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Proc. nº 577/98 TC – Plenário Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
1 – Relatório O Procurador-Geral da República requer, com a legitimidade que lhe confere o artigo 281º, nº 1, alínea a) e nº 2 da Constituição da República Portuguesa, a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 13º, nº 2, alínea e), 16º, 17º, 18º e 19º do Decreto-Lei nº 26/94, de 1 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 7/95, de
29 de Março.
Alega o requerente como fundamento do seu pedido, em síntese:
- O regime estabelecido pelo citado Decreto-Lei nº 26/94 não foi, devendo sê-lo, credenciado por autorização parlamentar.
Com efeito, aquele regime:
a) Instituiu 'relevantes restrições ao núcleo essencial do direito à reserva da intimidade da vida privada que como é inquestionável abrange as informações e elementos atinentes ao estado de saúde de quem pretende ser ou é trabalhador de certas empresas';
b) Criou 'um mecanismo 'coercivo' que permite submeter tais trabalhadores à realização de quaisquer exames ou testes (cfr. artigo 16º, nº 3) que o médico de trabalho discricionariamente julgue necessários (artigo 19º, nº
1, alíneas b) e c)';
c) Permitiu 'ao referido 'médico do trabalho' (que se insere em serviços pertencentes ou contratados pela própria empresa empregadora) a criação de uma verdadeira 'base de dados' que inclui informações virtualmente exaustivas sobre o 'estado de saúde' de cada trabalhador sem outro controlo ou fiscalização que não seja a genérica proclamação de que tais dados estão sujeitos ao sigilo profissional (artigo 17º, nºs 1 e 2), prevendo-se ainda a instituição de um regime de colaboração 'necessária' com o médico assistente do trabalhador, ao abrigo do qual parece ser possível obter deste inquisitoriamente os resultados de anteriores exames ou consultas';
d) Permitiu 'ao médico do trabalho, com base no juízo de aptidão
'sanitária' que formule, influenciar decisivamente a situação profissional do trabalhador, sem que se preveja e configure qualquer garantia adequada a questionar tal juízo do aludido 'médico do trabalho' (artigo 18º, nº 1)'.
- As normas que criaram este regime 'padecem, pois, desde logo, de evidente inconstitucionalidade orgânica, por violação do preceituado no artigo
168º, nº 1, alínea b) – actual artigo 165º, nº 1, alínea b) – em conexão com o artigo 26º da Constituição da República Portuguesa que consagra como direito fundamental a reserva da intimidade da vida privada'.
- As 'alterações parcelares e pontuais' que a Lei nº 7/95, por ratificação do Decreto-Lei nº 26/94, introduziu nos questionados artigos 16º, nºs 1, 2 e 3, 17º, nº 3 e 18º, nº 1 'não são susceptíveis de operar a convalidação ou sanação da evidente inconstitucionalidade orgânica do bloco normativo atrás especificado'.
Na verdade, segundo o entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira ('Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª edição, pág. 698)
'no caso de serem aprovadas alterações, esse facto não significa que a Assembleia da República adopte como seu o diploma na parte não alterada, salvo se ele for globalmente renovado e reproduzido na lei de alteração. As normas de um decreto-lei eventualmente inconstitucional por incompetência só deixam de o ser se e a partir do momento em que forem reassumidas em lei parlamentar'.
'Ora, atendendo ao carácter fragmentário e, aliás, pouco significativo, das alterações introduzidas, é evidente que não estão, de nenhum modo convalidadas as gravosas inconstitucionalidades constantes dos preceitos citados do Decreto-Lei nº 26/94'.
Para tanto, basta ponderar que a Lei nº 7/95 deixou incólumes as normas dos artigos 17º, nºs 1 e 2, 16º, nº 5 e 19º, 'que constituem traves mestras do regime instituído'.
Entende, ainda o requerente que, tanto o Decreto-Lei nº 26/94 como a Lei nº 7/95, padecem de 'evidente inconstitucionalidade formal'; isto porque 'de nenhum destes diplomas resulta que, com referência, à edição das normas de
'legislação do trabalho' que inquestionavelmente os integram, haja sido respeitado o direito das comissões de trabalhadores e das associações sindicais de – nos termos dos artigos 54º, nº 5, alínea d) e 56º, nº 2, alínea a) da Constituição da República Portuguesa – participarem na elaboração da legislação do trabalho; e sendo certo que tal omissão de expressa indicação do cumprimento de tal formalidade essencial do processo legislativo determina, como resulta da jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional, a presunção de que tal audição não teve lugar'.
Com efeito, 'da Lei nº 7/95 não resulta qualquer indicação ou referência sobre tal audição – sendo evidente que a introdução de 'alterações' ao regime da segurança, saúde e higiene do trabalho implicava o facultar às associações sindicais o referido direito de participação'.
Também 'do preâmbulo do Decreto-Lei nº 26/94 apenas resulta que 'o presente diploma foi apreciado na Comissão Permanente de Concertação Social, integrando a actual redacção os consensos ali alcançados', o que, conforme o decidido no Acórdão nº 64/91 do Tribunal Constitucional, 'não supre, só por si, a necessária e prévia audição das organizações de trabalhadores sobre as medidas a decretar, já que as comissões de trabalhadores não têm qualquer ligação às entidades representadas no Conselho, tal como nele poderão não estar representadas certas e determinadas associações sindicais que cumpria ouvir'.
- Algumas das soluções constantes dos preceitos referidos padecem, ainda, segundo o requerente, de 'evidente inconstitucionalidade material'.
É, desde logo, o caso da criação para os trabalhadores de 'um dever irrestrito de revelação do seu estado global de saúde e de sujeição à realização de quaisquer exames clínicos que o 'médico de trabalho' entender necessários', o que 'implica clara, desproporcionada e intolerável restrição a um dos elementos que integram o núcleo essencial do direito à reserva da intimidade da vida privada – e que abarca naturalmente as informações atinentes ao 'estado de saúde' do interessado'.
Tal sucede porque 'o sistema instituído não se limitou a prever a realização de certos e determinados exames clínicos, destinados a apurar o
'estado de saúde' de trabalhadores que pretendam exercer ou exerçam já actividades particularmente arriscadas ou exigentes – quer na perspectiva dos interesses do próprio trabalhador, quer da tutela de terceiros, eventualmente afectados: não se limitou a prever a averiguação e indagação médicas relativamente a certas e determinadas situações patológicas objectivamente conexionadas com certos riscos profissionais típicos e relativamente a certas profissões ou funções 'de risco' para o próprio trabalhador'; 'foi mais longe, instituindo um sistema de indagação inquisitória e 'coerciva' (cfr. artigo 19º), do estado global de saúde de todos os trabalhadores, criando um dever, potencialmente ilimitado, de sujeição à realização de testes ou exames médicos e levando à devassa sistemática do estado de saúde' dos trabalhadores ao ponto de pretender quebrar a própria confidencialidade de dados à guarda do médico assistente, ao instituir a 'cooperação necessária' deste naquela sistemática e global devassa da reserva da vida privada pelo 'médico de trabalho'.
Tal 'importa violação da norma constante dos nºs 2 e 3 do artigo 18º da Constituição da República Portuguesa, já que a devassa sistemática ao estado de saúde dos trabalhadores, ao exceder nomeadamente o âmbito das 'profissões de risco' e das patologias estritamente profissionais, implica restrição excessiva e desproporcionada ao direito fundamental conferido pelo artigo 26º da Constituição da República Portuguesa'.
- O sistema instituído vai, por outro lado, 'originar a criação, em cada empresa, de um verdadeiro 'banco de dados' que engloba informações extremamente precisas e vastas relativamente ao estado global de saúde de cada trabalhador – sem que se preveja outra garantia que não seja a mera proclamação da 'confidencialidade' de tais dados', sendo certo que 'o médico de trabalho
(...) é, afinal, alguém que está inserido nos serviços internos da própria empresa ou em organismo por ela contratado sem que obviamente tenha sido reconhecido qualquer direito dos trabalhadores a escolha do médico a cujas inspecções devem obrigatoriamente submeter-se'.
Ora – prossegue o requerente – 'mesmo admitindo que as 'fichas clínicas que integram o aludido banco de dados pessoalíssimos não irão ser objecto de tratamento informatizado – o artigo 35º, nº 7 da Constituição da República Portuguesa, na sua redacção actual, prescreve que 'os dados pessoais' constantes de ficheiros manuais gozam de protecção idêntica à prevista nos números 1 a 6 daquele preceito constitucional', sendo certo que essa protecção
'não está minimamente garantida pelos diplomas legais em causa'.
- Por último, alega o requerente que 'o sistema instituído poderá ainda implicar restrição intolerável e desproporcionada ao direito ao trabalho e ao direito fundamental à escolha e exercício da profissão, previsto no artigo
47º da Lei Fundamental'.
Isto porque 'os resultados dos exames e testes clínicos (...) são discricionariamente apreciados pelo referido 'médico de trabalho', podendo conduzir a uma verdadeira 'inibição' do exercício da profissão, sempre que aquele considere – na 'ficha de aptidão' a que alude o nº 1 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 26/94 – que o trabalhador carece de aptidão física e psíquica para iniciar ou continuar a exercer certas funções profissionais', sucedendo que
'relativamente a tal decisão – que não pode sequer ser fundamentada, por a tal se opor o dever de sigilo que vincula o aludido médico do trabalho – não institui a lei qualquer mecanismo específico que permita ao trabalhador – que pretenda, porventura, reagir a tal 'conclusão' discricionária – fazer valer, com celeridade e efectividade, os seus direitos fundamentais atingidos.'
Notificado, para responder, nos termos do artigo 54º da LTC, o Presidente da Assembleia da República limitou-se a oferecer o merecimento dos autos e a juntar os Diários da Assembleia da República que contêm os trabalhos preparatórios da Lei nº 7/95.
Por seu turno, o Primeiro-Ministro, notificado para o mesmo efeito, respondeu sustentando que se não verifica qualquer tipo de inconstitucionalidade
– orgânica, formal ou material – no diploma questionado.
Diz, em síntese:
A) Quanto à 'inconstitucionalidade orgânica':
- Os direitos que o decreto-lei em causa veio concretizar – os direitos especificados no artigo 59º, nº 1, alíneas b) e c) da CRP – inscrevem-se no âmbito dos direitos económicos e sociais, pelo que não se encontram abrangidos pela reserva relativa de competência da Assembleia da República prevista no artigo 165º (antigo artigo 168º) da Constituição.
B) Quanto à 'inconstitucionalidade formal':
- O estabelecimento do regime de organização e funcionamento das actividades de segurança, higiene e saúde no trabalho não se enquadra juridicamente no conceito de 'legislação do trabalho', uma vez que 'não diz unicamente respeito aos trabalhadores' e 'é antes um problema de saúde pública que postula e reclama uma intervenção regulamentadora por parte dos poderes públicos'.
- Por outro lado, o Governo ouviu os 'parceiros sociais', onde se incluem os representantes dos trabalhadores, no âmbito da Comissão Permanente de Concertação Social.
C) Quanto à 'inconstitucionalidade material':
- Distinguindo-se no âmbito da 'vida privada' três esferas – a esfera íntima, a esfera privada e a esfera social - é a esfera íntima 'que corresponde ao 'núcleo duro', 'irredutível', do direito reconhecido no artigo
26º da Lei Fundmental', insusceptível de ser contrapesado ou limitado 'mesmo perante a invocação de um 'interesse prevalente da comunidade' ou 'interesse público de excepcional relevo'.
Não ocorreria in casu qualquer violação do 'núcleo essencial do direito à reserva da vida privada' – que não abrangeria todas 'as informações e elementos atinentes ao estado de saúde de quem pretende ser ou é trabalhador de certa empresa' - , já que as normas impugnadas têm a ver 'não com o núcleo irredutível da esfera privada ou íntima do cidadão, mas com a dimensão social do direito fundamental em geral, e dos trabalhadores em particular'.
Assim, 'a regulamentação do regime da organização e funcionamento das actividades de segurança, higiene e saúde no trabalho tem a ver não com o exercício de um direito de personalidade em geral, mas com os direitos dos trabalhadores enquanto tais, isto é, integrados numa actividade socio-laboral e em comunicação com a comunidade em geral'.
- Quanto à pretensa violação do artigo 35º da CRP, o Primeiro-Ministro começa por definir o conteúdo essencial do direito à protecção de dados pessoais, identificando-o como sendo 'de um lado, a não referência a convicções filosóficas ou políticas, filiação partidária ou sindical, fé religiosa, vida privada e origem étnica' e 'do outro, o facto de se tratar de dados insusceptíveis de ser individualmente identificáveis'.
Importando saber 'se o conceito de dados sobre o 'estado de saúde' reentra no quadro constitucional e jurisprudencial de 'vida privada' e aceitando que 'os dados pessoais referentes ao 'estado de saúde' quando referentes ao domínio das doenças do foro oncológico integram a vida privada', como o Tribunal Constitucional entendeu no Acórdão nº 355/97, sustenta o Primeiro-Ministro que os dados a que se reportam os autos não se integram 'na categoria dos chamados dados pessoais 'sensíveis', situando-se fora dessa mesma esfera, pelas mesmas razões que apontara para demonstrar que não havia ofensa do direito á intimidade da vida privada – perfilar-se-ia aqui 'a 'dimensão social' da personalidade no quadro da actividade sócio-laboral'.
Diz ainda:
- Que 'os 'exames médicos' destinados à verificação da aptidão física e psíquica do trabalhador para o exercício da sua profissão, bem como as fichas 'clínicas' e de 'aptidão' previstas nos artigos 16º, 17º e 18º do Decreto referenciado nos autos não ofendem o núcleo duro, essencial e irredutível do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada';
- Que 'o médico de trabalho não goza de nenhum 'poder discricionário' no cumprimento dos seus deveres e obrigações legais'; vinculado
às disposições legais do decreto-lei em causa e às que regulamentam a sua prática profissional (Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 282/77, de 20 de Agosto e Decreto-Lei nº 217/94, de 20 de Agosto, que aprova o Estatuto Disciplinar dos Médicos), o médico de trabalho está obrigado, por via deste quadro normativo, a deveres de confidencialidade e sigilo dos actos médicos e informações recolhidas dos trabalhadores.
- Que, existindo hoje sobre o tratamento informático de dados de natureza pessoal, uma Lei geral de Protecção dos Dados Pessoais face à Informática – Lei nº 10/91, de 29 de Abril, alterada pela Lei nº 28/94, de 29 de Agosto e estando o Estado Português vinculado às disposições da Convenção para a Protecção das Pessoas relativamente ao Tratamento Automatizado de Dados de Carácter Pessoal, do Conselho da Europa, ratificada por Decreto do Presidente da República nº 21/93, de 3 de Julho, este conjunto normativo 'estabelece o enquadramento base para o exercício dos deveres e obrigações jurídicas instituídas pelo Decreto-Lei nº 26/94', pelo que 'não parece credível a afirmação de que o médico de trabalho determine 'discricionariamente', nem que com base no seu juízo de aptidão 'sanitária' possa 'influenciar decisivamente a situação profissional do trabalhador, sem que se preveja e configure qualquer
'garantia adequada' que possa contrabalançar e questionar esse juízo'.
Salienta que as normas em causa não prevêem que, com base nos exames médicos, 'se proceda ao tratamento informatizado ou manual, por exemplo, de dados referentes à origem social ou étnica do trabalhador ou à sua vida sexual ou íntima'.
Ainda, no quadro geral instituído pela citada Lei geral de Protecção dos Dados Pessoais face à Informática, estão previstas 'regras muito claras quanto à finalidade ou unicidade da recolha e tratamento automatizado, quanto à legalidade ou licitude da recolha e tratamento automatizado, quanto à veracidade e actualização dos dados, quanto à segurança, sigilo e confidencialidade dos dados recolhidos que impende sobre todos os intervenientes públicos ou privados, na recolha, tratamento, utilização e conservação de dados de natureza pessoal'.
- No que concerne ao 'dever de cooperação dos trabalhadores', previsto no artigo 19º do Decreto-Lei nº 26/94, ele é, nos termos da resposta que se tem vindo a sintetizar, inteiramente justificado, por a recolha dos dados se mostrar 'necessária à execução das obrigações de trabalho ou da relação pública de emprego', sendo certo que esses dados – não integrados na categoria dos chamados dados pessoais 'sensíveis' – 'são recolhidos junto dos trabalhadores, isto é facultados por estes e não reclamados (...) por via de um
'mecanismo coercitivo'.
Finalmente, quanto à invocada inconstitucionalidade material por violação dos direitos ao trabalho e à escolha e exercício de profissão, diz o Primeiro-Ministro que:
- As normas em causa não restringem injustificada, intolerável, desproporcionada e desrazoavelmente a 'livre escolha e exercício de profissão', direito que 'não é absoluto, mas relativo'.
- O Decreto-Lei nº 26/94 e, em especial, as normas em causa que estabelecem o regime de organização e funcionamento das actividades de segurança, higiene e saúde no trabalho – 'objectivo que o Governo se encontra constitucionalmente vinculado a promover e a concretizar em ordem a prevenir os riscos profissionais e a proceder a uma regulamentação e vigilância
'constitucionalmente adequadas das condições de 'segurança, higiene e saúde' dos trabalhadores' - 'limitam-se unicamente a prosseguir um interesse eminentemente público, imposto pela prossecução do interesse geral ou colectivo'; tratar-se-ia, pois, de 'um problema de saúde pública' que postula 'a intervenção regulamentadora por parte dos poderes públicos';
- Sujeita essa intervenção a limites juridico-constitucionais e legais, 'a Constituição da República individualiza-se como fundamento e base' da actividade interventora, prevendo, designadamente, 'restrições legais impostas pelo poder legislativo em nome do interesse colectivo ou inerentes à própria capacidade do cidadão trabalhador'.
- 'Este domínio (...) reveste, de forma clara e inequívoca, uma importante e relevante dimensão social', não estando aqui em causa 'o indivíduo isolado, possessivo e atomisticamernte considerado', mas 'inserido numa comunidade e, particularmente numa comunidade de trabalho, capaz de lhe proporcionar – e a fortiori – as condições objectivas e dignificantes de um livre desenvolvimento da sua personalidade enquanto pessoa humana'.
- 'A realização de exames médicos, tendo por finalidade verificar a aptidão física e psíquica do trabalhador para o exercício da sua profissão, a repercussão do trabalho – e das condições em que este se realiza – na saúde do trabalhador, não se apresentam, de modo algum, como limitadoras, restritivas ou ablativas do 'núcleo duro', 'conteúdo essencial' ou 'alcance central de aplicação' do direito à livre escolha e exercício de profissão, pública ou privada';
- 'A defesa da saúde pública no quadro da organização do trabalho em condições socialmente dignificantes constitui, de um lado, um direito dos trabalhadores, e, do outro, um dever jurídico constitucionalmente vinculante para o legislador'.
Sobre esta questão, a resposta do Primeiro-Ministro conclui nos seguintes termos:
- '(...) ainda que se concorde, em abstracto, que em matéria de direitos, especialmente dos direitos, liberdades e garantias, deve ser ofertada ao cidadão trabalhador uma margem constitucionalmente adequada de garantia e efectividade dos seus direitos, é convicção do Governo que, no presente caso, essa margem de garantia não foi posta em causa.
Senão veja-se:
a) A constituição dos direitos, na sua universalidade, não está sujeita ao mesmo grau de protecção jurídica. Há direitos que pela sua essencialidade requerem um grau mais alto de protecção jurídica, v.g., o direito
à vida, a liberdade de consciência, religião e culto, etc.
b) É o próprio legislador constitucional que, de 'motu proprio', remete para a lei a determinação das condições legais de organização da actividade do trabalho, em nome do interesse colectivo, ou a especificação das restrições inerentes à própria capacidade do trabalhador.
c) As normas cuja constitucionalidade se impugna dizem respeito não a restrições 'inerentes' à capacidade do trabalhador (o que as faria reentrar na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República), mas à fixação do regime jurídico de organização e funcionamento das actividades de segurança e higiene e saúde no trabalho para cuja regulamentação não se exige credencial parlamentar.
d) Afirmar o contrário, é defender uma concepção 'absolutística' de direitos, de 'omnipresença do direito constitucional' constitucionalmente inadequada.
e) A composição ou equilíbrio de interesses no sentido de garantir e assegurar a paz jurídica e social é o caminho para que aponta a Lei Fundamental, designadamente no segmento normativo final contido no nº 1 do artigo 47º.'
Fixada a orientação do Tribunal sobre as questões a resolver, cumpre decidir de harmonia com essa orientação (artigo 65º, nº 1 da LTC).
2 – As normas questionadas São do seguinte teor as normas do Decreto-Lei nº 26/94, de 1 de Fevereiro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 7/95, cuja inonstitucionalidade o requerente pretende ver declarada com força obrigatória geral:
Artigo 13º
Actividades principais
2 – Para efeitos do artigo anterior, os serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho devem garantir, nomeadamente, a realização das seguintes actividades:
.............................................................................................................
e) Promoção e vigilância da saúde, bem como a organização e manutenção dos registos clínicos e outros elementos informativos relativos a cada trabalhador;
.............................................................................................................
Artigo 16º
Exames de saúde
1 – Os empregadores devem promover a realização de exames de saúde, tendo em vista verificar a aptidão física e psíquica do trabalhador para o exercício da sua profissão, bem como a repercussão do trabalho e das suas condições na saúde do trabalhador.
2 – Sem prejuízo do disposto em legislação especial devem ser realizados os seguintes exames de saúde
a) Exame de admissão, antes do início da prestação de trabalho ou, quando a urgência da admissão o justificar, nos 20 dias seguintes;
b) Exames periódicos, anuais para os menores de 18 anos e para os maiores de 50 anos e de dois em dois anos para os restantes trabalhadores;
c) Exames ocasionais, sempre que haja alterações substanciais nos meios utilizados, no ambiente e na organização do trabalho susceptíveis de repercussão nociva na saúde do trabalhador, bem como no caso de regresso ao trabalho depois de uma ausência superior a 30 dias por motivo de acidente ou doença.
3 – Para complementar a sua observação e formular uma opinião mais precisa sobre o estado de saúde do trabalhador, o médico do trabalho pode solicitar exames complementares ou pareceres médicos especializados.
4 – O médico do trabalho, face ao estado de saúde do trabalhador e aos resultados da prevenção dos riscos profissionais na empresa, pode, quando se justificar, alterar, reduzindo ou alargando, a periodicidade dos exames, sem deixar, contudo, de os realizar dentro do período em que está estabelecida a obrigatoriedade de novo exame.
5 – O médico do trabalho deve ter em consideração o resultado de exames a que o trabalhador tenha sido submetido e que mantenham actualidade, devendo estabelecer-se a cooperação necessária com o médico assistente.
6 – Nas empresas cujo número de trabalhadores seja superior a 250, no mesmo estabelecimento, ou estabelecimentos situados na mesma localidade ou localidades próximas, o médico do trabalho, na realização dos exames de saúde, deve ser coadjuvado por um profissional de enfermagem com qualificação ou experiência de enfermagem do trabalho.
Artigo 17º
Fichas clínicas
1 – As observações clínicas relativas aos exames médicos são anotadas em ficha própria.
2 – A ficha encontra-se sujeita ao regime de segredo profissional, só podendo ser facultada às autoridades de saúde e aos médicos do Instituto de Desenvolvimento e Inspecção das Condições de Trabalho.
3 – Quando o trabalhador deixar de prestar serviço na empresa, ser-lhe-á entregue, a seu pedido, cópia da ficha clínica.
Artigo 18º
Ficha de aptidão
1 – Face aos resultados dos exames de admissão, periódicos e ocasionais, o médico do trabalho deve preencher uma ficha de aptidão e remeter uma cópia ao responsável dos recursos humanos da empresa. No caso de inaptidão, deve ser indicado que outras funções o trabalhador poderia desempenhar.
2 – Sempre que a repercussão do trabalho e das condições em que é prestado se revelem nocivos à saúde do trabalhador, o médico do trabalho deve, ainda, comunicar tal facto ao responsável pelos serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho e, bem assim, quando o seu estado de saúde o justifique, solicitar o acompanhamento pelo médico assistente do centro de saúde a que pertence ou por outro médico indicado pelo trabalhador.
3 – A ficha de aptidão não pode conter elementos que envolvam segredo profissional.
Artigo 19º
Dever de cooperação dos trabalhadores
1 – No cumprimento das obrigações previstas no artigo 15º do Decreto-Lei nº 441/91, de 14 de Novembro, devem os trabalhadores cooperar para que seja assegurada a segurança, higiene e saúde nos locais de trabalho, cabendo-lhes, em especial:
a) Tomar conhecimento da informação e participar na formação, proporcionadas pela empresa, sobre segurança, higiene e saúde no trabalho;
b) Comparecer aos exames médicos e realizar os testes que visem garantir a segurança e saúde no trabalho;
c) Prestar informações que permitam avaliar, no momento da admissão, a sua aptidão física e psíquica para o exercício das funções correspondentes à respectiva categoria profissional, bem como sobre factos ou circunstâncias que visem garantir a segurança e saúde dos trabalhadores, sendo reservada ao médico do trabalho a utilização da informação de natureza médica.
2 – Os trabalhadores que ocupem, na empresa, cargos de direcção, bem como os quadros técnicos, devem cooperar, de modo especial em relação aos serviços sob o seu enquadramento hierárquico e técnico, com os serviços de segurança, higiene e saúde no trabalho na execução das medidas de prevenção e de vigilância da saúde.
Os artigos 16º nº 1, corpo do nº 2 e nº 6, 17º nº 3 e 18º nº 1 resultam da redacção aprovada pela Lei nº 7/95, correspondendo os restantes à redacção originária do Decreto-Lei nº 26/94.
3 - Questões prévias
Em data posterior à da entrada do presente pedido e à das respostas apresentadas, foi publicado o Decreto-Lei nº 109/2000, de 30 de Junho, que alterou o Decreto-Lei nº 26/94, designadamente modificando a redacção do nº 2, alínea a), e do nº 6 do artigo 16º, bem como do nº 2 do artigo 17º e determinando, nos termos do seu artigo 6º, a republicação em anexo do Decreto-Lei nº 26/94, com as alterações então introduzidas e pelas decorrentes das Leis nºs 7/95 e 118/99 (esta, de 11 de Agosto, alterou a redacção do artigo
28º).
A referida republicação foi efectuada em anexo ao Decreto-Lei nº
109/2000, tendo os preceitos que continham normas impugnadas sido renumerados nos seguintes termos:
- O artigo 13º passou a ser o novo artigo 16º;
- O artigo 16º passou a ser o novo artigo 17º;
- O artigo 17º passou a ser o novo artigo 20º;
- O artigo 18º passou a ser o novo artigo 21º;
- O artigo 19º passou a ser o novo artigo 22º.
Neste contexto, colocam-se duas questões prévias relativas ao conhecimento do pedido quanto às normas impugnadas, uma quanto a todas elas e outra quanto às normas cuja redacção veio a ser alterada nos termos do Decreto-Lei nº 109/2000.
A primeira questão traduz-se em saber se a republicação do Decreto-Lei nº 26/94 e a renumeração dos seus preceitos significam uma 'novação' que obste ao conhecimento do pedido relativamente às normas renumeradas, por observância do princípio do pedido.
A segunda questão redunda em saber se a obediência ao mesmo princípio impede o conhecimento do pedido quanto às normas cuja redacção foi alterada.
A resposta à primeira questão é afoitamente negativa.
Com efeito, a republicação do Decreto-Lei nº 26/94 não significa que este diploma tenha sido revogado e substituído por outro – ele subsiste, enquanto tal, na ordem jurídica.
Esta circunstância marca uma clara diferença com a situação apreciada na Comissão Constitucional, no Parecer nº 22/82, in Pareceres da Comissão Constitucional, 20º vol., pág. 105) em que se considerou 'ultra petitum' – e, como tal, ilícito – o conhecimento das normas constantes de um diploma revogado, mas integralmente reproduzidas noutro entretanto publicado.
Por outro lado, a renumeração dos artigos do mesmo diploma não implica, só por si, uma alteração dos correspondentes preceitos em que se encontram vertidas as normas questionadas – a renumeração não determina que as mesmas normas passem 'a ter o seu suporte noutro preceito legal', o que, de acordo com certa jurisprudência do Tribunal Constitucional (Acórdão nº 57/95 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 30º vol. pág. 157), conduziria à impossibilidade de conhecer da constitucionalidade das novas normas.
Quanto à segunda questão, tem o Tribunal Constitucional entendido que 'a este Tribunal só lhe é permitido apreciar as normas impugnadas, constantes dos preceitos já revogados, e não a norma ora vigente no ordenamento jurídico, porque assim o impõe o princípio do pedido' (Acórdão nº 135/90 in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 15º vol., pág. 87).
Sendo assim, não pode o Tribunal Constitucional apreciar a constitucionalidade das normas constantes dos preceitos alterados pelo Decreto-Lei nº 109/2000, pelo menos nos casos em que das alterações introduzidas resulte 'uma modificação substancial das normas, dando origem, assim, a normas materialmente novas, ou seja, a normas que expressem uma diferente opção política do legislador' (cit. Acórdão nº 57/95), sem o que se desrespeitaria o princípio do pedido consagrado no artigo 51º nº 5 da LTC.
Ora, no caso dos autos, em todos os preceitos alterados ocorrem alterações substanciais, reveladoras de novas opções político-legislativas, ainda que apenas no que toca a questões de pormenor ou de importância secundária relativamente à opção político-legislativa fundamental que ilumina o diploma na sua globalidade.
Não pode, pois, o Tribunal Constitucional conhecer da constitucionalidade das normas constantes dos preceitos alterados, na sua nova redacção, em obediência ao princípio do pedido.
O que se deixa dito não resolve, só por si, a questão de saber se ao tribunal estaria vedado o conhecimento das mesmas normas, na sua redacção originária, vigente a data do pedido.
É que o Tribunal Constitucional tem sempre entendido que a revogação de uma norma não impede, só por si, a apreciação da sua eventual inconstitucionalidade, desde que mantenha uma utilidade relevante nesse conhecimento.
A este propósito escreveu-se no Acórdão nº 31/99 in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 42º vol., pág. 7:
'Segundo uma jurisprudência constante, este Tribunal tem decidido que a revogação da norma que constitui objecto do pedido não é bastante para, de per si, obstar à declaração da sua inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, pois, operando essa declaração, em princípio 'ex tunc', produz efeitos que retroagem à data da entrada em vigor da norma (cfr., por último acórdão nº
188/94, Diário da República, II, nº 116, de 19 de maio de 1994, p. 4956 ss.).
Haverá, por isso, interesse na emissão de tal declaração sempre que ela seja indispensável para eliminar os efeitos reduzidos pelo normativo questionado durante o tempo em que vigorou. Há-de, no entanto, 'tratar-se de um interesse com conteúdo prático apreciável, pois, sendo razoável que se observe aqui um princípio de adequação e proporcionalidade, seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta, como é a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade para eliminar efeitos eventualmente produzidos que sejam constitucionalmente pouco relevantes e possam facilmente ser removidos de outro modo' (cfr., por todos, o acórdão nº
465/91, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992, p.
3112 ss.).
A emissão da declaração de inconstitucionalidade já, porém, não se justifica, se não houver um interesse jurídico relevante – um interesse prático apreciável – no julgamento do pedido. É, inter alia, o que sucede quando concorram razões de equidade ou de segurança jurídica que aconselhem a que se ressalvem os efeitos entretanto produzidos pela norma revogada, se acaso ela for inconstitucional. Sendo 'visível a priori que o Tribunal Constitucional iria, ele próprio, esvaziar de qualquer sentido útil a declaração de inconstitucionalidade que viesse eventualmente a proferir, bem se justifica que conclua desde logo o Tribunal pela inutilidade superveniente de uma decisão de mérito' (cfr. acórdão nº 319/89, Diário da República, II, nº 146, de 28 de Junho de 1989, p. 6388 ss). Ou, nos termos do acórdão nº 233/88 (Diário da República, II, nº 293, de 21 de Dezembro de 1988, p. 1202 ss): 'seria de todo irrazoável e inadequado ir apreciar a constitucionalidade de normas quando de antemão se sabe que, no caso de se vir a concluir pela sua ilegitimidade constitucional, o Tribunal não deixaria que a declaração de inconstitucionalidade produzisse o
único efeito útil que, na hipótese, era susceptível de produzir'.
Ora, no caso em apreço, a natureza das normas contidas nos artigos com a redacção alterada, atinentes a um número certamente muito elevado de situações não controvertidas que poderiam vir a ser repostas em causa na eventualidade de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, conduziria certamente o Tribunal a limitar os efeitos daquela declaração por razões de segurança jurídica, tanto mais que, para eventuais casos controvertidos, sempre subsistiriam os meios jurisdicionais e a correspondente fiscalização concreta da constitucionalidade.
Pelo exposto, o Tribunal não conhecerá da constitucionalidade das normas ínsitas nos artigos 16º, nºs 2, alínea a) e 6 e 17º, nº 2 do Decreto-Lei nº 26/94.
4 - A questão da inconstitucionalidade orgânica
Entende o Tribunal que o requerente imputa o vício de inconstitucionalidade orgânica às normas impugnadas do Decreto-Lei nº 26/94 que a Lei nº 7/95 'deixou perfeitamente incólumes'; seria, de facto, absurdo interpretar a arguição de inconstitucionalidade, por carência de credencial parlamentar, reportada a normas que a Assembleia da República veio a aprovar nos termos daquela Lei.
Excluída que foi a norma ínsita no artigo 17º, nº 2, caberá, pois, averiguar, se padecem de inconstitucionalidade orgânica as normas constantes dos artigos 16º, nº 5, 17º, nº 1 e 19º.
A este propósito, as teses que se confrontam assentam no entendimento de as citadas normas integrarem matéria de direitos, liberdades e garantias, (a do requerente) ou no de que elas são antes matéria de direitos sociais (a do Primeiro-Ministro).
Certo é que, não se suscitando dúvidas de que a matéria respeitante
à segurança, higiene e saúde no trabalho se inclui no âmbito dos direitos sociais, bem pode suceder que alguma ou algumas das normas do Decreto-Lei nº
26/94 que regem aquela matéria contendam com o regime de determinados direitos, liberdades e garantias.
Mas, antes do mais, importa determinar o relevo que, neste campo, se deve conferir ao facto de o Decreto-Lei nº 26/94 ter sido alterado pela Lei nº
7/95, no quadro de um processo ratificativo então previsto no artigo 172º da Constituição.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre os efeitos da aprovação de uma lei de emendas, naquele quadro, ou seja, no quadro jurídico-constitucional anterior às alterações introduzidas pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro que determinaram a actual redacção do actual artigo 169º da CRP.
Fê-lo nos Acórdãos nºs 415/89 e 786/96 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 13º vol., tomo I, pág. 507 e 34º vol., pág. 23, respectivamente.
No primeiro, depois de se citar as diversas doutrinas defendidas sobre o estatuto da ratificação de decretos-leis (na versão originária da Constituição) na perspectiva do efeito da ratificação expressa de decretos-leis organicamente inconstitucionais por invasão governamental das matérias de exclusiva competência da Assembleia da República (Rui Machete, 'Ratificação de decretos-leis organicamente inconstitucionais' in Estudos sobre a Constituição, vol. I, pp. 281 e segs, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 1980, pp. 347/348, Jorge Miranda, 'A ratificação no direito constitucional português' in Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 547 e segs., Luís Nunes de Almeida, 'O problema da ratificação parlamentar de decretos-leis organicamente inconstitucionais' in Estudos sobre a Constituição, vol. III, pp. 619 e segs.), bem como a jurisprudência produzida quer pela Comissão Constitucional (Parecer nº 7/79, in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 7º, p. 308) quer pelo Tribunal Constitucional (Acórdãos nºs
174/87 e 266/87 in Diário da República II Série, de 14 de Julho de 1987 e I Série, de 28 de Agosto de 1987, respectivamente) e de referidas as profundas alterações introduzidas nos artigos 172º e 165º alínea c) da Constituição, com a revisão constitucional de 1982 – designadamente o facto de ter deixado de existir um acto positivo de ratificação, pois apenas se passou a prever a recusa de ratificação e a alteração do decreto-lei – dando lugar a uma orientação doutrinal dominante no sentido da não convalidação de decretos-leis organicamente inconstitucionais (Gomes Canotilho 'Direito Constitucional', 4ª ed. p. 654, Jorge Miranda 'Funções, Órgãos e Actos do Estado', pp. 231 /232, António Nadais, António Vitorino e Vitalino Canas 'Constituição da República Portuguesa', p. 203, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit. p. 222 e Jorge Simão 'Da ratificação dos Decretos-Leis', p. 32), escreveu-se:
'Não se afigura indispensável para a solução do caso dos autos resolver expressamente questões como a de saber se, face ao texto constitucional saído da revisão de 1982, ainda se pode falar de ratificação expressa, ou, até, se no caso de ser aprovada uma lei de alteração ao decreto-lei ratificando, tal lei tem como efeito, genericamente, inviabilizar que, para o futuro possa ser invocada a eventual inconstitucionalidade orgânica de qualquer das suas normas.
Na verdade, ainda que se admita que a figura da ratificação expressa deixou de ter assento constitucional – como parece resultar do que se escreveu no citado Acórdão nº 266/87 – e que a mera aprovação de uma lei de alterações, na sequência de um processo desencadeado ao abrigo do artigo 172º da Constituição, não pode ter como efeito impedir a invocação, a partir da entrada em vigor dessa lei, de eventuais inconstitucionalidades orgânicas que afectassem originariamente normas do decreto-lei ratificando, a questão não fica inteiramente resolvida para todos os casos.
Com efeito, sempre será necessário ressalvar, pelo menos, a hipótese de a lei de alterações reproduzir as normas organicamente inconstitucionais do decreto-lei submetido à sua apreciação. Em tal caso, é inegável que a Assembleia da República assume ou adopta tais normas como suas ao mantê-las inalteradas de forma expressa e inequívoca. E, assim sendo, tais normas não podem mais ser arguidas de organicamente inconstitucionais, até porque se verifica, quanto a elas, uma novação da respectiva fonte.
Mas, para além de tais normas expressamente reproduzidas na lei de alteração, não serão igualmente de ressalvar aquelas normas que, de forma implícita, a Assembleia da República não pode ter deixado de querer manter inalteradas, porquanto constituem um pressuposto logicamente necessário e indispensável de todas as restantes normas constantes do decreto-lei originário e da própria lei de alteração ?
A resposta a esta questão parece dever ser claramente afirmativa.
Na verdade, admita-se que se deve entender que, com a lei de alteração, se não produz, em princípio, qualquer confirmação, sanação, convalidação ou conversão das normas do decreto-lei que não hajam sido objecto de transposição para aquela lei.
Ainda assim, porém, se há-de reconhecer que seria manifestamente absurdo que, no caso de decreto-lei cuja própria existência se centra numa determinada norma, relativamente à qual todas as restantes são puramente acessórias ou instrumentais, essa mesma norma – essencial – pudesse vir a ser questionada do ponto de vista da sua constitucionalidade orgânica, depois de a Assembleia da República, embora a não tivesse expressamente reproduzido na referida lei de alteração, a havia implicitamente assumido como norma sua, manifestando inequívoca vontade política de a manter na ordem jurídica.
Assim sendo, não se vê como se possa sustentar que seja possível continuar a invocar a inconstitucionalidade orgânica de uma tal norma depois da entrada em vigor da lei de alteração. Essa tese só poderia, com efeito, assentar em argumentos de puro formalismo jurídico, inteiramente artificial e completamente desligado da razão de ser da atribuição constitucional de uma reserva de competência legislativa ao Parlamento: é que, por essa via, se iria contrariar frontalmente a vontade política desse mesmo Parlamento, já inequivocamente manifestada.'
Por seu turno, no Acórdão nº 786/96, depois de se sustentar que, após a revisão constitucional de 1982, 'a não recusa de ratificação não pode eliminar retroactivamente os vícios de inconstitucionalidade (orgânica)' e que
'a vontade política presente na não recusa de ratificação também não se confunde com uma vontade dirigida à situação em que juridicamente se encontre o decreto-lei e que possa precludir, por esse motivo, a intervenção fiscalizadora do Tribunal Constitucional', escreveu-se:
'19 – Reconhece-se, todavia, que tais argumentos válidos, em geral, para a mera não recusa de ratificação, não têm relevância absoluta num caso em que foram introduzidas alterações no diploma e em que foram rejeitadas propostas de alteração relativamente às normas cuja constitucionalidade orgânica é questionada. Em tal caso, foi desencadeado um processo legislativo autónomo, exigente nos respectivos pressupostos (de iniciativa de pelo menos dez Deputados) e que veio a culminar com uma nova lei. Embora se trate de um processo legislativo específico, destinado a produzir alterações, haverá, quanto
às normas objecto de projecto de propostas de alteração, mas não alteradas, uma decisão positiva da Assembleia da República ou, noutros termos, uma assunção da anterior intenção legislativa (cf. Jorge Miranda, ob. cit. p. 520, que, apesar de rejeitar valor confirmativo à não recusa de ratificação, o não exclui quanto
às normas objecto de propostas de alteração).
Ora, na situação que se analisa, não só houve a aprovação de emendas ao diploma como foram expressamente rejeitadas propostas de alteração da norma agora impugnada. Consequentemente, o argumento da necessidade de preservação da função essencial do artigo 168º da Constituição e da delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental deixa de ser pertinente.
A possibilidade, efectivamente utilizada, de uma discussão na especialidade das normas impugnadas e da sua reafirmação num novo processo legislativo assegura a iniciativa parlamentar e ilustra uma verdadeira vontade legislativa. Através do uso de tal faculdade, a não recusa de ratificação não se esgota numa vontade política, assumindo-se como verdadeira intenção legislativa.
Assim, embora num plano lógico-formal seja questionável qualquer superação da inconstitucionalidade orgânica por esta assunção legislativa
(porque, na realidade, também a recusa da ratificação apenas faz cessar a vigência do diploma após a sua publicação) e não se possa atribuir a esta vontade legislativa uma eficácia sanatória ou uma supressão retroactiva da inconstitucionalidade, também é verdade que a justificação da invocação da inconstitucionalidade orgânica, num plano funcional, não se verifica.
É certo que não há paralelismo absoluto entre o significado da confirmação de actos anuláveis e esta situação (isto é, a da não recusa da ratificação acompanhada da rejeição de propostas de alteração), porque, aqui o princípio subjacente não é, como no direito civil, a pura realização do interesse concreto de quem pode arguir a anulabilidade, mas o valor objectivo da preservação da distribuição da competência legislativa entre órgãos autónomos do Estado, como emanação da separação dos poderes e do sistema do controlo democrático dos poderes. Todavia, a vontade positiva manifestada após a rejeição das propostas de alteração, inserida num específico processo legislativo, revela que foi assegurado o sistema de controlo democrático inerente à delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental. Assim, a declaração de inconstitucionaliodade orgânica do diploma não se justificaria para o cumprimento da função de controlo parlamentar da decisão legislativa, função já plenamente cumprida pelo processo de alteração do diploma, nos termos do artigo 172º nº 2 da Constituição. Deste modo, conclui-se que a inconstitucionalidade orgânica de um diploma, a que não foi recusada a ratificação, após discussão de propostas de alteração, não é pertinentemente invocável, não sendo exigível pela função de preservação da delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental.'
Da jurisprudência transcrita – que se não vê razão para inflectir e aqui se reitera – retira-se que, tendo em conta 'a função de controlo parlamentar da decisão legislativa', a aprovação de uma lei de emendas, ao abrigo do antigo artigo 172º da Constituição, tem como efeito a ininvocabilidade futura da inconstitucionalidade orgânica de, pelo menos, as seguintes normas constantes do decreto-lei alterado por essa mesma lei de emendas:
a) As normas reproduzidas na lei parlamentar; b) As normas que a Assembleia da República não pode ter deixado de querer manter inalteradas, porquanto constituem um pressuposto logicamente necessário e indispensável de todas as restantes normas contidas no decreto-lei originário e na própria lei de alteração; c) As normas que, durante o especial processo legislativo parlamentar, foram objecto de propostas de alteração rejeitadas.
À luz deste enquadramento jurídico, vejamos, agora, o que ocorreu relativamente às normas impugnadas.
A norma do artigo 17º, nº 1 foi objecto de propostas de alteração apresentadas por Deputados do Partido Socialista e do Partido Comunista Português (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-B, de 19 de Julho de
1994, pp. 170 e 174 e separata nº 23/VI do Diário da Assembleia da República, de
12 de Agosto de 1994, dedicada ao Regime de Organização e Funcionamento das Actividades de Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho – Propostas de alteração apresentadas pelo PSD, PS e PCP ao Decreto-Lei nº 26/94, de 1 de Fevereiro, no seguimento do pedido de ratificação nº 115/VI apresentado pelo PS).
Tais propostas de alteração foram discutidas e rejeitadas na votação na especialidade efectuada na competente comissão parlamentar em 2 de Novembro de 1994 (cfr. nº 15 do Relatório da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família, publicado no Diário da Assembleia da República, II Série-B nº 4, de 11 de Novembro de 1994).
Deste modo e de acordo com a tese adoptada, entende-se que já não é invocável a inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 17º nº 1 do Decreto-Lei nº 26/94.
A situação é diversa quanto à norma do artigo 16º nº 5.
O artigo 16º do Decreto-Lei nº 26/94 foi um dos que mereceu maior número de propostas de alteração (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-B, de 19 de Julho de 1994, págs. 1170 e 1173), não deixando os proponentes, depois de parcialmente vencidos na comissão especializada, de requerer a avocação pelo Plenário da votação na especialidade (cfr. Diário da Assembleia da República, I Série, nº 22, de 15 de Dezembro de 1994, págs,
912/913.
As propostas de alteração traduziam-se em nova redacção dos nºs 2, alínea c), 3 e 4 e na introdução de novos nºs 6,7, 8 e 9 (propostas do PS e PCP).
O nº 5 do artigo em causa não foi objecto de qualquer proposta de alteração, constando do texto entregue pelo PS, no artigo 16º, nº 5, a indicação
(igual) e no texto apresentado pelo PCP o preceito é substituído por um ponteado.
Ora, neste contexto, é evidente que foi assegurada a possibilidade de iniciativa parlamentar quanto à alteração do preceito em causa e que se revelou uma clara vontade política dos subscritores das propostas de alteração de manter inalterado o nº 5 do artigo 16º, o que permite concluir no sentido de que essa imutabilidade traduz – para usar a linguagem do Acórdão nº 786/96 – a
'verdadeira intenção legislativa' da Assembleia da República, que acabou por aprovar alterações à epígrafe e aos nºs 1, 2 e 3 do mesmo artigo, ao qual também acrescentou um nº 6.
Verifica-se, assim, que também quanto a esta norma se efectivou, de um ponto de vista substancial, 'a função de controlo parlamentar da decisão legislativa', pelo que constituiria puro formalismo, claramente contraditório com a razão de ser da existência constitucional de uma reserva legislativa parlamentar e do instituto previsto no antigo artigo 172º da Constituição – cuja conjugação inculca o intuito de assegurar que não possam subsistir opções político-legislativas contrárias à vontade da Assembleia da República - vir eventualmente a declarar a sua inconstitucionalidade orgânica.
Não é, pois, já invocável a inconstitucionalidade orgânica da norma constante do artigo 16º nº 5 do Decreto-Lei nº 26/94
Por último, quanto ao artigo 19º, assinala-se que o preceito foi mantido inalterado pela Lei nº 7/95, tendo sido rejeitadas as propostas de alteração formuladas pelo PS e pelo PCP (Relatório da Comissão... cit., nº 17) que, no entanto, não incidiam sobre os preceitos já existentes naquele artigo – a proposta do PS traduzia-se no aditamento de uma nova alínea d) ao nº 1 do artigo 19º e a do PCP corporizava-se no aditamento de um novo nº 3 ao mesmo artigo (cfr. Diário da Assembleia da República, II Série-B, nº 34, de 19 de Julho de 1994, págs. 170 e 173); nos textos apresentados quer pelo PS, quer pelo PCP um ponteado substituía os preceitos vigentes do artigo 19º.
Coloca-se aqui, também, a questão de saber se a 'verdadeira intenção legislativa' da Assembleia da República abrangia a manutenção em vigor dos preceitos do artigo 19º que não haviam merecido qualquer proposta de alteração.
A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
Isto, em primeiro lugar, porque as propostas de alteração do PS e do PCP inculcavam, com certa segurança, a pretensão de manter incólumes os preceitos em causa, como se revela pela apontada circunstância de estes se encontrarem substituídos nos textos respectivos por um ponteado.
Depois, impõe-se relevar o facto de na comissão especializada se ter estabelecido 'um consenso no sentido de serem admitidas propostas de alteração a todos os artigos do Decreto-Lei nº 26/94', no âmbito do processo do processo de ratificação (cfr. Relatório da Comissão de Trabalho, Segurança Social e Família, publicado no referido Diário da Assembleia da República II Série-B, pág. 166). Esta circunstância traduziu um significativo alargamento em relação ao que se estabelece no nº 2 do artigo 208º do Regimento da Assembleia da República, segundo o qual 'as propostas de alteração podem ser apresentadas até ao termo da discussão na generalidade, sem prejuízo da apresentação de novas propostas relativas aos artigos objecto de discussão na generalidade', já que, ainda que esta norma regimental fosse restritivamente interpretada, de forma a excluir a apresentação de novas propostas referentes ao artigo 19º, depois da discussão na generalidade efectuada na reunião plenária de 6 de Maio de 1994 (cfr. Diário da Assembleia da República, I Série nº 69, de 7 de Maio de 1994, págs. 2265 e segs.) sempre tal seria posteriormente possível, em função do consenso in casu obtido.
Não é, pois, já invocável a inconstitucionalidade orgânica das normas constantes do artigo 19º do Decreto-Lei nº 26/94, depois da aprovação da Lei nº 7/95.
Se não é invocável, depois da aprovação da Lei nº 7/95, a inconstitucionalidade orgânica de todas as normas em causa, também o Tribunal não deve tomar – nem toma - conhecimento desse invocado vício até à entrada em vigor daquela Lei.
Com efeito, tais normas respeitam a um número seguramente muito elevado de situações não controvertidas, que poderiam vir a ser repostas em causa na eventualidade de uma declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, pelo que certamente o Tribunal limitaria, por razões de segurança jurídica, os efeitos dessa declaração, tanto mais que, para eventuais casos controvertidos, sempre subsistiriam os meios jurisdicionais e a correspondente fiscalização concreta da constitucionalidade.
5 - A questão da inconstitucionalidade formal
Como se deixou relatado, o requerente entende que as normas impugnadas integram o conceito de legislação do trabalho. Posição oposta sustenta o Primeiro-Ministro que só subsidiariamente refere a audição do Conselho de Concertação Social.
Considerando que a identificação de várias matérias nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 16/79, de 26 de Maio, referentes à participação das organizações de trabalhadores na elaboração da legislação do trabalho tem carácter meramente exemplificativo e que, tendo o conceito de legislação do trabalho assento constitucional, não está o intérprete e aplicador da Constituição vinculado à definição legal, tem o Tribunal Constitucional produzido larga jurisprudência sobre a matéria, tanto mais justificada quanto a Constituição não contém uma definição daquele conceito.
Escreveu-se, nomeadamente, no Acórdão nº 430/93 in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 25º vol., págs 285 e 297:
'(...) São sabidas as dificuldades que, tanto na doutrina como na jurisprudência, tem levantado um tal conceito de legislação de trabalho (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, 'Constituição da República Portuguesa Anotada', vol. 1º, 2ª edição, 300, Barros Moura, 'Direito do Trabalho – Notas de Estudo',
189 a 197 e 'Compilação de Direito de Trabalho Sistematizada e Anotada', 39 e
40, Monteiro Fernandes, 'Noções Fundamentais de Direito do Trabalho', 1º vol.,
28 e 29, Parecer da Procuradoria-Geral da República nº 219/78, publicado no Boletim do Ministério da Justiça', nº 286, 147 e seguintes e, entre outros, os Acórdãos deste tribunal números 31/84, no 'Diário da República', 1ª Série, de 17 de Abril de 1984, 117/86, idem, idem, de 19 de Maio de 1986, 451/87, idem, idem, de 14 de Dezembro de 1987, 15/88, idem, idem, de 3 de Fevereiro de 1988, 107/88, idem, idem, de 21 de Junho de 1988, 201/89, idem, 2ª Série, de 21 de Janeiro de
1981, 262/90, idem, 1ª Série, de 20 de Dezembro de 1990, e 64/91, idem, idem, de
11 de Abril de 1991).
.....................................................................................
(...) A Lei nº 16/79, de 26 de Maio, que veio a reger sobre a participação das organizações de trabalhadores na elaboração da legislação de trabalho, deu, no seu artº 2º, uma noção do que ela seja, incluindo no seu
âmbito a normação 'que vise regular as relações individuais e colectivas de trabalho, bem como os direitos dos trabalhadores, enquanto tais, e as suas organizações representativas' (corpo do nº 1) e 'o processo de aprovação para ratificação das convenções da Organização Internacional do Trabalho' (nº 2), indicando, exemplificativamente, que aquela normação abrangia o 'Contrato individual de trabalho', as 'Relações colectivas de trabalho', 'as 'Comissões de trabalhadores, respectivas comissões coordenadoras e seus direitos', as
'Associações sindicais e direitos sindicais', o 'Exercício do direito à greve', o 'Salário mínimo e máximo nacional e horário nacional de trabalho', a 'Formação profissional' e os 'Acidentes de trabalho e doenças profissionais' (alíneas a) a h) do nº 1).
Poder-se-á, face á tentativa de definição ensaiada no preceito do artº 2º da Lei nº 16/79 (definição não esgotante, além do mais pelo facto de no nº 1 se fazer tão só uma enumeração meramente exemplificativa de matérias), dizer desde logo que, inquestionavelmente, se insere na legislação de trabalho tudo o que respeite a regulamentação de relações individuais e colectivas de trabalho e dos direitos dos trabalhadores, quer na vertente atribuidora de
'direitos, liberdades e garantias', quer na vertente de 'direitos económicos, sociais e culturais' (cfr., de entre o mais, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., e o já referido Acórdão nº 107/88; tenha-se, ainda, em conta o que se normatiza no Decreto-Lei nº 45-A/84).'
Nesta orientação e tendo presente o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 59º da Constituição, entende-se que as normas impugnadas se integram no conceito constitucional de 'legislação do trabalho'.
Mas se é assim, não pode, contudo, entender-se que a Lei nº 7/95 não tenha sido precedida de regular audição das comissões de trabalhadores e das associações sindicais, pressuposto de que parte o requerente na alegação de inconstitucionalidade.
Com efeito, tal audição, determinada pela comissão especializada
(cfr. Relatório..., Diário da Assembleia da República, II Série-B, nº 34, de 19 de Julho de 1994, pág. 165), foi cumprida através da publicação (cfr. citada Separata nº 23/VI do Diário da Assembleia da República, de 12 de Agosto de 1994) do pedido de ratificação nº 115/VI, referente ao Decreto-Lei nº 26/94, de todas as propostas de alteração a esse diploma, bem como do próprio Decreto-Lei nº
26/94, na sua integralidade, tudo isto introduzido por um anúncio do seguinte teor:
ÀS COMISSÕES DE TRABALHADORES E SINDICATOS
Nos termos e para os efeitos dos artigos 54º, nº 5, alínea d), e 56º nº 2, alínea a) da Constituição, do artigo 145º do Regimento da Assembleia da República e dos artigos 3º, 4º, 5º e 6º da Lei nº 16/79, de 26 de Maio
(participação das organizações de trabalhadores na elaboração da legislação do trabalho), avisam-se todas as comissões de trabalhadores e sindicatos de que se encontram para apreciação, no prazo abaixo indicado, as propostas seguintes:
Propostas de alteração apresentadas pelo PSD, PS e PCP ao Decreto-Lei nº 26/94, de 1 de Fevereiro (estabelece o regime de organização e funcionamento das actividades de segurança, higiene e saúde no trabalho),
'ratificação nº 115/VI, da iniciativa do PS', de 12 de Agosto a 13 de Setembro de 1994.
As sugestões e pareceres deverão ser enviados até à data limite acima indicada, em carta dirigida à Comissão Parlamentar de Trabalho, Segurança Social e Família, Assembleia da República, Palácio de S. Bento, 1296 Lisboa Codex. Dentro do mesmo prazo, os sindicatos e as comissões de trabalhadores poderão solicitar audiências à Comissão Parlamentar de Trabalho, Segurança Social e Família, devendo fazê-lo por escrito, com indicação do assunto e fundamento do pedido. A COMISSÃO PARLAMENTAR DE TRABALHO, SEGURANÇA SOCIAL E FAMILIA
Estando, deste modo, comprovada a participação das organizações representativas dos trabalhadores na elaboração da Lei nº 7/95, é irrelevante o facto de tal circunstância se não encontrar mencionada no intróito do mesmo diploma legal: a menção (ou a sua ausência) não significa mais do que uma presunção, ilidível por prova em contrário, como no caso acontece.
Ficando, assim, afastada a inconstitucionalidade formal das normas impugnadas que vieram a ser alteradas pela Lei nº 7/95 – as que constam dos artigos 16º nºs
1, 2 (corpo), 3 e 6, 1º nº 3 e 18º nº 1 – vejamos o que se passa com aquelas que se mantiveram incólumes.
Ora, desde logo, o facto de a sujeição a discussão pública das propostas de alteração do Decreto-Lei nº 26/94, no quadro do processo de 'ratificação' de que foi objecto, ter sido efectuada através da publicação não só daquelas referidas propostas, mas também do próprio decreto-lei em causa, na sua integralidade, justifica que se pergunte se, a partir da publicação da Lei nº 7/95, ainda fazia sentido questionar a inconstitucionalidade formal das normas do diploma legislativo governamental, apesar de o convite à participação das organizações representativas dos trabalhadores se limitar expressamente a referir as
'propostas de alteração' ao diploma, e não este, na sua versão originária.
Decisivo, porém, para afastar o aludido vício de inconstitucionalidade, ou, com maior rigor, a sua invocabilidade actual, é o que ocorreu no âmbito do processo legislativo que culminou com a publicação do Decreto-Lei nº 109/2000, de 30 de Junho.
Com efeito, este diploma legal foi submetido à discussão pública, designadamente para cumprimento do dever de audição das comissões de trabalhadores e das associações sindicais, através da Separata do Boletim do Trabalho e Emprego nº
2, de 26 de Julho de 1999.
No artigo 5º desse decreto-lei, como já constava do projecto submetido à apreciação pública, dispõe-se que o texto do Decreto-Lei nº 26/94 seria republicado em anexo com as alterações decorrentes da Lei nº 7/95 e do novo diploma.
Não tendo sido publicado na referida Separata o texto integral do Decreto-Lei nº
26/94, certo é que a referência expressa à sua republicação integral abria a possibilidade de as organizações representativas dos trabalhadores se pronunciarem sobre ele, sugerindo as alterações que entendessem convenientes. Por outras palavras: chamadas a manifestar a sua opinião a propósito das alterações a introduzir no diploma em causa, cuja permanência em geral se reafirmava, as comissões de trabalhadores e as associações sindicais tiveram a oportunidade de propor a sua reformulação em termos diversos, inclusivamente no que se refere às suas opções fundamentais.
Assim, destinando-se a participação das organizações representativas dos trabalhadores na elaboração da legislação do trabalho a assegurar que estas possam 'influenciar os juízos políticos' e a 'decisão jurídica' do legislador
(cfr. Acórdão nº 64/91, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 18º vol., pág.
81), dúvidas não existem que, conjugando os processos legislativos que culminaram com a publicação da Lei nº 7/95 e do Decreto-Lei nº 109/2000, as comissões de trabalhadores e as associações sindicais foram já suficientemente auscultadas sobre a manutenção das soluções acolhidas pelo legislador no Decreto-Lei nº 26/94, podendo ter-se por alcançado o 'desiderato substantivo' da norma constitucional consagradora do direito de participação.
Há-de, pois, entender-se que, pelo menos a partir da publicação do Decreto-Lei nº 109/2000, já não é relevante a eventual inconstitucionalidade formal originária das normas impugnadas, pelo que ela não pode já ser invocada.
Subsistiria, contudo, a questão da inconstitucionalidade formal das mesmas normas anteriormente à publicação da Lei nº 7/95, ou do Decreto-Lei nº
109/2000.
Só que, uma vez mais, sendo elas atinentes a um número certamente muito elevado de situações não controvertidas que poderiam vir a ser repostas em causa na eventualidade de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, certamente o Tribunal viria a limitar os efeitos dessa declaração por razões de segurança jurídica, tanto mais que, para eventuais casos controvertidos, sempre subsistiriam os meios jurisdicionais e a correspondente fiscalização concreta da constitucionalidade.
Consequentemente, não se toma conhecimento dessa questão, por manifesta inutilidade.
6 - As questões de inconstitucionalidade material
Como se deixou relatado, o requerente questiona, na perspectiva da sua conformidade constitucional (constitucionalidade material), algumas das soluções do diploma em causa. Reportam-se elas a três pontos relativamente bem determinados, a saber:
A) A existência de 'um sistema de indagação inquisitória' e
'coerciva' (cfr. artigo 19º) do estado global de saúde de todos os trabalhadores, criando um dever, potencialmente ilimitado, de sujeição à realização de testes ou exames médicos e levando à devassa sistemática do estado de saúde dos trabalhadores ao ponto de pretender quebrar a própria confidencialidade de dados à guarda do médico assistente, ao instituir a
'cooperação necessária' deste naquela sistemática e global devassa da vida privada pelo 'médico do trabalho', o que implicaria, em violação do disposto no artigo 18º, nºs 2 e 3 da Constituição, uma 'restrição excessiva e desproporcionada' do direito à intimidade da vida privada consignado no artigo
26º da Lei Fundamental;
B) A 'criação, em cada empresa, de um verdadeiro banco de dados que engloba informações extremamente precisas e vastas relativamente ao estado global de saúde de cada trabalhador – sem que se preveja outra garantia que não seja a mera proclamação da 'confidencialidade' de tais dados', o que violaria o disposto no artigo 35º, nºs 1 a 7 da Constituição;
C) O facto de 'os resultados dos exames e testes clínicos' serem
'discricionariamente apreciados' pelo médico do trabalho e poderem 'conduzir a uma verdadeira 'inibição' do exercício da profissão', sendo certo que não existe
'qualquer mecanismo específico que permita ao trabalhador', caso pretenda reagir contra tal apreciação discricionária, 'fazer valer, com celeridade e efectividade os seus direitos fundamentais atingidos', o que constituiria violação do disposto no artigo 47º da Constituição.
Vejamos, sucessivamente, estas três questões.
I - A violação conjugada dos artigos 26º e 18º, nºs 2 e 3 da Constituição
O direito à reserva da intimidade da vida privada, entre outros direitos pessoais, está previsto no artigo 26º da Constituição.
A caracterização deste direito, à falta de uma definição legal do conceito de 'vida privada', foi feita no Acórdão nº 355/97 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 37º vol., págs. 7 e segs.), seguindo o que este Tribunal afirmara já nos Acórdãos nºs 128/92 e 319/95, in Diários da República, II Série, de 24 de Juho de 1992 e de 2 de Novembro de 1995, respectivamente, nos seguintes termos: 'o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular'.
O direito à intimidade tem sido igualmente entendido, na doutrina, como 'o direito que toda a pessoa tem a que permaneçam desconhecidos determinados aspectos da sua vida, assim com a controlar o conhecimento que terceiros tenham dela' (Lucrecio Rebollo Delgado, 'El derecho fundamental a la intimidad', Dykinson, 2000, pag. 94).
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira ('Constituição da República Portuguesa Anotada', 3ª ed. revista, Coimbra, 1993, nota VIII ao artigo 26º), este direito 'analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e
(b) o direito a que ninguém divulgue as informações a que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem'.
Os termos em que o requerente fundamenta a invocação do vício de inconstitucionalidade em causa respeitam, precisamente, a cada um destes 'dois direitos menores': verificar-se-ia, de forma injustificada e desproporcionada, por um lado, uma intromissão na esfera privada e, por outro, uma revelação de informações relativas a essa esfera.
A já referida 'indagação inquisitória e 'coerciva' (cfr. artigo 19º) do estado de saúde global de saúde de todos os trabalhadores' concretizaria, para o requerente, a intromissão na esfera privada.
Reconhece-se, com efeito, que 'em princípio, o direito à reserva da intimidade da vida privada incluirá (...) também um dever de respeitar o segredo, isto é, a proibição de acções com o objectivo de tomar conhecimento ou de obter informações sobre a vida privada de outrem, que devem ser consideradas intrusivas', incluindo obviamente os 'elementos respeitantes à saúde'(Paulo Mota Pinto, 'A Protecção da Vida Privada e a Constituição', in Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, vol. LXXVI, págs. 153 e segs.)
Mas este direito não é absoluto em todos os casos e relativamente a todos os domínios. Como sublinha Paulo Mota Pinto ('O Direito à Reserva sobre a Intimidade da Vida Privada', in Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, vol. LXIX, págs. 508/509) 'podemos verificar que a 'infra-estrutura' teleológica do problema da tutela da privacy é caracterizada por uma fundamental contraposição: de um lado, o interesse do indivíduo na sua privacidade, isto é, em subtrair-se à atenção dos outros, em impedir o acesso a si próprio ou em obstar à tomada de conhecimento ou à divulgação de informação pessoal
(interesses estes que, resumindo, poderíamos dizer serem os interesses em evitar a intromissão dos outros na esfera privada e em impedir a revelação da informação pertencente a essa esfera); de outro lado, fundamentalmente o interesse em conhecer e em divulgar a informação conhecida, além do mais raro em ter acesso ou controlar os movimentos do indivíduo - interesses que ganharão maior peso se forem também interesses públicos'.
Ora, deve, desde logo, assinalar-se que a previsão legal do dever de sujeição à realização de testes ou exames médicos se não traduz na submissão fisicamente forçada à realização de testes ou exames médicos, o que poderia configurar um conflito com os direitos à liberdade e à integridade física ( cfr. Daniela Vigoni, 'Corte Costituzionale, Prelievo Ematico Coattivo e Test del DNA', in Revista di Diritto e Procedura Penale, Ano XXXIX, Fasc. 4, Out/Dezº
1996, pág. 1022).
Há, no entanto, que reconhecer que, muito embora a efectivação de tais testes ou exames pressuponha a aceitação do trabalhador, a verdade é que a respectiva realização constitui, em certos casos, um ónus relativamente à obtenção do emprego e, noutros casos, um verdadeiro dever jurídico de que pode depender a própria manutenção da relação laboral.
De facto, o artigo 22º do Decreto-Lei nº 26/94 não só determina que os trabalhadores devem 'comparecer aos exames médicos a realizar os testes que visem garantir a segurança e saúde no trabalho', como remete para o Decreto-Lei nº 441/91, o qual estabelece, no artigo 15º nº 3, que 'as medidas e actividades relativas à segurança, higiene e saúde no trabalho não implicam encargos financeiros para os trabalhadores, sem prejuízo da responsabilidade disciplinar e civil emergente do incumprimento culposo das respectivas obrigações'. Assinale-se, a propósito, que, em França, onde também existe a obrigação para os trabalhadores de se submeterem a exames periódicos no âmbito da medicina do trabalho (Jean-Marie Auby, 'Le droit de la santé', Thémis, PUF, págs. 237/240) tem sido entendido que 'a recusa do assalariado em submeter-se a uma consulta médica regulamentar constitui uma causa real e séria de despedimento, em função do carácter imperativo das disposições legais e regulamentares que regem a medicina do trabalho' (decisão da Cassation Sociale, de 29/05/86; Jacques Robert e Jean Duffat., 'Droits de l’Homme et Libertés Fondamentales', 7ª ed., Montchrestien, págs. 207 e 364).
De todo o modo, mesmo a submissão juridicamente obrigatória a exames ou testes clínicos – constituindo uma intromissão na vida privada, na medida em que aqueles se destinam a recolher dados relativos à saúde, os quais integram necessariamente dados relativos à vida privada (cfr. Acórdão nº 355/97, cit., onde se afirmou expressamente que 'os dados de saúde integram a categoria de dados relativos à vida privada (...) fazem parte da vida privada de cada um') – pode, em certos casos e condições, ser tida como admissível, tendo em conta a necessidade de harmonização do direito à intimidade da vida privada com outros direitos ou interesses legítimos constitucionalmente reconhecidos (v.g., a protecção da saúde pública ou a realização da justiça). Assim o entendeu já este Tribunal, no Acórdão nº 319/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 31º vol., pág. 501, no que concerne à constitucionalidade dos testes de alcoolemia efectuados a condutores de veículos, onde se escreveu:
'O direito à reserva da intimidade da vida privada – que é o direito de cada um ver protegido o espaço interior da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias; o do direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular (cf., sobre isto, o citado acórdão nº 128/92) – acaba, naturalmente, por ser atingido pelo exame em causa. No entanto, a norma sub judicio não viola o artigo 26º nº 1 da Constituição, que o consagra.
De facto, não se trata, com o teste da pesquisa de álcool, de devassar os hábitos da pessoa do condutor no tocante à ingestão de bebidas alcoólicas, sim e tão-só (recorda-se) de recolher prova perecível e de prevenir a violação de bens jurídicos valiosos (entre outros, a vida e a integridade física), que uma condução sob a influência do álcool pode causar – o que, há-de convir-se, tem relevo bastante para justificar, constitucionalmente, esta constrição do direito à intimidade do condutor.'
E de idêntico modo se entendeu no Acórdão nº 616/98 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 41º vol., págs. 263 e segs.), onde se considerou que, embora se devesse concluir que, nas acções de investigação de paternidade, existia um constrangimento do réu a submeter-se aos exames de sangue, tendo em conta os efeitos processuais de uma eventual recusa, mesmo assim tal constrangimento deveria ser tido como constitucionalmente admissível, quando confrontado e balanceado com os outros direitos fundamentais em presença.
Nesta mesma linha se tem orientado a jurisprudência da Comissão Europeia dos Direitos do Homem e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (cfr. Hanspeter Mock , 'Le droit au respect de la vie privée et familiale, du domicile et de la correspondance (art 8 CEDH) à l’aube du XXIe siècle' in Revue des droits de l’Homme, vol. 10, nº 7-10, 15/12/98, pág. 240; Louis Edmond Pettiti, Emmanuel Decaux e Henri Imbert, 'La Convention Européenne des Droits de l’Homme
– Commentaire article para article', Economica, pág. 343; Ireneu Cabral Barreto,
'A Convenção Europeia dos Direitos do Homem', 2ª ed., Coimbra, 1999, pág. 184). Assim, a CEDH, por exemplo, considerou admissíveis os exames obrigatórios de despistagem da tuberculose, como a prova da tubercolina e as radiografias ao tórax, por razões de saúde pública (Requête nº 10435/83, Roger Acmane et autres c/ Belgique), bem como a sujeição obrigatória de um notário a exame psiquiátrico, tendo em conta o interesse geral, face ao relevo dos actos notariais (Requête nº 8909/80, P.G. c/ République Fédérale d’Allemagne); e ainda a entrega obrigatória de urina para análise de despistagem de consumo de drogas, por parte de reclusos, considerando o interesse na prevenção criminal (Requête nº 21132/93, Theodorus Albert Ivo Peters c/ Pays Bas).
É, assim, claro que o direito à intimidade da vida privada pode ser limitado em resultado da sua harmonização com outros direitos fundamentais ou com outros interesses constitucionalmente protegidos, no respeito pelo princípio da proporcionalidade, em termos de se considerarem admissíveis, em certas circunstâncias e com certas finalidades, os exames médicos obrigatórios (cfr.
Ángel Gil Hernandez, 'Intervenciones Corporales y Derechos Fundamentales', Colex, 1995; e, no limite, a sentença de 23 de Maio de 1994 do Tribunal Constitucional italiano que declarou inconstitucional uma norma do programa de prevenção e luta contra o SIDA, na parte em que não previa exames de despistagem da seropositividade HIV para o exercício de actividades que comportam riscos para a saúde de terceiros (Raccolta Ufficiale delle Sentenze e Ordenanze della Corte Costituzionale, vol CXI, 1994, pág. 639), sentença que foi comentada por Nicola Recchia in Giurisprudenza Costituzionale, Ano XL, 1995, Fasc. 1, pág.
559).
Assim, no âmbito das relações laborais, tem-se por certo que o direito à protecção da saúde, a todos reconhecido no artigo 64º nº 1 da Constituição, bem como o dever de defender e promover a saúde, consignado no mesmo preceito constitucional, não podem deixar de credenciar suficientemente a obrigação para o trabalhador de se sujeitar, desde logo, aos exames médicos necessários e adequados para assegurar – tendo em conta a natureza e o modo de prestação do trabalho e sempre dentro de critérios de razoabilidade – que ele não representa um risco para terceiros: por exemplo, para minimizar os riscos de acidentes de trabalho de que outros trabalhadores ou o público possam vir a ser vítimas, em função de deficiente prestação por motivo de doença no exercício de uma actividade perigosa; ou para evitar situações de contágio para os restantes trabalhadores ou para terceiros, propiciadas pelo exercício da actividade profissional do trabalhador.
Impõe-se é que a obrigatoriedade dessa sujeição se não revele, pela natureza e finalidade do exame de saúde, como abusiva, discriminatória ou arbitrária.
Ora, deve-se ter presente que, nos termos da lei, o exame de saúde se destina exclusivamente a 'verificar a aptidão física e psíquica do trabalhador para o exercício da sua profissão, bem como a repercussão do trabalho e das suas condições na saúde do trabalhador' (artigo 19º, nº 1 do diploma em apreciação).
Reconhece-se que o fim a que os exames clínicos estão legalmente adstritos pode, na prática e em determinados casos, ser obstáculo flanqueável na detecção de situações patogénicas que nada tenham a ver com a aptidão física ou psíquica do trabalhador para o exercício actual da sua profissão, nem com os efeitos das condições do trabalho na saúde do trabalhador (um exame de sangue ou um exame radiológico são, como se sabe, meios de diagnóstico das mais diversas patologias).
De todo o modo, o médico do trabalho está vinculado, nos exames a que procede ou manda proceder, ao aludido objectivo legal, o que implica, necessariamente, que ele se confine a um exame limitado e perfeitamente balizado por aquele objectivo, devendo ater-se ao estritamente necessário, adequado e proporcionado à verificação de alterações na saúde do trabalhador causadas pelo exercício da sua actividade profissional e à determinação da aptidão ou inaptidão física ou psíquica do trabalhador para o exercício das funções correspondentes à respectiva categoria profissional, bem como ao seu estado de saúde presente (sobre questões conexas, cfr. Mariella Magnani, 'Diritti della persona e contratto di lavoro. L’esperienza italiana' in Quaderni di Diritto del Lavoro e delle Relazioni Industriali, Torino , 1994, págs 59-61; José João Abrantes, 'Contrat de travail et droits fondamentaux – Contribution à une dogmatique commune européenne, avec référence spéciale au droit allemand et au droit portugais', Recht der Arbeit und der sozialen Sicherheit, Band 14, Peter Lang; François Rigaux, 'La Protection de la Vie Privée et des Autres Biens de la Personnalité', Bruylant, Bruxelas e Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, Paris, 1900, págs. 505-508; e Joanne Lunn, 'Pre-Employment Health Screening, Discrimination Law – Concepts, Limitations and Justifications', ed. Janet Dine & Bob Watt, Longman, 1996, págs. 229-240).
Resta, porém, saber se é constitucionalmente admissível a obrigatoriedade de sujeição a um exame de saúde destinado a apurar 'a repercussão do trabalho e das suas condições na saúde do trabalhador', no interesse deste e mesmo que ele o não pretenda.
Na apreciação desta questão não se poderá deixar de ter em conta que a Constituição, na versão resultante da revisão de 1997, passou a dispor no artigo 59º, nº 1 alínea c), que os trabalhadores têm direito à 'prestação do trabalho em condições de higiene, segurança e saúde'.
A questão é, pois, a de saber se a obrigação do Estado de legislar no sentido de que a saúde dos trabalhadores seja devidamente protegida pode ir ao ponto de obrigar esses trabalhadores a exames médicos para defesa da sua própria saúde, mesmo quando eles o não pretendam – isto é, quando não estão já primacialmente em causa interesses públicos relevantes ou direitos fundamentais de terceiros. E isto, sendo certo que a própria directiva comunitária atinente à matéria – a Directiva 89/391/CEE, de 12 de Junho de 1989, relativa à aplicação de medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde dos trabalhadores no trabalho (publicada no Jornal Oficial das Comunidades Europeias, nº L 183/1, de 29 de Junho de 1989) – estabelece com clareza, no seu artigo 14º, que as 'medidas destinadas a assegurar a vigilância adequada da saúde dos trabalhadores em função dos riscos para a sua segurança e saúde no local de trabalho' (nº 1) 'serão de molde a permitir que, caso o deseje, cada trabalhador possa submeter-se a um controlo de saúde a intervalos regulares'.
Importa aqui sublinhar que a possibilidade de estabelecimento de um exame de saúde com carácter obrigatório pode não apenas conflituar com o direito
à protecção da vida privada (na medida que postula um acesso a informações sobre o estado de saúde) mas também com a própria liberdade geral de actuação.
Com efeito, há que ter presente que, após a revisão constitucional de 1997, o artigo 26º nº 1 da Constituição passou a consagrar expressamente o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, 'englobando a autonomia individual e a autodeterminação e assegurando a cada um a liberdade de traçar o seu próprio plano de vida' (Acórdão nº 288/98, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 40º vol., pág. 61), o que implica o reconhecimento da liberdade geral de acção, sendo certo que, nesta sua dimensão, o 'direito ao desenvolvimento da personalidade não protege, nomeadamente, apenas a liberdade de actuação, mas igualmente a liberdade de não actuar (não tutela, neste sentido, apenas a actividade, mas igualmente a passividade, com uma garantia não unidimensional de actuação, mas pluridimensional, de liberdade de comportamento, enquanto decorrente da ideia de desenvolvimento da personalidade' (Paulo Mota Pinto, 'O Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade', Portugal – Brasil, ano 2000, Studia Juridica - Boletim da Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, 1999, págs. 149 e segs.).
É certo que o artigo 64º nº 1 da Constituição não só proclama que
'todos têm direito à protecção da saúde', mas também a todos atribui o 'dever de a defender e promover'; só que este dever, como assinala Carla Amado Gomes
('Defesa da Saúde vs. Liberdade Individual', Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1999, págs. 22 – 24) 'tem como objecto a saúde pública, não a saúde privada; ou seja, o Estado impõe ao cidadão a obrigação de, por força da sua inserção na comunidade, tudo fazer para preservar o bom estado sanitário geral, mas não lhe impõe a obrigação de se manter, a si próprio, de boa saúde', acrescentando ainda que 'só na medida em que o mau estado de saúde de alguém possa reflectir-se no estado sanitário comunitário é que o Estado pode intervir, impondo determinados comportamentos (ou abstenção deles) ao cidadão doente.'.
Mas, sendo embora nesta perspectiva que se deve, em geral, conceber o dever individual de promover e defender a própria saúde, igualmente referido na Lei de Bases da Saúde – a Lei nº 48/90, de 21 de Agosto – onde se afirma que os cidadãos são os primeiros responsáveis pela sua própria saúde, individual e colectiva, tendo o dever de a defender e promover (Base V, nº 1), a verdade, todavia, é que, sem que se esteja já no domínio da harmonização de direitos, se não pode excluir que, perante uma 'especial fundamentação social', o legislador se encontre excepcionalmente autorizado a, relativamente a certos direitos, estabelecer 'restrições justificadas pela protecção legislativa dos indivíduos contra si próprios', tratando-se 'em regra, de proteger a integridade física
(saúde) ou o património da própria pessoa' (José Carlos Vieira de Andrade, 'Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976', 2ª ed., Almedina,
2001, págs. 309/310).
Ponto é que tais restrições respeitem, desde logo, o preceituado no artigo 18º nº 2 da CRP -–isto é, que se encontrem expressamente previstas na Constituição e que se limitem ao necessário para salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos.
Nesta conformidade, e recorrendo ao preceituado nas disposições combinadas dos já mencionados artigos 59º nº 1, alínea c) e 64º, nº 1, da Constituição, e ainda do artigo 59º nº 2, alínea c), da mesma Lei Fundamental, se deverá ainda admitir que a obrigatoriedade de sujeição a exame médico possa radicar na própria necessidade de verificar – no caso de trabalhadores mais débeis, designadamente as 'mulheres durante a gravidez e após o parto', bem como os 'menores', os 'diminuídos' e os que 'desempenhem actividades particularmente violentas ou em condições insalubres, tóxicas ou perigosas' – que a prestação de trabalho decorra sem risco para o próprio trabalhador, tendo em consideração que a protecção do trabalhador e a eliminação das nocivas sequelas sociais da sua desprotecção constituem historicamente o próprio cerne da razão de ser da existência de uma legislação do trabalho baseada em disposições imperativas que conferem aos trabalhadores direitos e regalias a que eles não podem renunciar.
Mas, tendo em conta as indiscutíveis e significativas repercussões sociais das doenças profissionais e dos acidentes de trabalho - podendo estes ser inclusivamente provocados pela inadequação ao posto de trabalho, em função do estado de saúde do trabalhador – não repugna igualmente admitir que o legislador, tendo em conta as mesmas disposições constitucionais dos artigos 59º nº 1 alínea c) e 64º nº 1, imponha a realização de um exame de saúde com carácter periódico. E isto até porque, devendo a entidade patronal propiciar ao trabalhador a efectivação de um tal exame, se o trabalhador pudesse livremente a ele se eximir, não ficaria assegurado que uma tal renúncia se não ficasse a dever a sugestão, influência ou pressão da própria entidade patronal, ou seja, situações análogas àquelas a que precisamente se pretende obviar com as disposições imperativas no domínio da legislação do trabalho.
Agora o que, também nesta perspectiva, inequivocamente se exige é que esse exame se contenha no estritamente necessário, adequado e proporcionado
à verificação de alterações na saúde do trabalhador causadas pelo exercício da sua actividade profissional e à determinação da aptidão ou inaptidão física ou psíquica do trabalhador para o exercício das funções à correspondente categoria profissional, para defesa da sua própria saúde. Ou seja, é constitucionalmente imposto que o exame de saúde obrigatório se adeque, com precisão, ao fim prosseguido.
É também este o entendimento de Paulo Mota Pinto ('A Protecção da Vida Privada e a Constituição' cit. pág. 183) quando escreve:
'Uma outra questão que se levanta é a de saber em que medida os trabalhadores podem fazer apelo à reserva da vida privada perante os seus empregadores, no que diz respeito, por exemplo, ao seu estado de saúde.
A observação do trabalhador no seu local de trabalho, particularmente através de câmaras de televisão (assim, por exemplo, a colocação de câmaras à entrada das casas de banho), de escutas telefónicas ou de orifícios de vigilância, deve ser considerada proibida, salvo quando se revele concretamente necessária por questões de segurança do trabalhador ou de terceiros.
O mesmo vale para questionários e testes relativos a aspectos incluídos na vida privada do trabalhador. A utilização destes meios – abrangendo os testes sobre a saúde do trabalhador – deve ser limitada aos casos em que seja necessária para protecção de interesses de segurança de terceiros (assim, por exemplo, testes de estabilidade emocional de um piloto de avião) ou do próprio trabalhador, ou de outro interesse público relevante, e apenas se mostrarem realmente adequados aos objectivos prosseguidos.'
Nesta conformidade, considerando que os exames de saúde previstos no artigo 19º nº 1 do Decreto-Lei nº 26/94 estão exclusivamente direccionados ao fim de prevenção dos riscos profissionais e à prevenção de saúde dos trabalhadores (cfr. artigo 3º nº 1 do mesmo diploma), não se pode concluir, como faz o requerente, que se tenha instituído uma sistemática e global devassa da reserva da vida privada constitucionalmente censurável.
Entende, ainda, o requerente, neste domínio, que o diploma visa
'quebrar a própria confidencialidade de dados à guarda do médico assistente, ao instituir a 'cooperação necessária' deste naquela sistemática e global devassa da vida privada pelo 'médico do trabalho'.
Ora, do artigo 16º nº 5 do Decreto-Lei nº 26/94 não pode, de forma alguma, extrair-se que seja possível obter do médico assistente
'inquisitoriamente os resultados de anteriores exames ou consultas', como o requerente chega a afirmar.
Em primeiro lugar, porque a norma tem por destinatário o médico do trabalho e não o médico assistente, como resulta claramente do seu enquadramento sistemático e do seu teor – cooperação com o médico assistente e não cooperação do médico assistente com o médico do trabalho.
Em segundo lugar, porque se o legislador tivesse querido criar um dever de tal natureza para o médico assistente, não poderia deixar de o expressar com um mínimo de precisão, o que manifestamente, não acontece.
Cooperação necessária não significa, pois, cooperação obrigatória para o médico assistente; significa antes, que, quando do ponto de vista médico tal for adequado ou conveniente – por exemplo, para evitar repetir exames – o médico do trabalho deverá solicitar a cooperação do médico assistente, o qual a poderá prestar, se considerar que esse comportamento, in casu, se compatibiliza com as regras da deontologia profissional, o que, em regra pressupõe a autorização do paciente.
Também, por esta via, se não pode, pois, concluir pela violação do direito á intimidade da vida privada.
II - A violação do artigo 35º nºs 1 a 7 da Constituição
Como se deixou relatado, o requerente alega, ainda, a violação do disposto no artigo 35º nºs 1 a 7 da Constituição, por se prever a criação, em cada empresa, de um verdadeiro banco de dados, com informações sobre o estado global de saúde de cada trabalhador. Tal situação resultaria da circunstância de o médico do trabalho se inserir nos 'serviços internos da própria empresa ou em organismo por ela contratado'.
Tal situação de violação da Constituição ocorre mesmo quando não exista tratamento informático dos ficheiros, tendo em vista a protecção concedida aos dados pessoais constantes dos ficheiros manuais pelo artigo 35º nº
7 da CRP.
O pedido do requerente assenta em dois pressupostos:
- Por um lado, que se cria um banco de dados sobre o estado de saúde dos trabalhadores no âmbito da própria empresa empregadora;
- Por outro lado, que a lei não prescreve qualquer garantia sobre a recolha, o tratamento e o acesso aos dados em causa, salvo a mera 'proclamação' da sua confidencialidade.
Ora, como se passa a demonstrar, ambos os pressupostos – mesmo admitindo que, em parte, se verificariam à data do pedido – já não subsistem neste momento.
Nos termos do preceituado nos artigos 20º e 21º do Decreto-Lei nº
26/94, tal como republicado em anexo ao Decreto-Lei nº 109/2000, há que distinguir entre ficha clínica (artigo 20º) e ficha de aptidão (artigo 21º).
Na ficha clínica são anotadas 'as observações clínicas relativas aos exames médicos' (artigo 20º, nº 1), sendo certo que esta ficha 'encontra-se sujeita ao regime do segredo profissional, só podendo ser facultada às autoridades de saúde e aos médicos da Inspecção-Geral do Trabalho' (artigo 20º, nº 2), o que significa que a ela, no seio da empresa, só tem acesso o médico do trabalho, a quem cabe 'a responsabilidade técnica da vigilância da saúde'
(artigo 25º nº 1) e que 'exerce as suas funções com independência técnica e em estrita obediência aos princípios da deontologia profissional' (artigo 25º nº
5).
A ficha de aptidão, igualmente preenchida pelo médico do trabalho, que deve 'remeter uma cópia ao responsável dos recursos humanos da empresa' (nº
1), já 'não pode conter elementos que envolvam segredo profissional' (nº 3). Que isto é assim revela-o até o próprio modelo de ficha de aptidão, aprovado pela Portaria nº 1031/2002, de 10 de Agosto, onde se vê que a única informação relativa ao resultado do exame se traduz na inscrição de um sinal nas quadrículas que correspondem aos itens 'Apto', 'Apto condicionalmente' 'Inapto temporariamente' e 'Inapto definitivamente'.
Ora, o artigo 195º do Código Penal pune criminalmente a violação do segredo profissional, estabelecendo que 'quem, sem consentimento, revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias'.
Em matéria de segredo médico é particularmente elucidativo o Código Deontológico da Ordem dos Médicos (publicado na Revista da Ordem dos Médicos, nº
6, Junho de 1981) que, independentemente da questão de saber qual o seu real valor jurídico, não pode deixar de servir, pelo menos, para iluminar interpretativamente as normas legais e regulamentares que adoptam conceitos por ele abrangidos; ou seja, 'as normas deontológicas, para além da sua irrecusável eficácia interna, podem ser utilizados na concretização de cláusulas gerais e como critérios de avaliação da ilicitude e da culpa' (cfr. Procuradoria-Geral da República, Pareceres, vol. IV, 'Os segredos e a sua tutela', págs. 301 e segs.).
Ora, o referido Código Deontológico dispõe no seu artigo 4º que o médico é 'técnica e deontologicamente independente e responsável pelos seus actos, não podendo ser subordinado à orientação técnica e deontológica de estranhos à profissão médica no exercício de funções clínicas' e acrescenta, no seu artigo 28º, que o médico não pode aceitar 'situações de interferência externa que lhe cerceiem a liberdade de fazer juízos clínicos e éticos'. O segredo profissional encontra-se detalhadamente regulado nos artigos 67º a 80º, explicitando o artigo 68º que ele compreende especialmente quer os factos revelados directamente pelo doente ou por terceiro, quer os factos apercebidos pelo médico, quer os factos comunicados por outro médico; e o artigo 77º esclarece que o médico deve conservar as fichas clínicas 'ao abrigo de qualquer indiscrição, de acordo com as normas do segredo profissional'. Finalmente, assinale-se que se encontra expressamente determinado que o médico do trabalho se deve submeter aos preceitos do Código Deontológico, 'nomeadamente em matéria de segredo profissional' (artigo 97º) e que 'deve assumir uma atitude de total independência em face da entidade que o tiver mandatado'.
Nesta conformidade, pode-se concluir que, à imagem do que acontece noutros ordenamentos jurídicos, o médico do trabalho não pode transmitir ao empregador, sob pena de violação do segredo profissional, qualquer indicação que traduza um diagnóstico sobre o estado de saúde (cfr. Pierre Lambert, 'Le Secret Profissionnel', ed. Nemesis, pág. 172; Marie-Hélène Mouneyrat, 'L’Éthique du Secret et Secret Médical', Pouvoirs, nº 97, 'Transparence et Secret', pág. 57; Maria del Carmen Garcia Garnica, 'La Proteccion de los Datos Relativos a la Salud de los Trabajadores (a proposito de la STC 202/1999, de 8 de Noviembre), Derecho Privado y Constitución, 14, Año 8, 2000, págs 157/158; Noelia de Miguel Sanchez, 'El tratamiento del principio de confidencialidad médica en el Reyno Unido, 'El Derecho Administrativo en el umbral del siglo XXI – Homenaje al Professor Dr. D. Ramón Martinez Mateo, coord. Francisco Sosa Wagner, Tomo I, pág. 1177; e, implicitamente, Claudio Filippi, 'Il Diritto alla Riservatezza nel Rapporto di Lavoro', La Tutela della Riservatezza, org. Aldo Loiodice/Giuseppe Santaniello, CEDAM, 2000, pág. 441).
Consequentemente, não é possível entender que o diploma em apreço permite que se crie um banco de dados sobre o estado de saúde dos trabalhadores no âmbito da própria empresa empregadora, em violação do preceituado no artigo
35º da Constituição.
No que concerne à alegada falta de garantia sobre a recolha, o tratamento e o acesso aos dados em causa, salvo a mera 'proclamação' da sua confidencialidade, cabe referir que, se, à data do pedido, a situação não seria já como o requerente a caracteriza (havia sido publicada a Lei nº 28/94, de 29 de Agosto, que aprovou medidas de reforço da protecção de dados pessoais, nomeadamente introduzindo alterações à Lei nº 10/91, designadamente referentes ao estado de saúde), a verdade é que, no momento presente, se não pode afirmar que não existam as garantias constitucionalmente exigidas pelo artigo 35º da Lei Fundamental.
Com efeito, foi entretanto publicada a Lei nº 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Protecção de Dados Pessoais) que transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Directiva nº 94/46/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Outubro de 1995, relativa à protecção dos dados pessoais e à livre circulação desses dados.
Ora, a ausência de mecanismos específicos no Decreto-Lei nº 26/94 não impede que ao tratamento dos dados em causa se deva considerar – como se considera – inteiramente aplicável o preceituado na referida Lei nº 67/98, sob controlo da Comissão Nacional de Protecção de Dados, designadamente nos seus artigos 7º, nºs 1 e 2, 14º, nº 1, 15º e 17º.
Por força destas disposições, 'é proibido (...) o tratamento de dados relativos à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos' (artigo
7º, nº 1); este tratamento só pode ser permitido, 'mediante disposição legal ou autorização da CNPD, (...) quando por motivos de interesse público importante' ele 'for indispensável ao exercício das atribuições legais ou estatutárias do seu responsável, ou quando o titular dos dados tiver dado o seu consentimento expresso para esse tratamento, em ambos os casos com garantias de não discriminação e com as medidas de segurança previstas no artigo 15º' (artigo 7º, nº 2).
No que concerne ao tratamento dos dados referentes à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos ele só é permitido 'quando for necessário para efeitos de medicina preventiva, de diagnóstico médico, de prestação de cuidados ou tratamentos médicos ou de gestão de serviços de saúde' e desde que
'seja efectuado por um profissional de saúde obrigado a sigilo ou por outra pessoa sujeita igualmente a segredo profissional, seja notificado à CNPD, nos termos do artigo 27º, e sejam garantidas medidas adequadas de segurança da informação'.
Quanto à segurança do tratamento dos dados o artigo 14º, nº 1 estabelece que 'O responsável pelo tratamento deve pôr em prática as medidas técnicas e organizativas adequadas para proteger os dados pessoais contra a destruição acidental ou ilícita, a perda acidental, a alteração, a difusão ou o acesso não autorizados, nomeadamente quando o tratamento implicar a sua transmissão por rede, e contra qualquer outra forma de tratamento ilícito; estas medidas devem assegurar atendendo aos conhecimentos técnicos disponíveis e aos custos resultantes da sua aplicação, um nível de segurança adequado em relação aos riscos que o tratamento apresenta à natureza dos dados a proteger'.
O artigo 15º, nº 1 enumera, depois, uma série de rigorosas 'medidas especiais de segurança' que são impostas aos responsáveis pelo tratamento dos dados referidos no nº 2 do artigo 7º ; o nº 3 do mesmo artigo prescreve que 'os sistemas devem garantir a separação entre os dados referentes à saúde e à vida sexual, incluindo os genéticos, dos restantes dados pessoais'.
Nos termos do artigo 17º, 'Os responsáveis do tratamento de dados pessoais, bem como as pessoas que, no exercício das suas funções, tenham conhecimento de dados pessoais tratados, ficam obrigados a sigilo profissional, mesmo após o termo das suas funções'.
Ora, com este regime de protecção de dados pessoais e sendo ainda certo que, nos termos do artigo 2º da mesma Lei nº 67/98, o tratamento desses dados 'deve processar-se de forma transparente e no estrito respeito pela reserva da vida privada, bem como pelos direitos, liberdades e garantias fundamentais' e que o artigo 4º, nº 1 esclarece que a referida lei se aplica igualmente 'ao tratamento por meios não automatizados de dados pessoais contidos em ficheiros manuais ou a estes destinados', não oferece dúvidas que existe a obrigação de garantir a segurança e confidencialidade do tratamento dos dados atinentes ao estado de saúde dos trabalhadores, pelo que se não verifica a alegada violação do artigo 35º nºs 1 a 7 da Constituição.
III - A violação do artigo 47º da Constituição
O entendimento do requerente que o leva a considerar violado o artigo 47º da Constituição radica, como se disse, na alegada apreciação discricionária dos exames e testes clínicos pelo médico do trabalho, o que poderia conduzir a uma verdadeira inibição do exercício da profissão, sempre que aquele considerar na ficha da aptidão 'que o trabalhador carece de aptidão física e psíquica para iniciar ou continuar a exercer certas funções profissionais'. E isto sem que se preveja 'qualquer mecanismo específico' que permita ao trabalhador 'fazer valer, com celeridade e efectividade, os seus direitos fundamentais atingidos'.
Assinale-se, desde já. que, se o artigo 4º, alínea b) do Decreto-Lei nº 64-A/89, de 27 de Fevereiro, dispõe que o contrato de trabalho caduca
'verificando-se a impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar o seu trabalho', e que essa situação pode decorrer de uma apreciação clínica do médico do trabalho, a verdade é que, como refere Menezes Cordeiro ('Manual de Direito do Trabalho', Almedina, 1991, pág. 793) 'a jurisprudência se mostra bastante exigente no tocante ao requisito da absolutidade; uma simples diminuição das qualidades do trabalhador, quando lhe possam ainda ser distribuídas outras tarefas, não conduz à caducidade'. Assim o decidiu, por exemplo, o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 28 de Junho de 1995, ao considerar que a impossibilidade de prestar o trabalho deve ser total, ou seja, para o serviço para que o trabalhador foi contratado ou para outro, isto é, 'se deve entender a todas as actividades existentes na empresa equivalentes ou próximas da categoria do trabalhador e por este passíveis de execução' (Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do STJ, Ano III, 1995, Tomo III, pág. 310 II).
Ora, sendo manifesto que a inaptidão da trabalhador para o exercício de certa profissão ou género de trabalho por motivos relacionados com a própria saúde física ou psíquica se integra necessariamente nas restrições constitucionalmente admissíveis por serem 'inerentes à sua própria capacidade', não se vê que tal restrição se apresente como desproporcionada, tendo em conta a referida interpretação jurisprudencial.
O que pode estar em causa, considerando os próprios termos do alegado pelo requerente, não é a liberdade de escolha de profissão, mas antes o direito à tutela judicial efectiva consagrado no artigo 20º da Constituição.
Nesta perspectiva, cabe sublinhar que se não torna exigível qualquer meio específico de impugnação do acto médico em causa, na medida em que o parecer do médico não é vinculativo para a entidade patronal, o que significa que a afectação de eventuais direitos ou interesses dos trabalhadores sempre resultará de actos jurídicos praticados pela mesma entidade.
Ora, relativamente a estes actos praticados pela entidade patronal, o trabalhador tem todos os direitos de defesa que a legislação do trabalho lhe garante. E se é controversa na jurisprudência a questão de saber se, nos casos de caducidade do contrato de trabalho, é invocável a utilização do específico procedimento cautelar de suspensão do despedimento individual, previsto nos artigos 34º e segs. do Código de Processo do Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei nº 480/99 (cfr. Abílio Neto, 'Código de Processo do Trabalho anotado', 2ª ed., Ediforum, págs. 57 a 60; e, citando apenas jurisprudência em sentido negativo, L. P. Moitinho de Almeida, 'Código de Processo do Trabalho anotado', 5ª ed., Coimbra Editora, págs. 64 a 74) é indiscutível que, em tal caso, pode sempre, pelo menos, recorrer-se aos procedimentos cautelares previstos no artigo 32º do mesmo diploma legal.
Nesta conformidade, não se vislumbra também qualquer violação do preceituado nos artigos 20º e 47º da Constituição.
7 - Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se:
a. Não conhecer da constitucionalidade das normas ínsitas nos artigos 16º, nºs 2, alínea a) e 6 e 17º, nº 2 do Decreto-Lei nº 26/94, de 1 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei nº 7/95, de 29 de Março; b. Não julgar inconstitucionais as restantes normas impugnadas.
Lisboa, 25 de Setembro de 2002- Artur Maurício Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa