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Proc. nº 321/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. A., recorrente no presente processo, em que é recorrido o Ministério Público, foi condenada pela Comissão de Aplicação de Coimas em Matéria de Publicidade em reunião de 2 de Março de 2001, na coima de 800.000$00, por publicidade enganosa, contra-ordenação prevista nos artigos 10º, nº 1, 11º, nº
2, alínea a), e 34º, nº 1, alínea a), do Código da Publicidade. A arguida foi notificada dessa decisão por carta registada com aviso de recepção, que foi devolvido e deu entrada nos serviços da já referida Comissão em 10 de Abril de
2001, com assinatura não datada da destinatária. Inconformada, a arguida interpôs recurso da decisão sancionatória que remeteu pelo correio com data de 21 de Maio de 2001 e deu entrada nos serviços da autoridade recorrida no dia imediatamente seguinte. A 3ª Secção do 2º Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa rejeitou o recurso por intempestivo, nos termos do artigo 63º, nº 1, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro. Para tanto, o tribunal considerou que o prazo para interposição do recurso é de vinte dias e se suspende aos sábados, domingos e feriados (cfr. os artigos 59º, nº 3, e 60º, nº 1, do já citado Decreto-Lei nº 433/82). Ora, como o prazo para a impugnação terminara no dia 11 de Maio de 2001, a interposição do recurso no dia
22 do mesmo mês e ano terá sido efectivamente intempestiva.
2. A ora recorrente interpôs recurso do despacho da juíza da 3ª Secção do 2º Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa, que lhe foi notificado por via postal em 20 de Junho de 2001 para o Tribunal da Relação de Lisboa em 6 de Julho de 2001, apresentando, em síntese, as seguintes conclusões: a) A decisão recorrida foi recebida pela recorrente em 10 de Abril de
2001, durante o período de férias da Páscoa, devendo a notificação considerar-se feita nesse dia ou, em alternativa, no primeiro dia após as férias, que foi 17 de Abril de 2001; b) De qualquer modo, a recorrente apresentou o recurso no segundo ou no terceiro dia depois do final do prazo para a respectiva interposição dado que no período de férias se suspendem os prazos dos actos processuais; c) Por conseguinte, segundo o artigo 145º, nº 6, do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 107º, nº 5, do Código de Processo Penal, deveria ter sido admitido o recurso sem prejuízo do pagamento da multa cominado por lei; d) O despacho judicial recorrido, ao não decidir assim, terá violado as normas acabadas de citar e ainda os artigos 103º, nº 1, e 104º, nº 1, do Código de Processo Penal, e 32º, nº 1, da Constituição. Em resposta, o Ministério Público junto do tribunal recorrido sustentou que o recurso não mereceria provimento uma vez que o prazo do recurso de decisão da autoridade administrativa não se suspende em férias. O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa foi do mesmo parecer. Convidada a pronunciar-se acerca do parecer do Ministério Público a ora recorrente vem arguir a inconstitucionalidade do artigo 59º, nºs 1, 2 e 3, do Decreto-Lei nº 433/82 (cfr. os nºs 6, 11 e 15 da resposta da recorrente), por violação dos artigos 18º, nº 2, 20º, nºs 2 e 4, e 32º, nºs 1 e 10, da Constituição. Por acórdão de 12 de Março de 2002 o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida por entender que o prazo para impugnar a decisão da autoridade administrativa não é um prazo judicial. A Relação fundamentou-se na circunstância de o recurso dever ser apresentado perante a autoridade administrativa numa fase em que nenhum processo se encontra em juízo e invocou o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 14 de Abril de 1999 (Acórdãos Doutrinais do STA, 455, p. 1417), para concluir que a nova redacção dada pelo Decreto-Lei nº 244/95 ao artigo 59º do Decreto-Lei nº 433/82 não converteu em judicial o prazo previsto em tal artigo.
3. É deste acórdão que vem o presente recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional. A recorrente indicou como normas cuja inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie os artigos 59º, nº 3 e 60º do Decreto-Lei nº 433/82, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei nº 244/95. A recorrente sustenta que tais normas, na interpretação dada pelo acórdão recorrido violam os artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 10, da Constituição. Por fim, identifica como peças processuais em que suscitou a questão o recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa (conclusões da motivação) e a resposta ao parecer apresentado pelo Ministério Público junto daquele tribunal. No Tribunal Constitucional, a recorrente apresentou alegações que concluiu, em síntese, do seguinte modo: a) O desconto do período de férias no prazo para recorrer em processo de contra-ordenação é exigido pelo princípio do processo equitativo, desde logo porque implica a intervenção dos tribunais comuns; b) Um sistema em que numas fases do processo os prazos se contam corridos e noutras fases a sua contagem é suspensa durante as férias implica uma intolerável disfunção susceptível de colocar o interessado em claras situações de injustiça e desfavor; c) Sendo facultativo o patrocínio por advogado 'sempre vai ocorrer, desse modo, o risco de uma denegação de justiça por défice de defesa bastante'; d) Os interessados notificados em férias são discriminados relativamente
àqueles que o não sejam, visto que em férias, não só normalmente estão encerrados os tribunais como os escritórios dos advogados; e) Consequentemente 'só os interessados que constituíram desde o início advogado podem estar precavidos perante tão bizarro sistema misto'; f) Assim, os artigos 59º e 60º do Decreto-Lei nº 433/82, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei nº 244/95 são inconstitucionais por violarem os artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 10, da Constituição e 'devem ser declarados inconstitucionaos'. Nas suas contra-alegações, o Ministério Público concluiu pela improcedência do recurso, sustentanto que a não suspensão do prazo de recurso da decisão de autoridade administrativa durante as férias judiciais não dificulta em termos de excessiva onerosidade o exercício do direito de defesa, não constitui solução imprevisível com a qual as partes não devessem razoavelmente conter e não viola o princípio da igualdade por ser razoável admitir uma diferenciação relativa às autoridades administrativas permitindo-lhes que pratiquem actos durante o período de encerramento dos tribunais em virtude de férias judiciais. Cumpre agora apreciar e decidir.
II Fundamentação
4. Tal como o Tribunal Constitucional considerou num caso análogo ao dos autos
– o do Acórdão nº 473/01, tirado pela 3ª Secção –, não se vislumbra qualquer violação de normas ou princípios constitucionais pela interpretação normativa posta em crise (segundo a qual o prazo para a interposição de recurso de decisão de autoridade administrativa no processo de contra-ordenação não se suspende durante as férias judiciais). Em primeiro lugar, o acesso ao direito e aos tribunais consagrado no nº 1 do artigo 20º da Constituição não é posto em causa. Com efeito, funcionando normalmente durante as férias judiciais, os serviços das autoridades administrativas recorridas, não se divisa qualquer dificuldade material quanto à interposição do recurso. Em segundo lugar, atendendo à orientação jurisprudencial firmada acerca da natureza do prazo (que o entende como prazo não judicial), não se pode concluir que estejamos em presença de uma restrição imprevisível, incompatível com o princípio da confiança que constitui corolário do Estado de Direito democrático
(artigo 2º da Constituição), se é que se deve entender existir aqui uma restrição. Em terceiro e último lugar, o argumento de que os escritórios de advogados estão usualmente encerrados durante as férias judiciais – sendo verdade que estamos perante uma situação de patrocínio por advogado facultativo – não colhe porque, a ser verdadeiro tal argumento, implicaria, de forma absurda, a interrupção de todos os prazos relativos a actos em que advogados pudessem intervir, fossem judiciais ou não.
5. Por outro lado, o artigo 20º, nº 4, da Constituição, que consagra o direito a um processo equitativo não se pode considerar violado. Na verdade, existe um fundamento racional para a diferenciação da forma de contagem de actos que se praticam perante uma autoridade administrativa e actos que se praticam perante um tribunal. No caso sub judicio, essa diferenciação resulta da própria existência e da ratio essendi das férias judiciais.
6. Tão-pouco se pode considerar violado o nº 1 do artigo 32º da Constituição, que consagra todas as garantias de defesa, incluindo o recurso no âmbito do processo criminal, em conjugação com o nº 10 do mesmo artigo que assegura ao arguido os direitos de audiência e defesa nos processos de contra-ordenação. Efectivamente, o direito de defesa do arguido está garantido nos termos da interpretação normativa posta em causa pela recorrente e inclui, inquestionavelmente, o direito de recurso perante os tribunais. Pretender inferir das normas constitucionais citadas uma determinada forma de contar o prazo para a interposição do recurso ou uma exigência de paridade entre prazos de recurso de decisão de autoridades administrativas (em matéria de contra-ordenações) e tribunais (em matéria penal) é excessivo.
III Decisão
7. Ante o exposto, decide-se: a) Não julgar inconstitucional, designadamente por violação do disposto nos artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nºs 1 e 10, da Constituição, os artigos 59º, nº 3, e 60º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, na redacção que lhes foi dada pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro, na interpretação de que o prazo para a interposição do recurso neles previsto não se suspende durante as férias judiciais; b) Negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 2 de Outubro de 2002 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa