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Procº nº 530/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Tendo, pelo 1º Juízo do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia e contra A., intentado B e A. B., ao abrigo do artº 418º do Código das Sociedades Comerciais, acção para nomeação de titular de órgão social - solicitando que se procedesse à nomeação de determinadas sociedades como, respectivamente, fiscal único efectivo e fiscal único suplente da ré, a par dos fiscal único efectivo e fiscal único suplente já anteriormente nomeados em assembleia geral da mesma sociedade ré - veio, em 15 de Novembro de 2001, a ser proferida sentença que, julgando procedente a acção, nomeou, como fiscais únicos e suplente da ré, determinadas sociedades de revisores oficiais de contas.
Não se conformando com o assim decidido recorreu a ré para o Tribunal da Relação do Porto, tendo, na alegação adrede produzida, dito, em determinados passos:-
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Com a presente acção vieram os autores requerer, ao abrigo do nº 1 do artigo 418º do Código das Sociedades Comerciais, que o Tribunal procedesse [à] nomeação para o cargo de Fiscal Único de um membro efectivo e um membro supletivo para esse órgão de fiscalização.
Na resposta que apresentou, a ré, aqui recorrente, sustentou não ser aplicável ao presente caso o direito de indicarem um fiscal único, efectivo e suplente, adicionais da fiscalização.
Isto porque, no caso em apreço, entendemos que aos autores não lhes assiste tal direito, de indicarem um fiscal único, efectivo e suplente, adicionais na fiscalização da ora recorrente.
Ora vejamos:
Tal direito só existiria se na recorrente existisse a figura do Conselho Fiscal. No entanto tal não acontece, pelo que foi adoptado o modelo do Fiscal Único. Pois, se fosse possível a pretensão a que os autores sustentam, nos termos do artigo 418º do Código das Sociedades Comerciais, indicando-se mais um fiscal único e suplente, criar-se-ia um absurdo insustentável de potenciar um insanável conflito de fiscalização e certificação legal das contas da sociedade recorrente.
Efectivamente, bastava que os dois fiscais únicos efectivos não se entendessem para que a sociedade ficasse privada do crivo da fiscalização, com manifesto e irreparável prejuízo para accionistas e credores sociais.
O meritíssimo juiz a quo considerou existir tal direito de nomear o fiscal único, mesmo tendo adoptado este modelo de fiscalização, em vez do Conselho Fiscal ser a fiscalização da sociedade exercida através de um Fiscal
Único, sem responder [às] questões levantadas relativas de se criar um insustentável conflito de fiscalização, com grave prejuízo para a recorrente.
................................................................................................................................................................................................................................................................ EM CONCLUSÃO A) A indicação de um Fiscal único, efectivo e suplente, adicionais da fiscalização poderá criar um absurdo insustentável de potenciar um insanável conflito de fiscalização das contas da sociedade recorrente. B) Bastava que os dois fiscais únicos efectivos não se entendessem para que a sociedade ficasse privada do crivo da fiscalização, com manifesto e irreparável prejuízo para accionistas e credores sociais. C) Por isso entende[]mos que a decisão judicial da 1ª Instância, que ao fazer apelo [à] aplicação das regras do artigo 418º do Código das Sociedades Comerciais, em que possibilita em determinadas condições que os accionistas minoritários possam indicar um membro efectivo e suplente para o Conselho Fiscal, não se aplicaria [à] figura do Fiscal Único. D) Tal artigo 418º do Código das Sociedades Comerciais, viola claramente a Constituição da República Portuguesa, uma vez que essa disposição viola de alguma forma, não só o direito de propriedade, considerado no artigo 62º da Constituição, mas também o direito à iniciativa económica e privada, previsto no artigo 61º dessa Constituição. E) Daí a inconstitucionalidade do artigo 418º do Código das Sociedades Comerciais, que ora expressamente se argui, ferindo de ilegalidade a decisão da
1ª Instância, pelo que se impõe a sua revogação'.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 11 de Junho de 2002, negou provimento à apelação.
É a seguinte a fundamentação jurídica carreada a esse aresto:
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O DIREITO
Questiona a apelante a sentença recorrida, defendendo, ao arrepio do entendimento por aquela sufragado, que a nomeação judicial de um membro efectivo e um suplente a requerimento de minorias não tem lugar quando a sociedade tenha aderido ao regime de «fiscal único». Mas, salvo o devido respeito, sem nenhuma razão.
A fiscalização das sociedades anónimas, como é o caso da Ré, compete a um fiscal único, que deve ser revisor oficial de contas ou sociedade de revisores oficias de contas, ou a um conselho fiscal (art.º 413.º, n.º 1, do C.S.C., na redacção que lhe foi introduzida pelo Dec. Lei n.º 257/96, de 31/12).
O fiscal único terá sempre um suplente, que será igualmente revisor oficial de contas ou sociedade de revisores oficias de contas (n.º 2).
O conselho fiscal é composto por três membros efectivos, podendo o contrato de sociedade aumentar esse número para cinco (n.º 3).
O órgão de fiscalização das sociedades anónimas tanto pode ser, pois,
«um fiscal único» como «um conselho fisca1».
A expressão «fiscal único», ao invés do que parece fluir do termo legalmente usado para designar o órgão em causa, pouco feliz, há que reconhecer, não significa que a fiscalização tenha de ser exercida por uma única pessoa ou entidade.
A própria lei manda que o fiscal único terá sempre um suplente.
Além disso, o legislador reconheceu, no art.º 418.º do mesmo diploma legal, o direito de alguns accionistas minoritários poderem requerer judicialmente a nomeação de membros efectivos e suplentes do órgão de fiscalização da sociedade, tanto no caso de se tratar de fiscal único como de conselho fiscal.
Dispõe aquele preceito que ‘a requerimento de accionistas titulares de acções representativas de um décimo, pelo menos, do capital social, apresentado nos 30 dias seguintes à assembleia geral que tenha elegido os membros do conselho de administração e do conselho fiscal, pode o tribunal nomear mais um membro efectivo e um suplente para o conselho fiscal, desde que os accionistas requerentes tenha votado contra as propostas que fizeram vencimento e tenham feito consignar na acta o seu voto; (...).
Estes requisitos de nomeação de mais um membro efectivo e outro suplente para o órgão de fiscalização da sociedade mostram-se preenchidos no caso presente, como bem concluiu a sentença recorrida o que, de resto, a apelante não questiona.
O que a apelante verdadeiramente põe em causa é a possibilidade de nomeação de mais um membro efectivo e um suplente para o órgão de fiscalização de «fiscal único».
Como supra já referimos, quando o órgão de fiscalização da sociedade seja o «fiscal único», não tem a fiscalização de ser exercida por uma única pessoa. É a própria lei que admite a possibilidade da existência de mais de um membro no órgão de fiscalização em causa.
Com efeito, como expressamente admite o n.º 2 do aludido art.º 418.º,
‘havendo várias minorias que exerçam o direito conferido no número anterior, o tribunal pode designar até dois membros efectivos e os respectivos suplentes, apensando-se as acções que correrem simultaneamente; no caso de fiscal único, só pode designar outro e o respectivo suplente’ (sublinhado nosso ).
Pode, deste modo, o órgão de fiscalização «fiscal único» ser composto de um membro efectivo e outro suplente designados pela sociedade (art.º 415.º do C.S.C.) e por mais um membro efectivo e outro suplente nomeados pelo tribunal a requerimento de accionistas titulares de acções representativas de, pelo menos, um décimo do capital social.
E não é o facto de tal órgão de fiscalização ser composto por mais de um membro efectivo que vai trazer qualquer conflito sobre a fiscalização da sociedade. Dois fiscais sempre fiscalizarão mais que um só. E o próprio conselho fiscal é composto por três membros efectivos, podendo ser até aumentado para cinco elementos. E nem por isso se pode dizer que tal órgão não funciona, por se criarem conflitos de fiscalização entre os respectivos membros. Tal órgão tem normas de funcionamento próprias, estando legalmente previsto o modo como se processam as respectivas reuniões e deliberações (art.º 423.º do C.S.C.). Normas essas que se aplicam, subsidiariamente, ao fiscal único (cit. art.º 413.º, n.º
5).
Invoca, porém, a apelante, a inconstitucionalidade do apontado art.º
418.º, por violação dos direitos de propriedade e da iniciativa económica e privada. Mas, também aqui, é patente a sua falta de razão. Aliás, facilmente se adivinham as razões da invocada inconstitucionalidade...permitir usar de mais um recurso.
Como bem dizem as apeladas, resta-nos o desconforto de tentar explicar a evidência, ou seja, a de que a norma do art.º 418.º do C. S. C. em nada conflitua com os direitos de iniciativa privada de propriedade privada previstos nos art.ºs 61.º e 62.º da Constituição da República Portuguesa.
Aquele primeiro preceito refere que ‘a iniciativa económica privada exerce-se livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral’.
Por sua vez, dispõe o último que ‘a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição’.
Como escreveram Gomes Canotilho e Vital Moreira (Fundamentos da Constituição, 164), ‘a propriedade privada de meios de produção, que decorre naturalmente do direito geral de propriedade privada (art.º 62.º), está sujeita a limites tanto positivos (garantias) como negativos (proibições). São limites negativos da propriedade privada: a) a obrigação geral de «apropriação colectiva de meios de produção e solos, (...) bem como dos recursos naturais» (art.º
80.º/c); b) a obrigação específica de «eliminar os latifúndios» (art.º 81.º/h e
97.º). São limites positivos ou garantias da propriedade privada: a) o limite geral ao alargamento da apropriação colectiva até ao ponto de eliminar o sector privado da economia, na medida em que este pressuponha a propriedade privada de meios de produção (art.º 82.º-2); b) a obrigação específica de respeitar a propriedade minifundiária (art.º 98.º)’.
Ora, a norma do art.º 418.º do C.S.C., ao permitir a nomeação pelo tribunal de membros efectivos e suplentes para o «conselho fisca1» e para o
«fiscal único» das sociedades anónimas a requerimento de pequenos accionistas, nas condições nele referidas, visa introduzir um elemento da confiança de pequenos accionistas no órgão de fiscalização da sociedade.
Tal norma redunda, pois, em beneficio dos pequenos accionistas e da melhor defesa dos seus interesses no seio da sociedade. Mas essa nomeação não coloca minimamente em causa a propriedade nem a iniciativa privada dos accionistas maioritários.
Esses accionistas continuarão a ter os mesmos direitos e a própria sociedade não sai prejudicada com a nomeação permitida pelo referido artigo. Bem pelo contrário, passa a haver um reforço do órgão fiscalizador da sociedade, do que resulta, a nosso ver, um inegável beneficio para a sociedade, já que esta estava sujeito apenas à fiscalização do fiscal único nomeado pela assembleia geral, controlada, por via de regra, pelos sócios maioritários, e passa a estar também sujeita à fiscalização de um outro elemento nomeado pelo tribunal, a requerimento dos pequenos accionistas.
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Do acórdão de que parte acima se encontra transcrita recorreu a ré, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, para o Tribunal Constitucional, por seu intermédio pretendendo ver 'apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo 418º do Código das Sociedades Comerciais, com a interpretação que lhe foi aplicada na decisão recorrida', a qual violaria 'o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, no que respeita ao acesso ao direito e aos tribunais'.
Tendo o recurso sido admitido por despacho proferido em 2 de Julho de 2002 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto e após os autos terem sido remetidos ao Tribunal Constitucional, aqui, o relator exarou, em 16 de Setembro de 2002, o seguinte despacho:-
'O requerimento de interposição de recurso para este Tribunal não obedece à totalidade dos requisitos enunciados nos números 1 e 2 do artº 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e isso porque, indicando-se nele que se pretende ‘ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo [...] 418º do Código das Sociedades Comerciais, com a interpretação que lhe foi aplicada na decisão recorrida’, mister era que se explicitasse naquele requerimento qual a dimensão interpretativa que [se] desejava que fosse objecto de análise [pelo] Tribunal Constitucional.
Daí que, no Tribunal ‘a quo’, se devesse lançar mão do prescrito no nº 5 do artº 75º-A atrás citado.
O que não foi feito.
Neste contexto, ‘ex vi’ do nº 6 do mesmo artº 75º-A, convido a recorrente a completar o mencionado requerimento, no ponto a que se fez referência'.
Na sequência do transcrito despacho veio a recorrente indicar que a
'dimensão interpretativa que deveria ser objecto de pron[ú]ncia por parte do Tribunal ao artigo 418º do Código das Sociedades Comerciais, era no sentido de que o direito dos accionistas minoritários requerentes ficaria sempre sujeito ao crivo e à anuência da maioria ou dos accionistas maioritários, por razões devidamente justificadas, sob pena de se frustrar irreversivelmente a regra da maioria prevalecente, nas deliberações societárias'.
2. Muito embora se conviesse que o requerimento apresentado pela recorrente na sequência do convite que lhe foi dirigido neste Tribunal não primasse, de todo, por qualquer clareza, tendo em conta o teor do preceituado nos números 1 e 2 do artº 418º do Código das Sociedades Comerciais e a alegação produzida pela recorrente, aquando do recurso interposto para o Tribunal da Relação do Porto, foi entendido que o objecto do recurso se deveria circunscrever à norma extraível daqueles números 1 e 2, entendida no sentido de a mesma permitir ao tribunal, nos casos e condições indicadas em tais preceitos, a nomeação de um fiscal único efectivo e um suplente, nas situações em que a sociedade não tenha adoptado, como órgão de fiscalização, o modelo do conselho fiscal, mas sim o do fiscal único.
Com tal objecto, foi determinada a feitura de alegações.
3. A recorrente apresentou alegação com o seguinte teor:-
'1- Vem o presente recurso interposto da decisão judicial que confirmou a justeza da aplicação ‘in casu’ do artigo 418º, nºs 1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais, isto é, determinando a indicação por parte dos accionistas minoritários que votaram contra a proposta de eleição do Fiscal
Único, a indicação de mais um membro efectivo e um suplente.
2 - Salvo melhor opinião, a decisão judicial em crise enferma de inconstitucionalidade, por violação do artigo 20º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
3 - Efectivamente, sendo assegurado a todos o acesso ao direito e aos tribunais, para a defesa dos seus direitos e interesses legítimos, é óbvio que a consagração no artigo 418º nº 1 do direito potestativo de indicação de um membro efectivo do Fiscal Único, por parte da minoria que votou contra a proposta de indicação do Fiscal Único, subverte indelevelmente e de forma irrebat[í]vel a regra universal do vencimento da maioria nas deliberações societárias, coar[c]tando o acesso ao direito e aos tribunais para escrutinar tal designação ou indicação..
4 - Pior do que isso, ao aceitar-se interpretar o artigo 418º nºs 1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais, nos termos expostos, fazendo valer para os casos das sociedades como Fiscal Único a regra aplicável às sociedades com Conselho Fiscal plural, impõe-se de uma forma arbitrária e profundamente injusta a preponderância da vontade da minoria sobre a maioria..
4 - Pelo que vai retro expandido, deve concluir-se, sem sombra de dúvidas pela inconstitucionalidade da interpretação dada pelo tribunal recorrido à norma do artigo 418º nºs 1 e 2 do referido diploma.
Conclusões: a) A douta decisão recorrida, na interpretação feita nos artigos 418º nºs 1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais, viola o artigo 20º da Constituição da República Portuguesa. b) O artigo 418º nº 1ao permitir a indicação pelas minorias ali identificadas de um Fiscal Único efectivo, em substituição do eleito pela Assembleia Geral, veda o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus interesses legítimos e consequentemente com denegação de justiça de todos aqueles que sendo a maioria numa sociedade têm que ficar confinados e subjugados à preponderância e aos ditames das minorias. c) É manifesta a violação do artigo 20º da CRP, que decorre da interpretação dada pelo tribunal recorrido ao artigo 418º nºs 1 e 2 do Código das Sociedades Comerciais
Termos em que se impõe a revogação da decisão recorrida'.
Por seu turno, as recorridas remataram a sua alegação com as seguintes «conclusões»:-
'1. O recurso para o Tribunal [C]onstitucional não é legítimo porque não se demonstra, nem se pretende demonstrar a violação de qualquer norma constitucional.
2. O artigo 20º nº 1 da Constituição é dos artigos mais nobres e importantes do texto em causa, para que seja inviamente invocado para obter resultados colaterais pouco consentâneos com o prestígio e dignidade do tribunal para que se recorre.
3. São falsas as alegações de facto da recorrente. A Douta decisão recorrida deve ser respeitada e não enferma de qualquer inconstitucionalidade'.
Cumpre decidir.
4. Dispõe-se no nº 1 do artº 418º do Código das Sociedades Comerciais: Artigo 418.º
(Nomeação judicial a requerimento de minorias)
1 - A requerimento de accionistas titulares de acções representativas de um décimo, pelo menos, do capital social, apresentado nos 30 dias seguintes à assembleia geral que tenha elegido os membros do conselho de administração e do conselho fiscal, pode o tribunal nomear mais um membro efectivo e um suplente para o conselho fiscal, desde que os accionistas requerentes tenham votado contra as propostas que fizeram vencimento e tenham feito consignar na acta o seu voto; se a eleição dos membros do conselho de administração e do conselho fiscal foram efectuadas em assembleias diferentes, o prazo começa a correr da data em que foi realizada a última assembleia.
2 - Havendo várias minorias que exerçam o direito conferido no número anterior, o tribunal pode designar até dois membros efectivos e os respectivos suplentes, apensando-se as acções que correrem simultaneamente; no caso de fiscal único, só pode designar outro e o respectivo suplente.
3 -
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4 -
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5 -
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Não obstante a letra do transcrito nº 1, a decisão ora impugnada entendeu, socorrendo-se, inter alia, do nº 2, que, mesmo nos casos de a sociedade não ter adoptado o conselho fiscal como modelo de fiscalização, antes tendo adoptado o modelo de fiscal único, ainda seria possível ao tribunal, a requerimento da (ou das) minoria (ou das minorias), designar um outro fiscal
único efectivo e suplente.
Como deflui da alegação que produziu neste Tribunal, a recorrente veio na mesma a expressar um entendimento (que, ao que tudo indica, não seria exactamente o mesmo que patenteou aquando do recurso para o Tribunal da Relação do Porto) segundo o qual se deveria considera conflituante com a Constituição - por violação do seu artigo 20º - uma interpretação das ditas normas de onde resultasse que as sociedades que adoptassem como modelo de fiscalização o de fiscal único, este seria, e tão só, constituído pelos designados pelo tribunal, desta sorte se afastando as pessoas ou entidades que foram indicadas e postas à votação pela maioria detentora da sociedade.
Ora, como resulta do relato supra efectuado, a interpretação levada a efeito pela Relação do Porto não conduz a um tal resultado, pois que o que aí se entendeu foi que a figura do fiscal único não era incompatível, a par com a designação efectuada pela sociedade, com a designação, pelo tribunal, de mais um fiscal único e de um suplente.
Por conseguinte, é nesta perspectiva que se deverá equacionar a questão sub iudicio.
5. De acordo com a dimensão interpretativa ora em crise, consagrar-se-ia o direito dos accionistas minoritários poderem requerer judicialmente a nomeação de um membro efectivo e um suplente do órgão de fiscalização da sociedade fiscal único, desde que, observados os condicionalismos legais previstos no nº 1 do citado artº 418º, os mesmos não concordassem com a indicação efectuada pela maioria relativamente às pessoas ou entidades (e expressassem nesse sentido o seu voto na assembleia em que essa indicação ocorreu) que fariam parte desse órgão de fiscalização.
Pois bem.
Neste contexto, não se pode sustentar que o sentido interpretativo em análise levará à criação de conflitos de fiscalização da sociedade em apreço, por divergências de interesses entre sócios maioritários e sócios minoritários: na verdade, para que tal nomeação suceda, não é sequer necessário - como tem sido jurisprudência seguida pelos nossos tribunais da ordem dos tribunais judiciais- que os interesses dos accionistas peticionantes se não encontrem objectiva e eficazmente acautelados pelas indicação e designação do fiscal único e do suplente levadas a cabo pela maioria.
De facto, o que se visa com o direito potestativo consagrado no nº 1 do artº 418º do Código das Sociedades Comerciais (direito esse que, segundo a interpretação em apreço também é conferido aos accionistas minoritários nos casos em que a sociedade adopta como modelo de fiscalização o de fiscal único) é introduzir um «elemento de confiança» dos pequenos accionistas no órgão de fiscalização da sociedade.
Aliás, a defesa da tese da recorrente e o que se extrai da sua retórica argumentativa, só faria sentido num quadro em que se promova e defenda uma actuação não fiscalizada das maiorias (ou, ao menos, sem que nessa actuação intervenham as minorias) e se entenda que o direito de propriedade privada, no que tange ao direito de iniciativa privada e cooperativa, apenas passa pela defesa dos direitos das maiorias e pela consideração das deliberações dessas mesmas maiorias, sem consideração dos direitos e interesses das minorias – o que
é de todo indefensável e completamente inaceitável e inadmissível.
6. Por isso, mesmo que se tivesse em linha de conta que, com a tese interpretativa em causa, a vontade da maioria poderia ficar «abalada» (e não totalmente postergada, pois que, como se viu, as pessoas ou entidades por essa maioria indicadas e designadas, de qualquer forma, não deixam de cabalmente exercer as suas funções como fiscal único, efectivo e suplente), não se lobriga minimamente que de um reforço da confiança dos pequenos accionistas - que a lei visa atingir - coloque em causa a propriedade e a iniciativa privadas dos accionistas maioritários. Efectivamente, estes continuarão a ter os mesmos direitos, existindo, tão-só, um reforço do órgão fiscalizador da sociedade.
7. Quanto à consideração de que tal interpretação seja violadora do princípio do acesso ao direito e aos tribunais, plasmado no artigo 20º da Lei Fundamental, a recorrente não diz como, nem este Tribunal vislumbra qualquer razão válida para considerar que essa violação ocorra.
Neste particular, assinale-se, num primeiro passo, que, tendo sido escopo dos normativos em apreço o do asseguramento de um reforço da protecção das minorias, sem, contudo, deixar sair minimamente prejudicados os direitos ou interesses dos accionistas maioritários, não se vê como se possa invocar a violação do princípio do acesso ao direito.
O receio de desconsideração dos direitos dos sócios maioritários, brandido pela recorrente, só faria sentido numa lógica completamente anti-democrática no funcionamento de uma sociedade comercial em que a totalidade do capital social não está nas mãos de um só detentor. É que, o fiscal único, tal como o conselho fiscal, constitui um órgão fiscalizador da sociedade, postando-se, desta arte, como um órgão (dotado de regras próprias de funcionamento - cfr. nº 5 do artigo 413º do Código das Sociedades Comerciais) e que tem o propósito de aferir da regularidade financeira da sociedade, não existindo, pois, como um mero formalismo apto a dar o beneplácito à gestão dos
órgãos de administração.
Por isso mesmo, e aceite que seja a realidade da existência de minorias detentoras do capital social, se compreende que um tal órgão esteja dotado de independência, para cujo prosseguimento isento, ao menos na perspectiva não só de o ser, como na de o «parecer ser» aos olhos de todos, há-de reflectir uma composição na qual a vontade das minorias, quanto à designação desse órgão, se repercutirá.
A isto, por outro lado, se adita que se não concebe qualquer forma de frustração da regra da maioria prevalecente nas deliberações societárias, pois o funcionamento da sociedade, segundo as maiorias expressas, será o mesmo.
O que apenas acontece é um reforço do órgão fiscalizador, do qual resulta um atendimento dos direitos das minorias (ao menos do «direito» de fiscalização da actividade financeira da sociedade).
Por último, sublinhe-se, em primeiro lugar, que o princípio do acesso ao direito, enquanto expressão do direito geral à protecção jurídica e integrante do elemento essencial da própria ideia de Estrado de Direito, não pode conceber-se apenas como '(...) instrumento da defesa dos direitos e interesses legítimos. É também elemento integrante do princípio material da igualdade (...) e do próprio princípio democrático, pois este não pode deixar de exigir também a democratização do direito'(cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição revista, pág. 162).
Em segundo lugar, e a ocorrerem situações tais como as aventadas pela impugnante aquando da sua alegação no recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, ou seja, que havendo um fiscal único (e um suplente) indicado pela maioria e um fiscal único (e também um suplente) designado pelo tribunal a requerimento da minoria (ou das minorias), isso poderia conduzir a
«impasses» na fiscalização da sociedade, nas hipóteses de desacordo entre as pessoas ou entidades constitutivas daquele órgão de fiscalização, não se vê como isso iria implicar a violação do direito de acesso aos tribunais.
Antes, e pelo contrário, como, em tais situações, não deixa de estar aberta a possibilidade de recurso a providências judiciárias para solucionar esse alegado «impasse», isso justamente aponta para que o artigo 20º, nº 1, da Constituição se não mostre violado.
8. Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 29 de Janeiro de 2003 Bravo Serra Maria Fernanda Palma Mário Torres Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa