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Processo nº 404/02 Plenário Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I
1. - O Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal Constitucional, veio, nos termos dos artigos 281º, nº 3, da Constituição da República e 82º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, requerer a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das 'normas constantes dos artigos 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral neles conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil'.
Fundamenta o pedido na circunstância de semelhante interpretação normativa ter sido julgada inconstitucional por este Tribunal, no domínio da fiscalização concreta, por violação do princípio da confiança, ínsito no do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição, através de três decisões: os acórdãos nºs. 160/2000 e 193/2002, encontrando-se o primeiro publicado no Diário da República, II Série, de 10 de Outubro de 2000, e a decisão sumária nº 67/2002, de 7 de Março de 2002.
Entende o magistrado requerente que subsiste interesse relevante na apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 2º do Decreto-Lei nº 512/76, apesar de revogada, 'com vista, desde logo, a obstar à sua eventual repristinação, como decorrência da procedência do pedido quanto à norma actualmente em vigor'.
2. - Notificado, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 54º e 55º, nº 3, da Lei nº 28/82, o Primeiro-Ministro ofereceu o merecimento dos autos, mas solicitou ao Tribunal a ponderação da utilização da competência que lhe assiste, em conformidade com o disposto no nº 4 do artigo
282º da Constituição, de limitar os efeitos da eventual declaração de inconstitucionalidade, de modo a que os mesmos somente se produzam a partir da publicação da decisão a proferir, 'com ressalva das situações litigiosas pendentes'.
Para o efeito, aduziu razões de equidade e interesse público, designadamente a necessidade de assegurar o financiamento do sector da Segurança Social – onde o incumprimento das obrigações contributivas tem criado inúmeros problemas de gestão – e o cumprimento de objectivos constitucionais no domínio da solidariedade e da Segurança Social (artigo 63º da lei fundamental).
3. - Apresentado memorando pelo Presidente do Tribunal Constitucional, nos termos dos nºs. 1 e 2 do artigo 63º da mencionada Lei nº
28/82, foi o mesmo discutido e, uma vez definido o sentido decisório, cabe, agora, elaborar acórdão.
II
1. - Anteriormente à vigência do actual Código Civil, os créditos por contribuições devidas às caixas sindicais de previdência gozavam do privilégio mobiliário geral que lhes era concedido pelo artigo 167º do Decreto-Lei n.º 45.266, de 23 de Setembro de 1963.
Com a publicação do Decreto-Lei n.º 47.344, de 25 de Novembro de 1966 (diploma que aprovou o Código Civil), questionou-se a subsistência deste privilégio atribuído por «legislação especial», face ao disposto no artigo 8º deste diploma.
Posteriormente, com o objectivo de definir as garantias que assistem aos créditos por contribuições do regime geral de previdência e aos respectivos juros, o Decreto-Lei n.º 512/76, de 3 de Julho, consagrou e ampliou os privilégios da previdência, reconhecendo - no n.º1 do seu artigo 1º - aquele privilégio mobiliário geral e estabelecendo - no artigo 2º - o privilégio imobiliário geral.
Dispõe este preceito que:
'Art. 2º Os créditos pelas contribuições do regime geral de previdência e respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil.'
Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 103/80, de 9 de Maio
(diploma que aprovou o regime jurídico das contribuições para a previdência), veio consagrar idêntica disposição:
'Artigo 11º
(Privilégio imobiliário)
Os créditos pelas contribuições, independentemente da data da sua constituição, e os respectivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património das entidades patronais à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748º do Código Civil.'
Importa ainda chamar à colação o que dispõe o artigo
748º (disposição a que se referem as normas aqui sob sindicância), e os artigos
751º e 735º n.º3, todos do Código Civil, inseridos na Secção VI (Privilégios Creditórios), que são invocados na fundamentação da decisão recorrida:
'Artigo 735º
(Espécies)
1. (...)
2. (...)
3. Os privilégios imobiliários são sempre especiais.'
'Artigo 748º
(Ordem dos outros privilégios imobiliários)
1. Os créditos com privilégio imobiliário graduam-se pela ordem seguinte: a) Os créditos do Estado, pela contribuição predial, pela sisa e pelo imposto sobre as sucessões e doações; b) Os créditos das autarquias locais, pela contribuição predial.'
'Artigo 751º
(Privilégio imobiliário e direitos de terceiro) Os privilégios imobiliários são oponíveis a terceiros que adquiram o prédio ou um direito real sobre ele, e preferem à consignação de rendimentos, à hipoteca ou ao direito de retenção, ainda que estas garantias sejam anteriores.'
2. - O Decreto-Lei nº 103/80 não contém nenhuma disposição que expressamente revogue o diploma de 1976.
No entanto, há-de concluir-se pela efectiva revogação desse texto anterior, considerando não só a sobreposição sucessiva dos respectivos objecto e conteúdo (parcial quanto ao Decreto-Lei nº 103/80), como ainda o que justamente se esclarece no preâmbulo deste último diploma, ao observar-se que se pretendeu unificar 'num só diploma legal as diversas normas fundamentais aplicáveis, confirmando as medidas positivas ainda em vigor, modificando as que a experiência revelou necessitarem de alteração e revogando as que não são consentâneas com a desejada pontualidade no pagamento das contribuições'.
Por sua vez, consoante constitui jurisprudência uniformemente reiterada deste Tribunal, a circunstância de uma norma se encontrar já revogada não é suficiente, só por si, para se deixar de conhecer do pedido de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade (ou de legalidade): neste sentido, citem-se exemplificativamente os acórdãos nºs. 17/83
– entre os mais antigos –, 116/97 e 98/2000 – entre os mais recentes –, publicados in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º, 36º e 46º volumes, págs.
93 e ss., 79 e ss., e 41 e ss., respectivamente, numa orientação vinda já da Comissão Constitucional (por todos, o parecer nº 4/81, in Pareceres da Comissão Constitucional, 14º vol., págs. 230 a 232).
Na verdade, operando a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, em princípio, ex tunc, os seus efeitos retrotraem-se à data da entrada em vigor da norma em causa.
Questão é que se represente interesse na emissão dessa declaração, o que há-de aferir-se pela existência de um interesse prático apreciável na eliminação dos efeitos produzidos pela norma no período em que esteve em vigor.
A jurisprudência constitucional também vem pacificamente exigindo a verificação de um interesse que seja juridicamente relevante, pois, sendo razoável que se observe um princípio de adequação e proporcionalidade, seria inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta, como é a declaração de inconstitucionalidade, para eliminar efeitos eventualmente produzidos que se configuram constitucionalmente pouco relevantes ou que possam ser facilmente removidos de outro modo (assim, inter alia, além dos acórdãos já citados, os nºs. 238/88, 465/91 e 140/2000, publicados nos Acórdãos ..., 12º, 20º e 46º volumes, págs. 282 e segs., 285 e segs., e 59 e segs., respectivamente).
No caso vertente tem-se por seguro revestir-se de interesse juridicamente relevante o conhecimento da norma revogada. Como observa, no seu requerimento, o magistrado do Ministério Público, de outro modo, a eventual declaração de inconstitucionalidade, se limitada à norma mais recente, conduziria à repristinação da norma anterior, que assim vigoraria no ordenamento jurídico nacional não obstante o seu conteúdo idêntico ao da norma que a revogou, declarada inconstitucional.
Irá, por conseguinte, conhecer-se de ambas as normas.
III
1. - A questão de constitucionalidade em apreço foi, efectivamente, objecto de apreciação por este Tribunal, no domínio da fiscalização concreta, nos três casos já mencionados, os acórdãos nºs. 160/2000 e 193/2002 e a decisão sumária nº 67/2002.
Em qualquer das decisões referidas as dimensões normativas em causa foram julgadas inconstitucionais por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República.
Consoante se escreveu no acórdão nº 160/2000, aquele princípio 'postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar' – e citem-se a esse propósito, ilustrativamente, os acórdãos nºs. 303/90 e 625/98, publicados nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 17º e 41º volumes, a págs. 65 e segs. e 293 e segs., respectivamente.
Ora, tendo-se por indiscutível que o legislador pretendeu dar alguma preferência aos créditos da segurança social ao determinar, nas normas questionadas, que os créditos aí consignados se graduem logo a seguir aos do Estado e das autarquias locais, referidos no artigo 748º do Código Civil, e, bem assim, não se questionando que, face à natureza, às finalidades e às funções atribuídas a certos créditos de entidades públicas que visam permitir ao Estado a satisfação de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas (como é o caso da segurança social, cuja expressão constitucional consta do artigo 63º da lei fundamental), desse modo conferindo-se algum privilégio ao credor, expresso, nomeadamente, na quebra do princípio da par conditio creditorum, nem , tão pouco, que se crie um regime procedimental específico para a cobrança coerciva de tais créditos, o certo é que sempre se há-de perguntar que segurança jurídica, constitucionalmente relevante, tem o cidadão perante uma interpretação normativa que lhe neutraliza a garantia real
(hipoteca) por si registada, independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das normas em sindicância.
'É que, por um lado, [mais se escreveu], o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que, em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico imobiliário (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra, 1993, pág. 333; Isabel Pereira Mendes, 'Repercussão no Registo das Acções dos Princípios do Direito Registral e da Função Qualificadora dos Conservadores do Registo Predial' in – O Direito, ano 123, 1991, págs. 599 e segs., maxime, pág. 604; Paula Costa e Silva, 'Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção Conferida ao Terceiro Adquirente', in – Revista da Ordem dos Advogados, ano 58, 1998, II, págs. 859 e ss., maxime pág. 862). Por outro lado, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à Segurança Social. Ora, não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da Segurança Social – que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece. Acresce que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal e atento o seu âmbito de privilégio 'geral', e não existindo qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (no caso à Segurança Social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais referidos nos artigos 743º e 744º do Código Civil, a sua subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do comércio jurídico. Finalmente, ainda se dirá não se surpreender suporte razoável adequado para esta desproporcionada lesão na tutela dos interesses da Segurança Social e no destino das contribuições que esta deixou de receber, pois a Segurança Social dispõe de meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da hipoteca legal, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 103/80.'
Por sua vez o acórdão nº 193/02, ao remeter para a fundamentação desenvolvida naquele acórdão nº 160/2000, reiterando-a (a decisão sumária nº 67/02 trilhou a mesma orientação), observou que 'o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou não devedoras ao Estado ou à Segurança Social'.
Ou seja, e como se entendeu no acórdão nº 109/01, tirado em plenário – ao debruçar-se sobre a norma do artigo 104º do CIRS, quando interpretada no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil (aresto publicado no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 2002) –, o princípio da confiança é violado na medida em que, gozando o privilégio de preferência sobre os direitos reais de garantia, de que terceiros sejam titulares, sobre os bens onerados, esses terceiros são afectados sem , no entanto, lhes ser acessível o conhecimento quer da existência do crédito, protegido que está pelo segredo fiscal, quer do ónus do privilégio , devido à inexistência de registo.
Não se surpreendendo razões que levem o Tribunal Constitucional a afastar-se da jurisprudência adoptada nas decisões-fundamento, entende-se ser a mesma de reafirmar, com as inerentes consequências quanto à constitucionalidade das normas.
2. - Como se registou oportunamente, o Primeiro-Ministro solicitou a ponderação do Tribunal Constitucional no tocante à fixação dos efeitos de eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, nos termos do nº 4 do artigo 282º da Constituição, invocando razões de equidade e interesse público.
Uma limitação de efeitos nos termos propostos – de modo a que, ressalvando-se as situações litigiosas pendentes, esses efeitos se produzam unicamente a partir da publicação da decisão – comportaria, no entanto, uma certa ambiguidade de entendimento: desde logo, poderia ser entendida como visando excluir dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade todos os créditos por contribuições à Segurança Social, já com execução pendente; ou só aqueles em cuja execução já se tivesse procedido à graduação de créditos; ou, ainda, porventura, só aqueles casos em que essa graduação houvesse sido impugnada. O que denota desde logo, a dificuldade de se proceder à limitação de efeitos nos termos pretendidos (para além de outras possibilidades interpretativas que poderia comportar essa fixação).
De resto, acresce não se verem razões para a limitação pretendida, já que subsistem garantias de cobrança do crédito: o privilégio mantém-se (só que não prefere à hipoteca anteriormente registada) e de qualquer modo esse crédito pode gozar de hipoteca legal.
Entende-se, por conseguinte, que em situações como as que no caso se perfilam, o Tribunal Constitucional deve seguir a orientação geral que, na matéria, tem adoptado, circunscrevendo-se à limitação de efeitos que o próprio texto constitucional impõe, no início do nº 3 do seu artigo 281º, ao ressalvar os casos julgados dos efeitos produzidos pela declaração de inconstitucionalidade (ou de ilegalidade). IV
Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da República, das normas constantes do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2º do Decreto-Lei nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil. Lisboa, 17 de Setembro de 2002 Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Bravo Serra Luís Nunes de Almeida Artur Maurício Guilherme da Fonseca Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa