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Proc. nº 813/01 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 – A, identificada nos autos, requereu no Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, a suspensão de eficácia da deliberação do Conselho de Administração do Centro Regional de Oncologia de Coimbra de 19/12/2000, que a puniu, no âmbito de processo disciplinar, com a pena 210 dias de suspensão.
Depois de vicissitudes processuais várias, que não interessam para o caso, foi proferida sentença pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Coimbra, de fls. 425, que indeferiu o pedido com o fundamento de se não verificar o requisito constante do artigo 76º nº 1 alínea a) da LPTA.
Não se conformando com a sentença, a recorrente dela interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo que, por acórdão de fls. 540 e segs, confirmou a sentença recorrida.
É deste acórdão que vem interposto o presente recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º nº. 1 alínea b) da LTC, pretendendo a recorrente a apreciação da constitucionalidade da interpretação dada à norma do artigo 76º nº. 1 alínea a) da LPTA que, segundo a recorrente, viola os artigos 20º nº. 1 e 268º nº. 4 (princípio da tutela judicial efectiva) e 32º nº. 2 (princípio da presunção da inocência), todos da Constituição.
Convidada a produzir alegações, a recorrente concluiu, nos seguintes termos:
'1. A alinea a) do nº. 1 do artigo 76º (por lapso, escreveu-se artigo 70º) da LPTA tem que ser interpretada no sentido de que quando estejam em causa decisões disciplinares de suspensão de exercício de funções, se deve ter sempre por verificado este requisito sob pena de o normativo sofrer de inconstitucionalidade material por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva.
2. O direito a uma tutela judicial efectiva e o princípio da presunção de inocência estabelecidos, respectivamente, no artigo 20º, 268º nº. 4 da CRP e no artigo 32º nº. 2 da Lei Fundamental restam violados, quando, em interpretação do requisito que se refere a alínea a) do nº. 1 do artigo 76º (por lapso, escreveu-se artigo 70º) da LPTA, se admite a não suspensão de eficácia de uma sanção disciplinar de suspensão do exercício de funções estando interposto recurso contencioso e antes do trânsito em julgado desta decisão jurisdicional.'
Cumpre decidir.
2 – A questão de constitucionalidade que a recorrente coloca a este Tribunal não é, na sua quase totalidade, nova.
E ela é a de saber se, no meio processual de suspensão de eficácia de actos administrativos, a exigência constante do artigo 76º nº 1 alínea a) da LPTA da verificação para o requerente de prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação com efeito provável da imediata execução do acto não deve considerar-se sempre cumprida em caso de actos que punem o requerente com penas disciplinares de suspensão do exercício de funções, sob pena de violação dos princípios constitucionais da tutela judicial efectiva e da presunção de inocência do arguido.
Note-se, em parêntesis, que, na lógica argumentativa da recorrente não é sequer ponderada a exigência do requisito cumulativo constante do alínea b) do mesmo artigo 76º nº 1 da LPTA, pois, dada a razão invocada que imporia a verificação do requisito da citada alínea a) – o provável cumprimento da pena antes da decisão jurisdicional que julga a legalidade do acto punitivo – parece que, em boa verdade, o que a recorrente julga conforme à Constituição seria apenas um efeito suspensivo automático do recurso contencioso daquele acto.
Vejamos, pois.
3 – Tomando como parâmetro de constitucionalidade o princípio da tutela jurisdicional efectiva, consagrado, em geral, no artigo 20º nº da CRP e, em particular, no que concerne ao contencioso administrativo, no artigo 268º nº
4 da CRP, tem este Tribunal apreciado, em numerosos arestos, quer a norma constante do artigo 76º nº 1 da LPTA, considerada globalmente e enquanto reguladora dos requisitos que condicionam o deferimento do pedido de suspensão de eficácia, quer especificamente as normas ínsitas nas alínea a) ou b) do mesmo artigo e número.
E tem-no feito seja em matéria de actos disciplinarmente sancionatórios seja em matéria de actos lesivos ablativos que, do mesmo modo, podem, se executados, impedir a reconstituição natural da situação anterior.
Assim, no acórdão nº 303/94, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 27º vol. p. 829, escreveu-se:
'3.2. De acordo com o artigo 266º da Constituição, a 'Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos' (nº 1), estando os órgãos e agentes administrativos subordinados ao Diploma Básico e à lei, devendo 'actuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade' (nº 2).
A prossecução daquele interesse público, aliado ao comando imposto à Administração no sentido de pautar a sua actividade no respeito pela Constituição e pela lei e observando os assinalados valores constitucionais - pelo que daqui se poderá retirar uma presunção de legalidade quanto à actuação administrativa - , justifica, assim, hodiernamente e face ao texto constitucional, que os actos administrativos, em regra, sejam desde logo eficazes e passíveis de execução, isto é, obrigando por si e podendo ser imposto coercivamente independentemente de sentença judicial (cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª edição, Tomo I, 447 e segs.; Freitas do Amaral, Direito Administrativo, III, Lições de 1983-1984, 115, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º Vol.,
434), conquanto esta característica se não encontre consagrada expressamente na Lei Fundamental, como, por exemplo, sucede com a Constituição espanhola (cfr. art. 103º).
Pois que a mencionada prossecução - balizada por limites externos, no ponto em que o interesse público 'fixa o círculo da actividade permitida à Administração' e em que a actividade administrativa sofre de limites decorrentes de regras 'que se destinam a assegurar a licitude do seu comportamento por normas de regulamentação intersubjectivas, as quais lhe estabelecem uma barreira que não pode ultrapassar no desenvolvimento da sua actuação' (cfr. Rogério Soares, Interesse Público, Legalidade e Mérito, pag.
123) - em muitos casos vai afectar unilateralmente a esfera jurídica de terceiros, é que se concebe que estes venham pôr em causa a actuação administrativa por intermédio do cabido recurso contencioso. Mas, dada o atributo dos actos administrativos acima indicado e que deflui dos valores a que nos referimos, a mera interposição de recurso contencioso não irá, em regra, obstar à produção de efeitos do acto impugnado (cfr. Jean Rivero, Direito Administrativo, 1981, 253).
Porém, são facilmente configuráveis situações em que da imediata execução do acto - já impugnado ou que se deseja impugnar - resultem para o interessado alterações de tal sorte graves na sua esfera jurídica e que conduzam a que a eventual anulação desse acto por via do recurso de anulação não possa restaurar (ou só muito dificilmente possa tornar reversível), a situação que hipoteticamente deteria caso o acto não tivesse sido executado, e isto quer se atente na óptica da própria situação objectivamente considerada, quer se atente na natural demora na tomada de decisões no processo jurisdicional anulatório (cfr. Sampaio Caramelo, Da Suspensão da Executoriedade dos Actos Administrativos por Deisão dos Tribunais Administrativos, Revista O Direito, ano
100º, nº 1, 32 e segs., e nº 2, 229 e segs., e Antonio Cavallari, La Tutela Cautelare nel Guidizio Amnistrativo, na Revista I Tribunali Amnistrativi Regionali, 10º, 146).
Por tal circunstância, e não se defendendo, sem mais, que isso conduza desde logo a um princípio segundo o qual a interposição de recurso contencioso de anulação tem de acarretar a suspensão da eficácia do acto anulando (já que se não pode escamotear que há aqui que balancear, em função do próprio ordenamento jurídico - aqui se incluindo o preceituado constitucionalmente - , o interesse dos administrados e a prossecução do interesse público - cfr. R.Soares, ob. cit., 99 e segs.), foi gizada a figura da suspensão de eficácia.
3.3. Uma tal figura, como Pedro Machete (A Suspensão Jurisdicional da Eficácia de Actos Administrativos, na Revista O Direito, ano
123º, 236 e 237) sublinha, 'não procura primariamente tutelar a posição dos particulares numa determinada relação jurídico-administrativa; mas sim evitar a alteração da esfera jurídica destes, por via de actos de autoridade', pelo que ela 'evidencia o conflito entre as prerrogativas de direito público e a garantia das posições jurídicas subjectivas dos particulares'.
Não se acedendo desde logo a uma concepção segundo a qual o instituto da suspensão seria algo de escrescente relativamente à pureza do sistema de contencioso de anulação (conforme parece defluir das Noções de Direito Administrativo, 1982, de Sérvulo Correia - pag. 517), e também não tomando neste ponto directamente posição sobre um liminar afastamento no respeitante a não configurar tal instituto como uma dimensão essencial ou necessária da garantia de recurso contencioso dos actos da Administração enquanto concretizadora do direito de acesso aos tribunais, o que se terá de convir é que, de qualquer das formas, sempre será lícito ao legislador conformar, concretizar e modelar o dito instituto, sob pena de, na ausência dessas conformação e modelação, se poder cair num sistema em que a mera interposição de recurso contencioso desencadearia a não executoriedade do acto impugnado, com toda a corte de perigos de paralização da actividade administrativa a bel-prazer dos administrados e, o que é mais importante, sem que se dilucidassem os casuísmos aconselhadores ou desaconselhadores da suspensão, presente o binómio, tantas vezes contraditório, dos interesses públicos e de garantia dos interesses particulares.
Ora, navegando naquela posição de não afastamento liminar (o que inculcará, em larga medida, a aceitação de que o direito à tutela jurisdicional dos actos da Administração perspectivados como ilegais pelo interessado terá como aferição a eficácia real e prática da decisão judicial em termos de atingir uma reparação verdadeira dos interesses lesados - cfr. Juam Santamaria Pastor, no estudo intitulado Tutela judicial efectiva y no suspension en via de recurso, publicado nos números 100-102 da Revista de Administração Pública, 1625, onde se reporta a uma reparação verdadeira da esfera jurídica de quem apresenta uma pretensão perante as instâncias judiciais ou a uma reparação da situação para a qual se reclama uma tutela jurisdicional), o que importa saber, anuindo-se a que cabe na liberdade conformadora do legislador o estabelecimento de requisitos modeladores da suspensão de eficácia, é se a previsão normativa desses requisitos - de onde resulta que, fora dos casos e situações não abrangidos por essa previsão, não seria admissível a suspensão - vai atingir o núcleo essencial da garantia constitucional que, na dita posição,
é abrangente do instituto da suspensão ou, pelo menos, é co-natural ao sistema de tutela jurisdicional.'
Por seu turno, expendeu-se no Acórdão nº 631/94, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', 29º vol. p. 229:
'Não se questiona, na linha do acórdão deste Tribunal Constitucional nº 450/91, que o dito instituto, como meio processual acessório do contencioso administrativo próprio ou por definição, o contencioso dos actos administrativos, não se pode dissociar da garantia do recurso contencioso, como via impugnatória principal. Assim, tudo está em saber se o nº 1 do artigo 76º - como sempre é invocado tout court pelo recorrente - e que contém a enunciação dos 'requisitos' cumulativos, para ser deferida a suspensão da eficácia, é ou não conforme à Lei Fundamental. Lê-se no citado acórdão nº 450/91:
'A suspensão da eficácia de um acto administrativo, salientamos já, se bem que perfunctoriamente, é uma medida cautelar posta ao serviço do administrado que, detendo legitimidade para impugnar contenciosamente o acto administrativo que o afecte, pode provisoriamente obstar à sua imediata execução se esta lhe provocar prejuízos de difícil reparabilidade. Para o efeito, pretende-se assegurar o efectivo proveito da procedência do recurso a que tem direito, se for esse o caso, congraçando-o com a inexistência de grave lesão do interesse público e a ponderação no caso de acto já executado, dos interesses do outro administrado beneficiário dessa execução'. E mais à frente:
'Não se vê, porém, como é que o mecanismo da suspensão de eficácia pode afectar, e em que medida, o direito ao acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legítimos dos interessados requerentes. Não está em causa, obviamente, o direito ao recurso (pelo menos neste momento) mas uma eventual dificultação da utilização do apontado mecanismo.
A fixação de um determinado condicionalismo fáctico, como necessário para pedir a suspensão de eficácia, nem derroga a tutela judicial efectiva, a exercer-se mediante recurso contencioso de anulação(...)nem implica tarefa que não seja a do legislador ordinário'. Também o acórdão nº 43/92, publicado na II Série do Diário da República, nº 45, de 23 de Fevereiro de 1993, e confirmado no Plenário, por via do acórdão nº
366/92, publicado no mesmo periódico oficial, aderindo à jurisprudência que cita do Tribunal Constitucional italiano, afirma que é 'erróneo o entendimento de que, competindo à lei ordinária determinar os casos de anulação de actos administrativos, fica na livre disponibilidade do legislador limitar (ou eliminar) o poder instrumental de suspensão dos actos impugnados'.
Ora, é essa exclusão ou limitação do poder de suspensão que não se demonstra, exigindo-se, como exige o nº 1 do artigo 76º, a verificação cumulativa dos requisitos aí enunciados, e isto mesmo que se entenda, como se entendeu no citado acórdão nº 43/92:' Este poder de suspensão é um elemento conatural de um sistema de tutela jurisdicional, pelo que a exclusão desse poder ou a limitação da área de exercício do mesmo a determinadas categorias de actos ou certos tipos de vícios contrasta com o princípio da igualdade sempre que não ocorra uma justificação racional da diversidade de tratamento'.
A discricionaridade legislativa quanto à enunciação de tais requisitos revela-se conforme aos parâmetros constitucionais do acesso à justiça administrativa, não se descortinando uma restrição à garantia do recurso contencioso, pois o interessado não fica impedido, de modo injustificado, de obter protecção para os seus direitos e interesses legalmente protegidos.'
Também no Acórdão nº 8/95, in Acórdãos do Tribunal Constitucional 30º vol p.323, citando e sufragando a tese expendida em voto do então relator no Acórdão nº
123/91, se escreveu:
'O direito de defesa judicial dos direitos e interesses legítimos, genericamente consagrado no artigo 20º., nº. 2, e, quanto à defesa contra actos administrativos, no nº. 3 do artigo 268º., inclui o direito à suspensão da eficácia desses actos nos termos da lei geral. A atribuição de bens à realização de fins das pessoas é efectuada pelo direito através do reconhecimento normativo de direitos subjectivos e de interesses legítimos. A eficácia da ordem jurídica subjectiva assim criada depende da disponibilidade pelos titulares desses direitos e interesses do direito da sua defesa judicial. Esta defesa não será, por sua vez, efectiva em muitos casos, se ao titular do direito ou do interesse legítimo não forem atribuídos, além do direito de acção, outros meios cautelares que visam igualmente garantir a possibilidade de reclamação dos fins a que os bens são juridicamente afectados. Uma aplicação desta exigência instrumental é expressa pelo artigo 8º. do Código de Processo Civil, quando diz que 'a todo o direito corresponde uma acção destinada a fazê-lo reconhecer em juízo ou a realizá-lo coercivamente, bem como as providências necessárias para acautelar o efeito útil da acção'. É sabido que a autonomização do direito processual se fez à custa da correspondência romanística entre direito e acção e é certo que a Constituição não dissolve o direito de defesa judicial em tantos direitos de defesa acessórios quantos os direitos subjectivos. Mas o princípio da garantia judicial efectiva dos direitos tem certamente assento constitucional no artigo 20º., e a insuficiência em muitas situações do simples direito de acção envolve a exigência constitucional de providências cautelares expressa no artigo 2º. do Código de Processo Civil. O próprio artigo 20º., consagra expressamente outros corolários daquele princípio, o qual se refere, não apenas aos direitos subjectivos, mas também a interesses legítimos, e que são os direitos a apoio judiciário na insuficiência económica, a informação e consulta jurídicas e ao patrocínio judiciário.
É neste contexto que se deve considerar a garantia constitucional de recurso contencioso dada pelo artigo 268º., nº. 3 (da 1ª revisão constitucional, hoje nº. 4), aos interessados, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios, independentemente da sua forma, a que na revisão de 1989 se acrescentou - só explicitamente - garantia dada aos administrados de acesso à justiça administrativa para tutela dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (nº. 5). É claro que o referido nº. 3 não representou nunca uma restrição, no âmbito da justiça administrativa, do princípio da efectividade da defesa judicial dos direitos e interesses legítimos, consagrado no artigo 20º.. Tratava-se antes de uma aplicação deste, melhor explicitado em 1989. Daqui se conclui que, tal como o direito de acção civil, garantindo o efeito útil deste último, assim o direito à suspensão judicial da eficácia dos actos administrativos vem garantir a efectividade dos direitos subjectivos materiais e dos interesses legítimos, que são ameaçados pela execução imediata dos actos administrativos impugnados em recurso contencioso. Em ambos os casos se trata de uma exigência constitucional, que a legislação ordinária se limita a concretizar. Nada disto implica uma opção unilateral dos administrados e contra a Administração Pública, nem que o regime constitucionalmente necessitado da garantia não estabeleça um equilíbrio entre os interesses públicos e privados em conflito, segundo critérios de justiça distributiva. Uma solução deste tipo é precisamente a da lei geral em vigor (artigo 76º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho), segundo a qual a suspensão só pode ser discutida se a execução do acto causar provavelmente prejuízo de difícil reparação para o requerente ou para os interesses que este defenda ou venha a defender no recurso, se a suspensão não determinar grave lesão do interesse público e se do processo não resultarem fortes indícios da ilegalidade da interposição do recurso. Há aqui uma margem deixada à valoração jurisprudencial dos interesses concretos em presença que não pode ser suprimida - deixa-se imprejudicada a possibilidade de formulação genérica de critérios valorativos. '
Nestes termos, qualquer que seja o entendimento, a disposição aqui constitucionalmente impugnada, dando, como se referiu, conteúdo a uma ponderação judicial entre o interesse do requerente e o interesse público, situa-se no
âmbito da 'liberdade conformativa do legislador estabelecer requisitos' de suspensão da eficácia dos actos administrativos, preservando o conteúdo essencial da garantia estabelecida nos nºs. 4 e 5 do artigo 268º. da Constituição (Acórdão 303/94, publicado no DR-II de 27/8/94). Acrescentar-se-á, aliás, que do carácter constitucionalmente lícito da ponderação de interesses estabelecida pelo artigo 76º., nº. 1 da LPTA decorre a improcedência dos argumentos que o recorrente reporta ao artigo 18º. da Constituição.
7. Da mesma forma, essa ponderação de interesses subjacente à norma questionada - e tendo agora presentes as referências do recorrente ao artigo
32º. da Constituição (compreensíveis apenas se se vir na suspensão de eficácia de um acto de aplicação de uma sanção administrativa, ainda, uma manifestação de um 'procedimento sancionatório', v. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª. Ed., Coimbra 1993, pág. 208 e 947) - essa ponderação de interesses, dizíamos, não retira ao processo de suspensão de eficácia a natureza de 'processo justo', designadamente com todas as garantias de exercício do contraditório. Neste contexto, aliás, a referência do recorrente a que a verificação do requisito em causa ocorre 'sem intervenção do julgador ou de agente imparcial', é incompreensível, estando, como está, em causa uma decisão judicial que, precisamente, verificou se esse requisito existia ou não. Igualmente, com a alegada violação dos princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade, não se vê (e o recorrente nada de concreto adianta a propósito) como uma norma que se limita a promover uma ponderação (judicial) entre o interesse público e o interesse pessoal do requerente da suspensão, pode implicar qualquer diversidade arbitrária de tratamento ou pôr em causa qualquer das vertentes caracterizadoras dos princípio da proporcionalidade (v. o Acórdão nº. 103/87, BMJ 363, 314)'.
Escreveu-se, ainda, no acórdão nº 181/98 in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional' 39º vol. p. 225 :
'7. Num sistema administrativo de tipo francês, ou de administração executiva, é reconhecida a primazia do interesse público sobre os interesses privados, o que leva a que a administração disponha de poderes de autoridade para impor aos particulares as soluções de interesse público que à sua realização forem indispensáveis (cf. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. II,
2ª edição, 1994, pp. 124 e 125).
Mesmo entendendo que o particular se encontra perante a Administração como um sujeito jurídico autónomo e em situação de igualdade, não pode deixar de se reconhecer que a Administração, no exercício da actividade pública, dispõe de um poder jurídico de afectar unilateralmente a esfera jurídica dos cidadãos (cf. Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, 1996, pp. 186, 187 e 542).
Assim, mesmo num modelo de Administração prestadora do Estado social, superado o modelo administrativo do Estado liberal, há que reconhecer que o estatuto da Administração na relação jurídica pública se diferencia do estatuto do particular, em consequência dos interesses que aquela prossegue, também eles com dignidade constitucional.
Ora, no presente recurso de constitucionalidade a requerente propugna que a interpretação do artigo 76º, nº 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, no sentido de conter requisitos cumulativos para o deferimento da suspensão de eficácia do acto impugnado viola o princípio do Estado de direito democrático e da igualdade.
Porém, um tal entendimento ignora que o desnivelamento nas relações entre a Administração (investida de poderes de autoridade, ou, se se preferir, no exercício de um poder jurídico unilateral) e os particulares é justificado pelos interesses colectivos que o exercício da actividade administrativa visa prosseguir. Por outro lado, tal entendimento não considera, igualmente, que a suspensão de eficácia dos actos administrativos é um mecanismo processual acessório que consubstancia a concretização de uma garantia dos particulares perante a Administração, na medida em que mitiga o poder unilateral desta (cf. Vieira de Andrade, Direito Administrativo e Fiscal, 1994/95, p. 112 e ss.).
Por último, e decisivamente, o entendimento da recorrente confunde o que possa ser uma discriminação constitucionalmente inadmissível do particular relativamente à Administração com uma adequada harmonização dos interesses em causa numa fase inicial do recurso de anulação.
Com efeito, a norma impugnada, ponderando o interesse público e o interesse do particular, permite a paralisação da actividade administrativa, quando a execução imediata do acto recorrido cause, com probabilidade, prejuízo de difícil reparação ao particular, quando tal paralisação não determine grave lesão do interesse público e quando inexistam indícios de ilegalidade do recurso interposto. Trata-se de uma ponderação razoável e criteriosa dos interesses em confronto que permite uma solução equilibrada e adequada à necessidade de composição do interesse público com a situação do particular.
Assim, a norma impugnada não colide com os princípios do Estado de direito democrático e da igualdade.'
Especificamente sobre a norma do artigo 76º nº 1 alínea a) da LPTA escreveu-se no Acórdão nº 345/99 in Acórdãos do Tribunal Constitucional 44º vol. p. 197 :
'A norma questionada, quando faz depender o decretamento da suspensão de eficácia do facto de o acto impugnado ser adequado a causar prejuízos de difícil reparação, não restringe o direito ao recurso contencioso. Limita-se, antes, a regulamentar o exercício de um tal direito em termos que, já se viu, são razoáveis e proporcionados - e nessa medida necessários - à prossecução do interesse público visado com a prática do acto impugnado (cfr. artigo 266º da Constituição) e à 'necessária eficácia' da Administração (artigo 267º, nº 2 da Constituição), sem descurar os legítimos interesses do requerente, pois que o protege contra o risco de prejuízos de difícil reparação. E também não há inconstitucionalidade por violação da garantia de tutela jurisdicional efectiva mediante a adopção de medidas cautelares adequadas, consagrada a partir de 1997 no nº 4 do artigo 268º, seja porque os limites resultantes dos interesses constitucionalmente protegidos que já se referiram são visados à partida pela exigência constitucional de adequação daquelas medidas cautelares, ou seja porque se deduzem sistematicamente da protecção constitucional ao interesse público prosseguido pela Administração e à necessária eficácia desta.'
Por fim, mais recentemente, o Plenário deste Tribunal, no seu acórdão nº
412/2000, louva-se no já citado Acórdão nº 345/99.
Como se vê, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, que aqui se reproduziu e – no que ao caso importa – se aceita, nunca julgou inconstitucional, considerando diversos parâmetros de constitucionalidade, quer todo o normativo constante do artigo 76º nº 1 da LPTA, quer apenas a norma da alínea a) do mesmo artigo e número, ainda que no âmbito das decisões disciplinares punitivas.
E ela é transponível para o caso, sem que a argumentação, não inovadora, da recorrente a infirme.
A jurisprudência administrativa conhecida vai, aliás, no mesmo sentido em que se insere o acórdão recorrido, não considerando como prejuízo relevante decorrente do acto punitivo aquele que apenas se consubstancia no próprio acto, muito embora, em casos específicos (designadamente de penas expulsivas), seja inerente
à pena imposta - e notório – um determinado dano que, no contexto de outras circunstâncias, particulares ou pessoais, invocáveis, se deva ter como irreparável ou de difícil reparação.
Aliás, o mesmo tipo de raciocínio levaria a um resultado absurdo: quanto menor fosse a pena suspensiva – e menor, em princípio, o dano dela decorrente – mais razões haveria para decretar a suspensão de eficácia do acto que a impusesse.
De todo o modo, tal como o Tribunal Constitucional vem decidindo pacificamente, a exigência da verificação de prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação, não viola o princípio da tutela jurisdicional efectiva do direito ao recurso contencioso, sendo certo que, no caso, o pretendido reconhecimento de se dever dar sempre como cumprida tal exigência quando se trata de uma punição disciplinar de suspensão do exercício de funções, significa, em direitas contas, a postergação desse requisito legal.
4 – Não de desconhece que o Tribunal Constitucional julgou já aplicável ao direito sancionatório, em geral, e ao direito disciplinar, em particular, o princípio da presunção de inocência do arguido.
Fê-lo, designadamente, nos acórdãos nºs 439/87 e 198/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional 10º vol. p. 513 e 16º vol. p. 473.
Depois de se sustentar que o princípio da presunção de inocência do arguido 'no seu núcleo essencial é aplicável ao processo disciplinar', afirmou-se no segundo aresto:
'(...) este princípio constitucional ilegitima manifestamente a imposição de qualquer ónus ou a restrição de direitos ao arguido, que representam a antecipação da condenação'.
Mais adiante e considerando que o princípio 'assume uma pluralidade de sentidos que exigem a sua concretização e o seu detalhamento progressivos perante as diversas situações processuais penais' (citação do Acórdão da Comissão Constitucional nº 168), escreve-se:
'(...) há-de dizer-se que o princípio não proíbe a antecipação de certas medidas cautelares e de investigação (de outro modo concluir-se-ia no sentido da inconstitucionalização da instrução criminal em si mesma) ou, como na situação do processo disciplinar sancionatório em apreço, na suspensão do exercício de funções e correlativa suspensão do vencimento resultante desse exercício efectivo pois que, neste caso, tal medida não configura uma antecipação dos efeitos da pena, nomeadamente da pena de demissão'.
Como, no caso, porém, estava em causa uma norma segundo a qual o funcionário implicado em qualquer processo disciplinar poderia ser desligado do serviço com perda total do vencimento enquanto durasse a instrução, julgou-se a norma inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade.
Ora, no caso agora em apreço, a situação é completamente diversa.
Com efeito, não se trata aqui de uma qualquer medida cautelar, mas de uma sanção imposta no termo de um processo disciplinar através de um acto administrativo, emanação de um poder de definição autoritária de uma determinada situação jurídica, poder esse próprio da Administração e exercido com observância do princípio da legalidade.
Há, pois, uma primeira definição da situação jurídica, em que de algum modo está pressuposta a responsabilidade disciplinar do arguido.
E se, como se salientou, são constitucionalmente admissíveis medidas cautelares suspensivas, no âmbito do processo disciplinar, sem prejuízo da sua necessária adequação e proporcionalidade, não se vê que o não se considerar provado um prejuízo irreparável ou de difícil reparação, quando só se invoca o dano consubstanciado na própria pena de suspensão do exercício de funções, aplicada por um acto administrativo presumidamente legal, contenda com o principio da presunção de inocência do arguido, no seu núcleo essencial.
Deste modo, não se mostra também violado o princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32º nº 2 da Constituição.
5 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa,11 de Julho de 2002- Artur Maurício Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa