracterização da denúncia como acto jurídico unilateral mas receptício:
'Uma [das interpretações] extraída 'a contrario' do texto legal e que leva à conclusão de que o legislador quis, ao arrepio de tudo o que se entendia antes, consagrar uma forma de denúncia de caracter bilateral, dependente de aceitação; Outra que conduz ao entendimento de que o legislador quis consignar a ideia de que a obstaculização à denúncia só tem um caminho, o da oposição nos termos do ano 89° seguinte. A primeira cede logo pela violência conceptual que arrasta. Mas, se não cedesse por aí, cederia por inconstitucionalidade. A Assembleia da República autorizou o Governo a 'possibilitar a denúncia dos contratos de arrendamento' ( no caso que refere) . O Tribunal Constitucional tem repetido que a reserva legislativa aqui em causa abrange as condições e causas de extinção dos contratos ( cfr-se Diário da República de 8.7.1997 e de 22.5.2001, I Série A, pag. 3346 e II Série, pag.
8698, respectivamente) . Logo, o Governo não podia dar um cariz de dependência de aceitação à denúncia quando o órgão parlamentar não a fez depender de tal. Aqui, porém, surge uma questão curiosa. Do arredar desta interpretação do nº 3 só beneficia o senhorio. Desaparecem quaisquer laivos de julgar necessária a aceitação para a denuncia ser eficaz. É-o por si. Assim, a inconstitucionalidade que o réu tão intensamente defende, não o serve. A existir, serviria a parte contrária ( isto sem prejuízo da consideração devida a quem subscreve as alegações, é evidente) . O legislador deste nº 3 deve antes ser entendido como pretendendo consignar que a oposição à denúncia só pode ser deduzida nos termos do artigo seguinte. Decerto que o artº 2°, nº 2 do Código de Processo Civil lhe faculta a reacção baseada, por exemplo, em vícios do acto jurídico. Quem denuncia até pode não ser senhorio ou não estar no gozo das suas faculdades mentais. Mas não é isso que está em causa. Em causa está o afastar de qualquer argumentação, por parte do inquilino, de que o contrato não podia ser denunciado, porquanto o arrendamento lhe havia sido transmitido com a morte. O legislador quis deixar bem claro que à denúncia que consignava, só poderia ser oposto um caminho, o do artigo seguinte. Assim entendido, o nº 3 não vai minimamente além do que o legislador parlamentar autorizou, não tendo mácula de inconstitucionalidade. Mas, de qualquer modo, vale sempre o que já se afirmou supra. Mesmo que a tivesse, isso não afectaria o direito do autor. Este vale pela denúncia em si, não carecendo de ser 'completado' com qualquer presunção. Os nºs 1 e 2 do artº
89° A chegam para fazer valer o seu direito.' Ou seja, a decisão recorrida interpretou a norma do nº 3 do artigo 89º-A no sentido de que o legislador pretendeu consignar que a oposição à denúncia só podia ser deduzida nos termos do artigo 89º-D. Assim, o acórdão recorrido terá interpretado esta norma com o apontado sentido e não com o sentido interpretativo que o recorrente pretende atribuir-lhe que, não só não lhe aproveita (na tese do aresto), como se apresenta irrelevante para a decisão do recurso.
3. - Tudo ponderado, considera-se o recurso de constitucionalidade circunscrito
à norma do artigo 89º-D, no sentido que lhe é atribuído pelo recorrente. Como tal, notifique o recorrente para se pronunciar, querendo, quanto a esta delimitação do objecto do recurso, e para alegar quanto ao mais, a aceitar essa delimitação.'
4. - Notificadas as partes, apenas alegou o recorrente, defendendo uma 'declaração' de inconstitucionalidade da norma do artigo 89º-D do RAU, por violação do disposto na alínea h) do nº 1 do artigo 168º da Constituição.
Em seu entender, a norma em referência foi introduzida no regime jurídico do arrendamento urbano pelo Decreto-Lei nº 278/93, editado ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 14/93, cujos sentido e alcance, no entanto, não compreendiam alterações de fundo a comportar modificações substanciais no modo de transmissão mortis causa da posição de arrendatário, designadamente fulminando de caducidade o contrato face a um determinado comportamento omissivo.
A esta luz, não só a norma sindicanda ofende a coerência e a harmonização sistemática da legislação – ao consagrar soluções contraditórias na transmissão do arrendamento, ao sancionar menos gravemente a conduta absolutamente omissiva (traduzida na falta de comunicação de óbito e exercício do direito) do que a concretamente verificada, só parcialmente omissiva e/ou intempestiva – como integra uma alteração de fundo, não querida nem autorizada pelo legislador parlamentar.
De resto – acrescenta-se –, seguindo raciocínio idêntico, o Tribunal Constitucional declarou inconstitucional com força obrigatória geral o 'lugar paralelo da revogação do nº 3 do artigo 89ºdo RAU, operada pelo artigo 1º do DL. 278/93' – cfr. acórdão nº 410/97, publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Julho de 1997.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1. - O objecto do recurso acha-se circunscrito à norma do artigo 89º-D do RAU, introduzida pela Decreto-Lei nº 278/93 – delimitação que o recorrente aceitou, por considerar manter-se intocado o efeito útil do recurso, não obstante entender configurar-se a questão como mais semântica do que substantiva.
O mencionado artigo 89º-D – integrado na Secção III, relativa à transmissão do direito do arrendatário, do Capítulo II do diploma, incidente sobre o arrendamento urbano para habitação – dispõe como segue:
'O não cumprimento dos prazos fixados nesta secção importa a caducidade do direito'.
A norma, de natureza supletiva – só é de observar se não tiver sido especialmente cominada, expressa ou implicitamente, outra sanção
(cfr. Jorge Alberto Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6ª ed., Coimbra, 2002, pág. 578) – implica que a sua não observância, quando for caso disso, importe a caducidade dos direitos em jogo, 'o que para o denunciado se traduz na perda do local arrendado e para o senhorio na perda do direito de denúncia [...] ou à actualização da renda [...]' (cfr. António Pais de Sousa, Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano (RAU), 6ª ed., Lisbos, 2001, pág. 288).
Será, no entanto, organicamente constitucional uma norma, como a sindicanda, que, alegadamente a descoberto de autorização legislativa, dita, nos termos em que o faz, a caducidade de direitos?
2. - Na tese que o recorrente professa, a autorização legislativa dada pela Assembleia da República ao Governo através da Lei nº
14/93, de 14 de Maio, de acordo com o disposto nos artigos 64º, alínea e), 168º, nº 1, alínea h), e 169º, nº 3, todos do texto constitucional, na versão à data em vigor, e que deu lugar às alterações operadas no RAU pelo Decreto-Lei nº
278/93, de 10 de Agosto, não se terá limitado, no tocante à transmissão do contrato de arrendamento, a 'agilizar' o respectivo regime, e, nessa medida, não respeitou as regras socialmente úteis que tutelam a posição do arrendatário.
No entanto, de acordo com a ponderação e a interpretação levadas a efeito no acórdão recorrido, congraçando a norma do artigo 89º-D, na sua literalidade, com a norma do nº 3 do artigo 89º-A, no sentido de que este nº
3 deve ser entendido como pretendendo consignar que a oposição à denúncia só pode ser deduzida nos termos do artigo 89º-B (interpretação essa que, assim o vimos, não é a questionada pelo recorrente), uma solução que sopesasse os efeitos do não cumprimento do prazo para oposição do arrendatário representaria a impostação da perenidade para o exercício de oposição, desse modo abrindo-se via para o inquilino nunca responder, precludindo-se a eficácia da denúncia.
Ou seja, na interpretação do aresto, o facto de o legislador parlamentar não se ter pronunciado sobre a fixação de um prazo (de caducidade) só pode entender-se como sendo sua intenção facultar ao Governo essa fixação, movendo-se o Governo, por conseguinte, 'dentro de um círculo de liberdade que a autorização legislativa lhe conferiu, de modo a que fica afastada qualquer inconstitucionalidade' (do tipo da arguida).
3. - Concorda-se, na sua essencialidade e na óptica jurídico-constitucional, com a interpretação feita pelo tribunal a quo.
A referida autorização legislativa visou, com efeito e além do mais, possibilitar, de harmonia com os seus sentido e extensão, a denúncia dos contratos de arrendamento para habitação , permitindo, nomeadamente, alterar o regime de renda previsto no artigo 87º do RAU mediante o pagamento de uma indemnização igual a dez anos de renda, 'praticada à data da transmissão, sem prejuízo do arrendatário poder pagar um novo valor de renda que, caso não seja aceite para efeitos de continuação do contrato, relevará para cálculo de indemnização referida' [alínea b) do artigo 2º da Lei nº 14/93].
Na sequência desta autorização, permitiu-se ainda que o Governo procedesse às adaptações técnico-legislativas necessárias à concretização da coerência e da harmonização sistemática das legislação em vigor sobre o arrendamento [cfr. alínea d) do citado artigo 2º].
A esta luz, a norma do artigo 89º-D, em si mesma considerada, ditada pela razoabilidade da exigência de um prazo adequado a evitar indefinição de situações muito prolongadas no tempo, na medida em que se limita ao mecanismo de comunicação ao senhorio da posição assumida pelo arrendatário, configura-se no domínio da adaptação técnico-legislativa que a autorização legislativa permitiu.
Não é invocável a este propósito, como 'lugar paralelo', a situação apreciada (e igualmente o não é o juízo de inconstitucionalidade então emitido) no acórdão nº 410/77, publicado no Diário da República, I Série-A, de 8 de Julho de 1997.
Aí, tendo em consideração o sentido da reserva da competência legislativa parlamentar quanto ao regime geral do arrendamento rural e urbano e o figurino da autorização legislativa concedida ao Governo pela Lei nº 14/93, entendeu-se que a supressão do nº 3 do artigo 89º do RAU,
'conjugadamente com os efeitos decorrentes da introdução do regime previsto no artigo 89º-D, fulminando de caducidade o arrendamento perante um determinado comportamento omissivo', consubstanciava uma modificação de fundo substancialmente inovatória no modo de transmissão mortis causa da posição de arrendatário, para a qual o legislador do Decreto-Lei nº 278/93 carecia de legitimidade.
Como na oportunidade se escreveu – de resto, com o apoio doutrinário então referenciado – semelhante alteração não podia perspectivar-se no âmbito das adaptações técnico-legislativas necessárias à coerência e à harmonização sistemática da legislação do arrendamento em vigor. A inovação
[acrescentou-se] 'traduz-se no facto de, substancialmente, passar a haver uma alteração do modo de transmissão mortis causa da posição do arrendatário. Se até aqui essa transmissão se operava ipso jure, agora [...] essa consideração deve ser revista pela exigência de uma ‘aceitação’ ou ‘confirmação’ (em sentido não técnico) por parte do beneficiário – aceitação que deve ocorrer em determinado prazo e com sujeição a determinadas formalidades – tendo efeitos retroactivos à data da morte do arrendatário' (cfr. Januário Gomes Arrendamentos para Habitação, 2ª ed., Coimbra, 1996, pág. 187).
O exame crítico então levado a efeito da norma do artigo
89º-D articulava-se intimamente com a do artigo 89º, nº 3 mas não recaiu sobre a mesma, autonomamente considerada, como expressão de norma geral.
Assim, compreende-se que aquela seja considerada, na decisão recorrida, não sob matriz substancialmente inovatória – como tal, desrespeitadora das regras socialmente úteis, tuteladoras da posição do arrendatário, como pretende o recorrente – mas como expoente de 'agilização' do regime, de modo a obstar a uma 'impostação de perenidade'.
A dimensão interpretativa em causa também não é subsumível à situação contemplada no acórdão deste Tribunal nº 31/98, inédito, como parece o recorrente pretender que seja: nesse caso, não se tomou conhecimento do recurso quanto à norma do artigo 89º-D e fez-se aplicação da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral constante do acórdão nº 410/97, citado, da norma do artigo 1º do Decreto-Lei nº 278/93, na parte em que eliminou o nº 3 do artigo 89ºdo RAU. No entanto, estava em causa a falta de comunicação do falecimento do arrendatário, prevista, no nº 1 do artigo
89º, o que na dimensão normativa ora em apreço não se configura.
Em face do exposto, não se vislumbra na norma em questão vício de inconstitucionalidade por alegada violação da reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República em matéria do regime geral do arrendamento rural e urbano.
III
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 15 (quinze) unidades de conta. Lisboa, 26 de Setembro de 2002- Alberto Tavares da Costa José de Sousa e Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida