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Proc. nº 369/2001
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I Relatório
1. No âmbito do processo especial de recuperação de empresas, em que é recuperanda A, o Tribunal Judicial da Comarca de Grândola, por sentença de 27 de Novembro de 1997, decidiu 'homologar a providência de gestão controlada aprovada na Assembleia de Credores (...) e a medida de alienação de participações representativas do capital social', nos termos dos artigos 100º e 108º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.
B interpôs recurso da sentença de 27 de Novembro de 1997 para o Tribunal da Relação de Évora, sustentando a inconstitucionalidade das normas dos artigos 100º e 108º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência. A recorrente concluiu as suas alegações do seguinte modo: a) A modificação dos prazos de vencimento dos créditos comuns não assegura desde logo a 'superioridade do activo sobre o passivo e a existência de um fundo de maneio positivo' indispensáveis para se falar em reestruturação financeira (artº
87° C.P.E.R.E.F). b) Pelo que, a referida moratória deve configurar-se como uma medida concordatária sujeita, como tal, ao principio da necessidade da autorização do devedor para a aprovação e homologação da providência de recuperação. c) A sentença recorrida viola neste aspecto o disposto no nº 2 do art° 55° C.P
.E.R.E.F. d) A alienação das participações sociais (artº 100° nº 2 C.P.E.R.E.F.) representa uma restrição ao direito de propriedade, na vertente que abrange o
'direito de não ser privado dela' (art° 62° CRP); e) O direito de propriedade privada é um direito de natureza análoga aos
'direitos, liberdades e garantias'. f) Como tal, é-lhe aplicável 'em toda a sua extensão' o regime próprio daqueles direitos. g) As restrições aos direitos fundamentais obedecem, nos termos dos nºs 2 e 3 do artº 18° CRP a determinados pressupostos materiais cumulativos entre si. h) São eles: (a) que a restrição esteja expressamente admitida pela constituição; (b) que a restrição vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido; (c) que a restrição seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objectivo; (d) que a restrição não aniquile o direito em causa atingindo o seu conteúdo essencial. i) O primeiro pressuposto não foi respeitado, pois as únicas restrições ao direito de propriedade expressas na Constituição são as constantes dos arts. 62° n° 2 e 83°, nas quais a referida providência se não inclui. j) O segundo também não, já que o interesse constitucionalmente protegido é a utilidade pública, e também este não está presente. k) Em relação ao princípio da proporcionalidade, este não foi acatado, pois a medida adoptada é excessiva, dispensável e inadequada ao relançamento da empresa recuperanda. l) Finalmente, também os direitos de usar, fruir e dispôr ficam aniquilados. m) Uma vez que nenhum dos pressupostos foi respeitado a providência em questão viola a Constituição, devendo, como tal, ser declarada materialmente inconstitucional. n) A sentença recorrida viola neste ponto os artºs. 17º, 18º nº 2 e 3, 62º todos da CRP; o) Se, por mera hipótese assim não entenderem os Ilustres Juízes, e a título de mera cautela, p) Verifica-se que os pressupostos consagrados no artº 108 C.P.E.R.E.F. não se encontram respeitados pelo presente plano. q) O novo plano não é um 'instrumento essencial de recuperação da empresa, nos termos do plano aprovado', r) Pois é possível adoptar as medidas operacionais, estratégicas e societárias que se propugnam no actual plano (e, consequentemente relançar a A) através do recurso à medida da redução e posterior aumento de capital que se preconizava no primeiro plano. s) O direito de preferência está previsto no primeiro plano e decorre dos artºs
3º nº 2, 37º e 38º C.P.E.R.E.F., pelo que não é necessário fazer-lhe menção expressa. t) A medida financeira adoptada no âmbito do anterior plano é menos gravosa para os titulares das participações. u) O ónus de provar que manutenção da titularidade das participações sociais constitui 'impedimento ponderoso à execução das restantes providências do plano' recai sobre os proponentes. v) Os proponentes não conseguiram fazer essa demonstração.
w) A sentença recorrida viola neste aspecto o artº 108º do C.P.E.R.E.F.
Nos termos expostos: x) Pede a recorrente a prolacção de acórdão que revogue a sentença recorrida e, consequentemente, julgue ilegal a moratória imposta aos créditos comuns e declare inconstitucional a alienação de Participações sociais prevista no artº
108° do C.P.E.R.E.F. ou, caso assim não entenda, o que só por mera hipótese se admite, julgue ilegal a referida providência.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 18 de Março de 2001, considerou, quanto à questão de constitucionalidade suscitada, o seguinte: Nos termos do artº 62° da CRP, 'a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição'
(n° 1) e 'a requisição e a expropriação por utilidade púb1ica' só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização' (n° 2).
E, como defendem Gomes Canotilho e Vital Moreira e tem sido entendido na jurisprudência do Tribunal Constitucional, na CRP o direito de propriedade, não fazendo, embora, parte do elenco dos «direitos, liberdades e garantias», goza do respectivo regime, naquilo que nele reveste natureza análoga à destes, por força do art.º 17°. E acrescentam esses autores que o facto de a Constituição não prever uma explícita reserva de lei restritiva, isto é, que a lei ordinária estabeleça limites à tutela do direito de propriedade, nos seus vários componentes, 'não impede que a lei - seja por via de algumas específicas remissões constitucionais expressas (arts. 82°, 89° e 97°), seja por efeito da concretização de limites imanentes, sobretudo por colisão com outros direitos fundamentais - possa determinar restrições mais ou menos profundas ao direito de propriedade. De uma forma geral, o próprio projecto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito dos poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições (quer a favor do Estado e da colectividade, quer a favor de terceiros) das liberdades de uso, fruição e disposição'. E, relativamente ao aspecto que está aqui em causa, escrevem:
«Elemento essencial do direito de propriedade consiste no direito de não se ser privado dela. Este direito, porém, não goza de protecção constitucional em termos absolutos, estando garantido apenas um direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de desapropriação. Com efeito, a Constituição prevê várias figuras de desapropriação forçada por acto de autoridade pública, desde a requisição e a expropriação por utilidade pública em geral (n° 2), passando pela expropriação de solos urbanos para efeitos urbanísticos (cfr. art. 56°-4), até à nacionalização de empresas e meios de produção em geral (cfr. art. 83º).
É possível entender-se que estas figuras não esgotam as formas de privação forçada da propriedade, mas a falta de uma explícita credencial constitucional não deixa de levantar certas dificuldades a algumas figuras correntes do direito civil, de perda ou transmissão forçada do direito de propriedade, incluindo a acessão (industrial) e a usucapião. Aparentados com a desapropriação são os casos de destruição de bens por utilidade pública, previstos em diversa legislação (demolição de prédios ameaçando ruína, abate de animais doentes, inutilização de bens alimentares deteriorados, etc.)». No caso dos autos, está em apreço a componente do direito de propriedade
'traduzida no direito de não ser privado dos respectivos bens (na hipótese, o direito dos accionistas da A às respectivas acções. No processo, foi aprovada e homologada a medida de alienação de 13.014.275 das
15.000.000 de acções da A a favor de todos os credores, com a venda a cada um, ao preço de 1$00 por cada lote de 100 acções ou fracção, do número de acções proporcional aos créditos de que forem titulares na data da assembleia de credores. As 1.985.725 acções remanescentes, acrescidas das que porventura não tenham sido alienadas nos termos do anterior item, serão atribuídas aos actuais sócios, sem qualquer contrapartida, na proporção das acções de que forem titulares na referida data. Previu-se depois o destino das acções que não venham a ser atribuídas aos actuais sócios. Por fim estabeleceu-se que o produto da alienação de acções aos credores será repartido pelos actuais accionistas, também na proporção das respectivas participações sociais. Do que se deixou dito acima resulta que o facto de não haver uma norma constitucional que expressamente preveja a possibilidade de deliberação, em sede de recuperação de empresa, da alienação das participações sociais, não é, só por si, obstáculo à constitucionalidade das referidas normas do n° 2 do art° 108º e do artº 108° do CPEREF. Há, designadamente, que ter em atenção, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, os limites imanentes ao direito de propriedade, sobretudo por colisão com outros direitos fundamentais. E, a este respeito, há que lembrar que, segundo o projecto económico-social constitucional, ao Estado se impõem certas tarefas, acções e objectivos, na área económica, que o levam a intervir, de forma activa. Lembremos, designadamente, que a organização económico-social assenta, entre outros princípios, na planificação democrática da economia, o que impõe ao Estado criar as estruturas jurídicas e técnicas necessárias à instauração do respectivo sistema de planeamento (artºs 80º, d) e 81°, l)), que ao Estado incumbe prioritariamente, além do mais, promover o aumento do bem-estar social e económico e da qualidade de vida do povo (artº 81º, a)), e que, segundo o artigos 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucionalº 81º, a lei disciplinará a actividade económica. a fim de garantir a sua contribuição para o desenvolvimento do país e defender os interesses dos trabalhadores. Ora, nesse quadro, é licito entender que, estando em causa valiosos interesses nacionais (designadamente, económicos e sociais, incluindo os referentes aos trabalhadores), o Estado, no exercício da actividade legislativa, possa consagrar limitações ao direito de propriedade privada, na regulamentação que lhe cabe no âmbito da recuperação das empresas que se mostrem viáveis. E há também que dizer que se nos afigura equilibrada, razoável, proporcionada, e como tal, não violadora de princípios constitucionais (v.g., os do artº 18°), a regulamentação do artº 108° do CPEREF a estabelecer os termos e condições em que, em concreto, é possível aprovar e homologar a medida de alienação de participações sociais. Esta regulamentação acautela, em termos equilibrados e justos, a privação do respectivo direito de propriedade, compensando o titular das participações sociais com o preço das mesmas. Pode, assim, dizer-se que as normas em causa (a do nº 2 do artº 100º e as do artº 108° do CPEREF) não são em si, inconstitucionais e nem o são na interpretação delas feita na sentença recorrida. Com efeito, face ao que deixamos dito, a restrição ao direito de propriedade delas resultante obedece aos requisitos cumulativos resultantes do artº 18° CRP.
Consequentemente, o Tribunal da Relação de Évora negou provimento ao recurso.
2. B interpôs recurso de constitucionalidade do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade à Constituição das normas dos artigos 55º, nº 2, 67º, 87º, 100º, nº 2, e 108º, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.
A Relatora proferiu despacho, ao abrigo do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, o qual foi cumprido por resposta de fls. 1157 e ss.
A Relatora proferiu despacho, suscitando a questão prévia consistente na não invocação durante o processo de inconstitucionalidade das normas dos artigos 55º, nº 2, 67º e 68º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, notificando, concomitantemente, a recorrente para proferir alegações relativamente aos artigos 100º, nº 2, e 108º do mesmo Código.
A recorrente produziu alegações que concluiu do seguinte modo: EM CONCLUSÃO, e sem conceder, no que aos outros artigos do CPEREF cuja invocação foi feita nas alegações de recurso, e que deve ser considerada suficiente, em termos de invocação da inconstitucionalidade, pede a recorrente B que seja declarada a inconstitucionalidade dos artigos 100°, nº 2 do CPEREF e 108º do CPEREF, O artigo 100°, Por violação do Direito de Propriedade consagrado no artigo 62° da CRP, Que ocorre de um modo não admitido pelo artigo 18 da CRP e Que também decorre da sua não previsão constitucional e Não obedece a uma forma constitucional de extinção do Direito de Propriedade E ainda por violação do princípio da proporcionalidade consubstanciado nos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade que se encontram atingidos; E o artigo 108°, Por violação do Direito de Propriedade consagrado no artigo 62° da CRP, Que ocorre de um modo não previsto pelo artigo 18° da CRP e Que ofende em particular o princípio constitucional da proporcionalidade Consubstanciado nos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade; Violação que decorre também da sua não previsão constitucional e que Não obedece a uma forma constitucional de extinção do Direito de Propriedade.
A recorrida A, contra-alegou, concluindo o seguinte: CONCLUSÕES:
1ª - Uma vez que relativamente às normas dos arts. 55°, nº 2, 67° e 87° do CPEREF, e como bem se salienta no douto despacho de fls. 1180, não foi suscitada a questão da sua inconstitucionalidade durante o processo, está vedado o recurso para o Tribunal Constitucional, pelo que deverá recusar-se o conhecimento do recurso no que respeita a tais normas.
2ª - Das duas alegações apresentadas pela B, apenas aquela que se seguiu à notificação para alegações ordenada pela Mma. Conselheira Relatora é tempestiva, mas já não a anteriormente apresentada no Tribunal da Relação de Évora.
3ª - Os preceitos dos arts. 100°, nº 2, e 108° do CPEREF, em si mesmos como na interpretação que deles foi feita no douto acórdão da Relação de Évora, não padecem de qualquer inconstitucionalidade, porquanto o resultado visado pelas normas, ponderados todos os interesses em causa, não afecta injustificadamente o direito de propriedade dos sócios atingidos pela alienação das participações sociais.
4ª - O direito de propriedade não é hoje visto como um direito insusceptível de compressões, garantindo apenas a Constituição o direito de não se ser arbitrariamente privado da propriedade e de se ser indemnizado no caso de desapropriação.
5ª - No caso dos arts. 100°, nº 2, e 108° do CPEREF, não só existe um fundamento razoável e constitucionalmente reconhecido para a privação do direito de propriedade como é salvaguardado o direito a uma justa contrapartida pela alienação das participações sociais.
6ª - O mecanismo dos arts. 100°, nº 2, e 108° do CPEREF, enquanto instrumento integrado num plano de gestão controlada, intervém somente numa fase da vida da empresa em que o espectro da declaração de falência da sociedade devedora surge, incontornável, como única alternativa ao êxito do processo de recuperação, pelo que, como sucede no caso da A, as participações sociais coactivamente alienadas não têm qualquer valor económico, sendo a sua alienação insusceptível de afectar o património dos sócios visados por essa medida.
7ª - O papel extraordinário que a lei atribui aos credores na condução do processo de recuperação da empresa assenta no reconhecimento de que são eles, afinal, os principais lesados pela insolvência do devedor, pelo que lhes é dada a possibilidade de tomarem as medidas que entendam mais adequadas, dentro do quadro legal, para resgatarem a empresa da iminente falência e, por essa via, recuperarem a totalidade ou parte do valor dos seus créditos.
8ª - Entre essas medidas está a alienação de participações sociais, mas estão também outras medidas extremamente relevantes, cuja constitucionalidade não é, sequer, questionada, como é o caso do acordo de credores, que importa a pura e simples extinção da sociedade titular da empresa objecto do acordo, com a inerente extinção integral das participações dos anteriores sócios.
9ª - A prevalência que, nos processos de recuperação da empresa, é dada ao interesse daqueles cujos direitos foram violados (os credores) sobre o dos titulares das participações sociais visa uma finalidade constitucionalmente legítima, a qual mais não é do que proporcionar condições para o saneamento e a recuperação das empresas economicamente viáveis, bem como a manutenção de todos ou de parte dos postos de trabalho.
10ª - A providência prevista nos arts. 100º, nº 2, e 108° do CPEREF, integrada na gestão controlada enquanto meio de recuperação da empresa, está, pois, ao serviço de interesses e valores que se revestem inequivocamente de dignidade constitucional e são susceptíveis de legitimar e justificar a invocada restrição do direito de propriedade, interesses e valores esses que, de resto, dispõem de tutela constitucional directa, designadamente nos arts. 9°, al. a), 58°, 61°, nº
1, e 81°, als. a) e c), da Constituição.
11ª - A conformidade de uma providência adoptada ao abrigo dos arts. 100°, nº
2, e 108° do CPEREF com as regras constitucionais será tanto mais evidente quanto seja respeitado, na alienação das participações, o princípio da igualdade entre todos os accionistas. Ora, isso mesmo é o que ocorre na situação dos presentes autos.
12ª - A lei acautela suficientemente o direito dos titulares das participações sociais alienadas a uma justa contrapartida, na medida em que confere ao juiz o poder de, na homologação da medida de recuperação aprovada pela Assembleia de Credores, apurar da razoabilidade do preço por aquela fixado e, sendo caso disso, proceder, ele próprio, à fixação do preço que entenda mais adequado.
13ª - Face a todo o exposto, é inequívoco que as normas dos arts. 100°, nº 2, e
108° do CPEREF, na aplicação que delas foi feita nas doutas decisões das Instâncias, respeitam o chamado princípio da proporcionalidade, na sua tripla dimensão de adequação da medida tomada à prossecução dos fins visados pela lei, de necessidade da medida para a obtenção desses mesmos fins (exigibilidade) e de não adopção de medidas desproporcionadas ou excessivas (proporcionalidade em sentido estrito).
14ª - A justificação, a necessidade e a proporcionalidade da medida concretamente aprovada ficaram sobejamente demonstradas nos autos do processo de recuperação, tendo sido reafirmadas no douto acórdão da Relação de Évora.
15ª - No plano de gestão controlada que submeteram à Assembleia de Credores da A, os proponentes repetidamente afirmam que consideram a alienação de participações como um instrumento absolutamente essencial da recuperação da empresa, porquanto é por via dela que se permite aos credores acederem ao capital da A, em termos tais que lhes possibilitem a assunção do controlo da empresa e dos seus activos e, por via disso, tentarem ressarcir-se, no todo ou em parte, dos danos resultantes da não satisfação dos seus créditos.
16ª - A via mais directa e segura para atingir o propósito citado consistiria na aprovação do 'acordo de credores' como meio de recuperação da empresa, extinguindo-se a A, o que levaria a que os seus actuais accionistas ficassem despojados das acções de que hoje são titulares sem que lhes assistisse o direito a qualquer contrapartida, mas também sem que tal pudesse suscitar reservas de nenhuma espécie, atento o facto de as ditas acções serem desprovidas de todo o valor económico.
17ª - A gestão controlada surge assim, para os credores da A, como um mero sucedâneo do acordo de credores, unicamente determinado pelo fito de não privar, por completo, os anteriores accionistas das suas participações.
18ª - Os credores não mantêm incólumes os seus créditos, uma vez que eles, em contrapartida da possibilidade de acederem ao capital social da A, quase que abdicam de exercer os direitos de que são titulares, atenta a moratória de 50 anos a que eles ficam sujeitos.
19ª - Na perspectiva dos credores, não era indiferente a subsistência do anterior plano de gestão controlada ou a adopção de um novo plano ao abrigo da nova redacção do art. 8° do Dec.-lei n° 132/93, de 23 de Abril; já no que respeita à tutela dos interesses dos accionistas da A, o novo plano conduz a resultados absolutamente similares aos do anterior, uma vez que aos anteriores accionistas está reservada, em qualquer dos planos, a mesma percentagem do capital social da A.
20ª - Sendo característico da gestão controlada um plano de intervenção global,
é natural - e decorre mesmo da própria lei - que nesse plano se incluam providências concretas, como a modificação do prazo de vencimento dos créditos, que são comuns a outros meios de recuperação da empresa, ou que, se tomadas individualmente, devessem efectivamente qualificar-se de forma diversa.
21ª - Atenta a noção constante do art. 66° do CPEREF, é inequívoco que a modificação do prazo de vencimento dos créditos só consubstanciará uma concordata no caso de ser aprovada pelos credores como uma medida isolada ou conjugada, apenas, com a redução ou com outras medidas de modificação dos créditos.
22ª - No caso dos autos, porém, a moratória aprovada pelos credores da A não é uma medida isolada, mas integra-se num 'plano recuperação global, com medidas de modificação de passivo e de reorganização do capital, levado a cabo por uma nova administração e com a fixação de um regime próprio de fiscalização', pelo que, sendo inexistente o carácter contratual que supostamente estará na base da necessidade de consentimento da empresa devedora, não há qualquer razão para sujeitar esta medida ao consentimento da A.
23ª - O art. 55°, n° 2, do CPEREF, na interpretação que dele é feita pela doutrina mais conceituada, não impõe o acordo da empresa devedora para toda e qualquer concordata, mas apenas relativamente àquelas que comportem a dação em cumprimento ou a cessão de bens aos credores. Ora, é manifesto que não é esse o caso da medida de modificação do prazo de vencimento dos créditos contida no plano de gestão controlada da A.
24ª - Sempre improcederiam por completo, pois, as conclusões da B relativamente aos supostos vícios das normas do CPEREF dos arts. 55°, nº 2, e 67°, nº 2 (pois que não foi a concordata a providência recuperatória aprovada pelos credores da A nem era necessário o acordo da empresa para a sua aprovação), e dos arts. 87°, nº 2 e 97° (porquanto a medida aprovada, com o acordo da maioria dos credores legalmente exigida, foi a gestão controlada, a qual não supõe como consequência imediata a criação de um fundo de maneio positivo). Termos em que: a) deverá recusar-se conhecer do objecto do recurso interposto na parte respeitante às normas dos arts. 55°, nº 2, e 67°, nº 2 do CPEREF, ou, se assim não se entender, não se declarar a inconstitucionalidade de tais normas; b) deverá negar-se provimento ao recurso na parte restante e, consequentemente, não se declarar a inconstitucionalidade das normas dos arts. 100°, nº 2, e 108° do CPEREF . JUSTIÇA.
Os demais recorridos não contra-alegaram.
Cumpre apreciar e decidir.
II Fundamentação A Delimitação do objecto do recurso
3. A recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade à Constituição das normas dos artigos 55º, nº 2, 67º, 87º, 100º, nº
2, e 108º, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência.
No entanto, a recorrente, antes da prolação da decisão recorrida, apenas suscitou a inconstitucionalidade das normas dos artigos 100º, nº 2, e
108º do mencionado diploma (cf. alegações de fls. 73 e ss.). Tal conclusão não é de modo algum infirmada pelas considerações da recorrente constantes das alegações, segundo as quais a apreciação da questão de constitucionalidade suscitada (e que se vai apreciar) se estende a todos os preceitos invocados. Na verdade, a decisão de alienação forçada de participações sociais encontra fundamento suficiente e autónomo nos mencionados artigos 100º, n.º2, e 108º, referindo-se os demais preceitos a aspectos específicos do processo de recuperação de empresas que não têm implicação directa naquela medida.
Desse modo, o Tribunal Constitucional apenas procederá à apreciação da conformidade à Constituição das normas dos referidos artigos 100º, nº 2, e
108º.
B A eventual inconstitucionalidade das normas dos artigos 100º, nº 2, e 108º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência
4. Os artigos 100º, nº 2, e 108º, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência têm a seguinte redacção: Artigo 100º Providências de gestão controlada
1 - Constituem providências de gestão controlada as mencionadas nos nºs 1 e 2 do artigo 88º, quando integradas num plano de intervenção duradoura na direcção técnica ou administrativa da empresa, entregue a nova administração.
2 - Pode também servir de base à gestão controlada a a1ienação de participações representativas da totalidade ou de parte do capital social da empresa.
3 - Nos casos a que se referem os números anteriores, o regime especial da providência que serve de base ao plano global não prejudica a aplicação das regras próprias da gestão controlada.
Artigo 108º Alienação de participações sociais
1 - A alienação de participações representativas da totalidade ou de parte do capital social da sociedade devedora só deve ser aprovada quando justificadamente considerada pelos credores como instrumento essencial de recuperação da empresa, nos termos do plano aprovado.
2 - A alienação só deve ser seguidamente homologada quando, ouvidos os titulares das participações, se mostre que a manutenção da titularidade delas constitui impedimento ponderoso à execução das restantes providências do plano de recuperação .
3 - A venda é promovida pela nova administração, cabendo ao juiz fixar a modalidade mais ajustada às circunstâncias; cabe ainda ao juiz autorizar a venda em função do preço mínimo oferecido.
A recorrente considera que a alienação forçada de participações sociais, no âmbito de um processo especial de recuperação de empresas, prevista nas normas contidas nos preceitos transcritos, viola o direito à propriedade, insito no artigo 62º da Constituição, e o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º da Constituição.
Para se proceder à apreciação da questão de constitucionalidade suscitada nos presentes autos, é importante caracterizar, ainda que sumariamente, o contexto fáctico e normativo no qual a alienação de participações sociais é determinada, assim como identificar as finalidades que essa medida prossegue. Só desse modo será possível realizar a ponderação de valores que a questão de constitucionalidade suscitada reclama. Assim, cabe realçar que a alienação forçada de participações sociais, contra a qual a recorrente se insurge, constitui, no âmbito da recuperação económica de uma qualquer empresa uma medida que visa possibilitar a viabilidade financeira da empresa e, nessa medida, assegurar os postos de trabalho de quem na empresa exerce a sua actividade profissional, garantir os investimentos já realizados e, em última análise, permitir a subsistência da recorrida como agente relevante e actuante no mercado económico e empresarial nacional (é assim que é perspectivada pelo tribunal a quo, não cabendo ao Tribunal Constitucional pôr em causa tal entendimento, e desde logo é assim que a própria lei a configura – cf. artigo 108º, n.º 2, transcrito supra).
Consequentemente, a não concretização do plano de recuperação da empresa, nomeadamente da medida de alienação parcial de participações, comprometendo a própria estratégia de viabilização económica da empresa recorrida, com todas as consequências sociais, financeiras e políticas inerentes, repercute-se também na esfera dos detentores das participações sociais cuja alienação se pretende, na medida em que a falência da empresa implica, necessariamente, a desvalorização das participações dos sócios, isto é, dos direitos cuja tutela agora é reclamada.
Por outro lado, a medida em causa, decidida em Assembleia de Credores, tem de ser homologada, como foi no caso, nos termos da lei, por um juiz, o que garante a verificação, por uma entidade independente e isenta, da adequação e da legalidade da medida em causa (cf. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e Falência Anotado, 1994, anotação ao artigo 108º).
É, pois, neste quadro que deve ser confrontada a dimensão normativa impugnada com os artigos 62º e 18º da Constituição.
5. A protecção do direito à propriedade encontra-se consagrada no artigo 62º da Constituição.
A consagração constitucional de tal direito confere uma protecção efectiva contra privações ou restrições arbitrárias ou desprovidas de fundamento do direito em causa (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 1993, p. 332).
A tutela constitucional do direito à propriedade não significa, porém, que o legislador não possa consagrar em determinados casos limitações ou restrições a esse direito (cf., neste sentido, referindo-se genericamente aos direitos fundamentais, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2ª Edição, 2001, p. 274 e ss). Com efeito, não
é incompatível com a tutela constitucional da propriedade a compressão desse direito, desde que seja identificável uma justificação assente em princípios e valores também eles com dignidade constitucional, que tais limitações ou restrições se afiguram necessárias à prossecução dos outros valores prosseguidos e na medida em que essas limitações se mostrem proporcionais em relação aos valores salvaguardados. No Acórdão n.º 471/2001, o Tribunal Constitucional, confrontando o artigo 101º do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresas e Falência com o artigo 62º da Constituição, considerou que 'o facto de o texto constitucional não estabelecer restrições explícitas à propriedade privada não significa que elas não possam existir'. Também no Acórdão 187/2001, o Tribunal Constitucional refere que o direito de propriedade deve ser articulado com outras exigências constitucionais.
Na ordem axiológica constitucional é possível, pois, encontrar fundamento legítimo para a restrição de dimensões mais ou menos abrangentes do direito de propriedade. Com efeito, consubstanciando a Constituição uma multiplicidade de valores, há que proceder à compatibilização e harmonização desses valores, o que implicará, em determinados casos, compressões ou afectações, em face de uma ponderação de interesses assente em critérios também eles constitucionalmente relevantes. Não é, portanto, procedente sustentar, como parece pretender a recorrente, que a Constituição apenas admite limitações ao direito à propriedade no caso de expropriação por utilidade pública (neste sentido, cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 334).
6. No presente caso, como se sublinhou, é submetida ao Tribunal Constitucional a apreciação da conformidade à Constituição da norma que prevê a alienação forçada de participações sociais como medida necessária (essencial) para a recuperação da empresa.
Na ponderação que o confronto da norma impugnada com a Constituição reclama há ainda que explicitar alguns aspectos. Na perspectiva dos titulares das acções que irão ser alienadas, estão em causa naturalmente os respectivos interesses patrimoniais que se concretizam nos direitos inerentes a essa titularidade. É assim afectada uma dimensão do direito de propriedade (o facto de estarem em causa participações sociais não colide com tal afirmação – cf., nesse sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., p. 331). Mas a afectação de uma dada dimensão do direito de propriedade – direito esse de resto economicamente menos valorizado pela falência da empresa – ocorre para salvaguardar, como se mencionou, a subsistência de uma unidade produtiva relevante no mercado empresarial, de postos de trabalho e, em última instância, de um factor de desenvolvimento regional e, nessa medida, nacional.
Cabe, neste momento, invocar de novo o que se deixou dito a propósito do regime da alienação forçada de participações sociais, nomeadamente que tal alienação é tida como essencial para a prossecução dos objectivos enunciados e é objecto, como foi no caso, de homologação judicial, o que faculta um controlo efectivo da deliberação da Assembleia de Credores (para além de, nos termos do artigo 108º, nº 2, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, ocorrer a audição dos titulares das participações).
Ora, em face destes factores de ponderação, há que concluir pela não inconstitucionalidade da norma em questão. Na verdade, o sacrifício solicitado aos titulares das participações sociais alienadas é adequadamente justificado no plano constitucional pela relevância dos valores salvaguardados com a medida, nomeadamente os inerentes à viabilização de um agente económico, à preservação de postos de trabalho e à manutenção de uma unidade produtiva no mercado nacional [cf., neste sentido, Coutinho de Abreu, 'Providências de Recuperação de Empresas e Falência (Apontamentos de Direito Português)', Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Vol. LXXIV, p. 118, onde é citada doutrina e jurisprudência]. Cabe ainda sublinhar mais uma vez que a procedência da tese da recorrente traduzir-se-ia numa desvalorização significativa das participações sociais, uma vez que seria inviabilizado o plano de recuperação da empresa (cf. artigo 108º, nº 2, do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência), podendo mesmo ficar definitivamente comprometida a possibilidade de recuperação do capital investido. Assim, e de acordo com esta perspectiva, a não concretização da alienação, impedindo a recuperação económica da empresa, implicaria uma afectação do próprio direito de propriedade dos titulares das acções (no caso, o seu valor económico), uma vez que estes passariam a ser titulares de participações numa empresa falida. Nessa medida, a pretensão da recorrente afigura-se, ao contrário do que é sustentado, incompatível com uma efectiva e eficaz protecção da propriedade, dado não ter a virtualidade de assegurar a subsistência do conteúdo funcional do direito de propriedade cuja afectação se invoca.
7. Conclui-se, portanto, pela improcedência do presente recurso.
III Decisão
8. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não julgar inconstitucionais as normas dos artigos 100, nº 2, e 108º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, confirmando, consequentemente, o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. ~
Lisboa, 2 de Outubro de 2002 Maria Fernanda Palma Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa