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Processo nº 382/02
3ª Secção Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 210, foi proferida a seguinte decisão sumária:
1. A instaurou, no Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, contra o MUNICÍPIO de VILA NOVA DE POIARES uma acção de condenação no pagamento de uma indemnização por ter sofrido um acidente de automóvel por facto imputável ao réu. Segundo alegou, o acidente ficou a dever-se a uma cancela que pessoal ao serviço do réu deixara, sem a devida sinalização, na rua, por ocasião de obras de reparação do respectivo pavimento. Na contestação, para o que agora releva, o réu suscitou a incompetência do Tribunal Administrativo de Círculo, por entender que 'não se vislumbra que esteja em causa uma relação jurídica administrativa, mas sim um acidente de viação'. Em seu entender, a acção deveria ter sido proposta num tribunal judicial. Como o despacho saneador desatendeu a excepção de incompetência, o réu recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo. Nas alegações de recurso, e tendo em conta que 'face até ao que consta da referida decisão, não se está perante uma relação jurídica geral, e muito menos, administrativa, como ela é colocada pela doutrina, mas sim uma responsabilidade civil extracontratual, consagrada, além do mais, [no] art. 22º da Const. República', concluiu que o Tribunal Administrativo de círculo interpretara mal a alínea c) [h] do nº 1 do artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e que, 'mesmo que assim não se entendesse a decisão sub iudice não poderia deixar de violar a Constituição, uma vez que os arts. 22º e 212º da Const. da República não podem deixar de ferir de inconstitucionalidade a referida alínea c) [h] do nº 1 do art. 51º do ETAF'. O Supremo Tribunal Administrativo confirmou a decisão da 1ª instância. Em síntese, considerou que o litígio em apreciação emergia de uma relação jurídica administrativa e que, portanto, o seu conhecimento incumbia aos tribunais administrativos, e que a alínea h) ( e não a alínea c), cuja referência atribuiu a lapso do recorrente) do nº 1 do artigo 51º do ETAF em nada contrariava a Constituição.
2. De novo inconformado, o Município réu veio recorrer para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, concluindo pedindo que se julgue 'incompetente o Tribunal Administrativo e como competente o Tribunal Judicial Comum, ou julgar-se inconstitucional a norma da alínea c) do nº 1 do art. 51º do ETAF, face aos comandos dos arts. 22º e 212º ambos da Const. da República'. O recurso foi admitido, em despacho que não vincula o Tribunal Constitucional
(nº 3 do artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. Esta conclusão não tem presente que o objecto do recurso interposto não comporta a declaração de incompetência pretendida, razão pela qual o Tribunal Constitucional não vai apreciar o correspondente pedido. No que toca ao pedido de declaração de inconstitucionalidade da norma constante da alínea h) – novamente se corrige o lapso na indicação da alínea que está em causa – do nº 1 do artigo 51º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, a verdade é que é manifestamente infundado. Segundo a citada alínea h), aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84, de 27 de Abril, os tribunais administrativos de círculo são competentes para conhecer 'Das acções sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública, incluindo acções de regresso'. O Supremo Tribunal Administrativo, considerando ter sido proposta uma acção contra um município destinada a fazer valer a sua responsabilidade civil por um acto que entendeu ser de gestão pública, confirmou decisão da primeira instância que desatendeu a excepção de incompetência. Não se alcança, assim, como pode o recorrente sustentar a inconstitucionalidade da norma com base na qual este juízo foi proferido. Do artigo 22º da Constituição, consta a regra da responsabilidade civil do Estado, nos termos ali previstos; do artigo 212º, em especial do seu nº 3, decorre que cabe aos tribunais administrativos e fiscais conhecer das acções 'que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativos e fiscais'; ora o Supremo Tribunal Administrativo entendeu tratar-se, precisamente, de um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, a julgar, consequentemente, nos tribunais administrativos. Da leitura das alegações apresentadas perante o Supremo Tribunal Administrativo, para as quais remete o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, parece depreender-se que o que o recorrente questiona – em termos, aliás, dificilmente compreensíveis – é, justamente, o acerto da qualificação da relação litigiosa como uma relação jurídica administrativa. Ora essa questão não pode ser decidida neste recurso, como se sabe. Seja como for, o pedido de declaração de inconstitucionalidade é manifestamente infundado.
4. Estão, assim, reunidas as condições para que o Tribunal Constitucional profira uma decisão sumária, nos termos previstos no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82 , de 15 de Novembro. Nestes termos, julga-se manifestamente infundado o presente recurso.
2. Inconformado, o Município de Vila Nove de Poiares veio reclamar para a conferência, nos termos previstos no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, nos seguintes termos:
«1 - Os Tribunais em Portugal sofrem todos do 'mal da incompetência' a que leva que alguns já digam que os Tribunais têm apenas por finalidade 'matar os processos'.
2 - De facto o recorrente Município não deixou de vir trazer à análise deste Pretório máximo, uma questão que devia até preocupar os seus magistrados, uma vez que, estes têm o dever de pugnar pela não aplicação de normas inconstitucionais.
3 - E salvo o devido respeito que estes assuntos nos têm de merecer, a al. h) do n° 1 do art. 51º do ETAF não pode deixar de se considerar inconstitucional, por violação do art. 22° e n° 3 do art. 212° da Constituição da República, pelas razões já apontadas.
4 - Na verdade data maxima venia os Tribunais Administrativos apenas podem dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
5 - E, por sua vez, aquele artigo 22° da CR regula a responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas, não podendo desta responsabilidade inferir-se uma relação jurídica administrativa.
6 - Aliás, analisar-se esta questão não deixaria de ser importante até para poder considerar-se ou não também inconstitucional as als. g), h) e i) do nº 1 do art. 4° da Lei n° 13/2002 de 19/12, que entra em vigor um ano após esta data, por força do seu art. 9°.
7 - Pois não pode estar apenas em causa o conteúdo dos arts. 22° e 212° da Constituição da República, mas também o n° 2 do art. 110º no qual se determina o que para melhor compreensão nos permitimos transcrever:
«2. A formação, a composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania são os definidos na Constituição.»
8 - Ora na Constituição, como se referiu, apenas se atribui aos TribunaisAdministrativos competência para dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administra tivas.
9 - Portanto, era necessário e urgente que o Tribunal Constitucional interpretasse a norma constante do n° 3 do art. 212° da Constituição da República, ou seja se nas relações jurídicas administrativas também se incluem os eventos que podem provocar a responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas previstas no art. 22° da CR, uma vez que naquelas relações jurídicas predomina o elemento de voluntariedade entre os sujeitos, o que não acontece na responsabilidade civil extracontratual, o que é fruto de um qualquer evento.
10 - E quer o Tribunal Administrativo de Círculo quer o Supremo Tribunal Administrativo esqueceram, que se tratava de uma responsabilidade civil extracontratual do Município pelo evento constante de um acidente de viação ocorrido numa via municipal.
11 - Logo o Município ao contrário do que se refere, colocou esta problemática neste sentido e quando refere que a decisão não podia deixar de violar a Constituição é no sentido funcional, pois se o Tribunal não tivesse aplicado a norma da al. h) do nº 1 do art. 51° do ETAF, pelo qual se considerou o Tribunal Administrativo competente e plasmou como reflexo, na decisão aquela norma.
12 - Portanto a questão foi desde sempre bem colocada e a decisão sub judíce não pode deixar de consubstanciar uma verdadeira 'denegação' da justiça ao recusar a análise da constitucionalidade da al. h) do n° 1 do art. 51° do ETAF. Face ao exposto e por tudo o mais que V.Ex.a. doutamente suprirão deve o recurso continuar e serem analisadas as questões colocadas, através de um Acórdão que se requer que recaia sobre a decisão sub judíce, nos termos do n° 3 do art. 78°A da Lei n° 28/52 de 15/11».
A reclamada não respondeu.
3. A presente reclamação é, porém, improcedente, assentando num pressuposto manifestamente errado – o de que não pode existir uma 'relação jurídica administrativa' quando está em causa uma situação de 'responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas'. Note-se, aliás, que é incompreensível a sua pretensão de que o Tribunal Constitucional explique, interpretando o nº 3 do artigo 212º da Constituição,
'se nas relações jurídicas administrativas também se incluem os eventos que podem provocar a responsabilidade civil extracontratual das entidades públicas previstas no art. 22º da CR, uma vez que naquelas relações jurídicas predomina o elemento de voluntariedade entre os sujeitos, o que não acontece na responsabilidade civil extracontratual, o que é fruto de um que evento'. Não tem, pois, qualquer cabimento a acusação de denegação de justiça. Confirma-se, assim, pelos fundamentos nela apontados, a decisão reclamada. Nestes termos, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão reclamada. Lisboa, 16 de Outubro de 2002- Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida