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Processo nº 342/02
2ª Secção Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
A Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça (1ª Secção), proferiu o Relator a seguinte DECISÃO SUMÁRIA:
'1. O Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), veio interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ‘ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artº 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com a redacção introduzida pelas Leis nºs
85/89 e 13-A/98, de 7 de Setembro e 26 de Fevereiro’, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (1ª Secção), de 5 de Março de 2002, que ‘recusou a aplicação da norma jurídica constante da alínea b) do artº 7º do Dec.-Lei nº 437/78, de 28 de Dezembro, com fundamento na sua inconstitucionalidade’, por violação ‘dos artºs 2º e 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, enquanto interpretada aquela alínea no sentido de que o privilégio imobiliário geral nela conferido tem preferência sobre a hipoteca da recorrente Caixa Geral de Depósitos’.
2. É certo ter o acórdão recorrido, para se chegar àquele juízo de inconstitucionalidade, ponderado o seguinte:
‘O artº 7°, b) do DL n° 437/78, de 28/12, ao criar um privilégio imobiliário geral que prefere à hipoteca nos termos do artº 751° do CC, está realmente inquinado de inconstitucionalidade, desde logo por violação do princípio do Estado de Direito democrático. Com efeito, o artº 2° Constituição estatui que a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização de democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa. E como referem Marcelo Rebelo de Sousa e José de Melo Alexandrino, na Constituição da República Portuguesa Comentada, pág. 72:
«Trata-se de um verdadeiro princípio fundamental, dado o seu cariz congregador de inúmeros outros princípios (ou subprincípios) e regras, com destaque para os seguintes:...da protecção contra o arbítrio, da tutela da confiança...». Ora o artº 7°, b) em referência, mediante a aplicação do regime do artº 751° do CC, confere ao privilégio creditório imobiliário geral a natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos os imóveis existentes no património da entidade devedora dos apoios financeiros do IEFP no âmbito do emprego e formação profissional, atribuindo-lhe preferência sobre a hipoteca da Caixa Geral de Depósitos. Não estando tal privilégio imobiliário geral sujeito a registo, viola, ao neutralizar a garantia real da hipoteca registada, o princípio da confiança, a segurança jurídica que o registo predial visa garantir, consubstanciando um ónus oculto e configurando uma arbitrariedade com que a Caixa Geral de Depósitos não podia razoavelmente contar. Podia de resto o IEFP ter registado a hipoteca legal conferida pela al. c) do artº 7°, pelo que nem sequer o privilégio imobiliário geral lhe era imprescindível, sendo, por conseguinte, também violador do artº 18°, n° 2 da Lei Fundamental, que estabelece o princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso, ao comandar que a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos’ E daí a conclusão de que, ‘no que tange à graduação dos créditos pelo produto dos bens imóveis apreendidos para a massa falida, não pode portanto o crédito do IEFP ficar à frente do crédito da Caixa Geral de Depósitos, S.A. e dos créditos dos trabalhadores’.
3. Ora, ao mesmo juízo de inconstitucionalidade chegou o Tribunal Constitucional, a propósito doutras normas, em vários acórdãos, e podem aproveitar-se perfeitamente in casu os fundamentos usados nesses arestos (cfr., por todos, o recente acórdão nº 226/02, inédito, onde se identificam os arestos). Daí ser simples a questão a resolver. Há, pois, que remeter para tais fundamentos e aplicar a doutrina expressa em tais acórdãos, a propósito do privilégio imobiliário geral e da sua preferência
à hipoteca, nos termos do artigo 75º, do Código Civil, não se vendo motivo para divergir só porque se trata aqui de norma distinta das que versaram aqueles acórdãos. Com o que não merece provimento o presente recurso.
4. Termos em que, DECIDINDO, nego provimento ao recurso'. B. Dela veio o Instituto recorrente 'reclamar para a conferência, ao abrigo do nº 3 do citado preceito legal' (o artigo 78º-A, da Lei nº 28/82, na redacção do artigo 1º, da Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro), defendendo que não há analogia entre o caso dos autos e as hipóteses versadas nos acórdãos identificados na DECISÃO reclamada, 'mais não seja devido à natureza dos créditos do IEFP, ora Recorrente, e consequente especificidade', e desenvolvendo assim a sua argumentação:
'5. É que, tais créditos - e, de resto, como os autos elucidam - resultam da atribuição de apoios financeiros concedidos para efeitos de criação e manutenção de postos de trabalho, bem como para formação profissional;
6. Concretizando, são o correspectivo de uma prestação feita em beneficio de uma pessoa singular ou colectiva, no que se assemelham aos créditos das entidades privadas, nomeadamente e maxime instituições bancárias, ressalvadas da extinção dos privilégios (prevista no art. 152° do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n° 132/93, de 23 de Abril), aos quais parece razoável que, por igualdade de razões, fiquem equiparados;
7. Os créditos das instituições de segurança social, ao invés, advêm de prestações contributivas;
8. Não é por acaso que, de acordo com o Acórdão uniformizador de jurisprudência n° 1/2001, de 28 de Novembro de 2000, proferido no âmbito da Revista Ampliada n°
943/99 - 1 a Secção, publicado no Diário da República I Série - A, de 5 de Janeiro de 2001, não se aplica ao IEFP o regime do citado art. 152° do CPEREF;
9. Afinal, e contrariamente, pois, ao defendido na douta decisão reclamada, não será tão simples, como poderia parecer, a questão a decidir;
10. N estes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, a final, ser dado provimento ao recurso'. C. Respondeu à reclamação 'o representante do Ministério Público junto deste Tribunal', sustentando que ela deve ser indeferida, na base das seguintes razões:
'1 – Infere-se da jurisprudência recente deste Tribunal – confirmada maioritariamente pelo Plenário – que traduz interpretação inconstitucional das normas que estabelecem o regime dos privilégios creditórios imobiliários gerais, conferidos a quaisquer entidades, a aplicação do regime constante do artigo 751º do Código Civil, enquanto lhes atribui – em violação do princípio da confiança – prevalência e sequela sobre direitos reais de terceiros, incidentes sobre algum imóvel incluindo no património do sujeito passivo e abrangido pelo referido privilégio geral.
2 – Ora, nesta perspectiva, parece existir efectiva analogia entre o caso dos autos e os precedentes jurisprudências referenciados na douta decisão sumária, ora impugnada pelo reclamante.
3 – Sendo certo que a violação do princípio da confiança, decorrente do referido fenómeno de prevalência do privilégio geral sobre direitos reais de terceiros, nada tem que ver com a natureza dos créditos do Instituto ou com a aplicabilidade do regime do artigo 152º do CPEREF.
4 – Termos em que – por evidentes razões de celeridade e eficácia –não vemos qualquer utilidade em determinar a tramitação ‘ordinária’ do presente recurso, apesar de inexistir um precedente jurisprudêncial, incidente precisamente sobre o preceito legal objecto do recurso de fiscalização concreta interposto.
5 – Na verdade – e face à evidência da jurisprudência constitucional já firmada sobre a figura – e admissibilidade constitucional – do referido ‘privilégio imobiliário geral’, não vemos que a produção de alegações pudesse acrescentar algo de substancialmente relevante ou inovatório sobre a matéria'. D. Cumpre decidir.
É facto, como se reconhece na DECISÃO reclamada e regista o Ministério Público, na sua resposta, em que inexiste 'um precedente jurisprudencial, incidente precisamente sobre o preceito legal objecto do recurso de fiscalização concreta interposto', mas também é verdade que a violação do princípio da confiança, em que assenta a jurisprudência corrente do Tribunal Constitucional (e levou agora
à declaração com força obrigatória geral da inconstitucionalidade das normas versadas nos acórdãos a que se refere a DECISÃO reclamada – cfr. Acórdãos nºs
362/02 e 363/02, inéditos), é o fundamento essencial que vale para todas as hipóteses em que se constata o 'fenómeno de prevalência do privilégio geral sobre direitos reais de terceiros', talqualmente se expressa o Ministério Público. Não se vê, pois, motivo para alterar o sentido decisório da DECISÃO reclamada, tal como dela consta. E. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação. Lisboa, 2 de Outubro de 2002- Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa