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Procº nº 85/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. A interpôs junto da 1ª secção do Supremo Tribunal Administrativo recurso contencioso de anulação da Portaria nº 250/95, de 17 de Agosto, emanada dos Primeiro-Ministro e Ministro da Agricultura, por intermédio da qual, ao abrigo da alínea b) do artº 30º da Lei nº 109/88, de 26 de Setembro, na redacção conferida pela Lei nº 46/90, de 22 de Agosto, foi determinada a reversão de um prédio rústico, denominado Herdade ...., sito na freguesia de Ermidas do Sado, do concelho de Santiago do Cacém, prédio esse que foi expropriado a B e que ao recorrente foi dado de arrendamento pelo anterior proprietário e, posteriormente, pelo próprio Estado.
Após ter sido provocada a intervenção principal de C, D e E - como, respectivamente, cônjuge meeiro e herdeiros do expropriado B - a fim de intervirem nos autos como recorridos particulares, o Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 7 de Dezembro de 1999, concedeu provimento ao recurso, anulando a Portaria nº 290/95.
Desse aresto recorreram os recorridos particulares para o Pleno da
1ª Secção daquele Alto Tribunal tendo, na alegação que produziram, formulado as seguintes «conclusões», para o que ora releva:-
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18. O Estado de direito democrático implica a garantia da efectivação dos direitos fundamentais - art. 2 da Const. -, e a validade das leis e dos actos do Estado e de outras autoridades depende da sua conformidade com a Constituição - art. 3 nº 2.
19. Ora, o direito à reversão dos prédios expropriados é inerente ao direito de propriedade, partilhando da mesma natureza e regime jurídico, pelo que goza da mesma garantia a tutela.
20. Como ensinam Gomes Canotilho e Vital Moreira (Const. Anotada, 3ª ed. Pag.
336), a consumação da expropriação fica dependente da efectiva aplicação dos bens a fins de utilidade pública. Assente que o Estado não chegou a efectuar o pagamento de qualquer indemnização pela expropriação do prédio revertido e reconhecendo o próprio legislador que o regresso à posse de facto dos anteriores titulares demonstra a não realização do interesse público visado com a expropriação (cfr. trabalhos preparatórios da revisão da Lei 109//88) qualquer interpretação restritiva que implique a não efectivação desse direito infringe a garantia decorrente dos arts. 8, 18 e 62 da Const.
21. A interpretação da al. b) do art. 30 da Lei 109/88 (na redacção actual) no sentido de que a reversão depende, apesar da verificação daqueles requisitos legais, não só da restituição da posse mas ainda de um período prévio de exploração de facto (período esse que nem a lei nem a interpretação do Acórdão recorrido concretizam) não só inviabiliza o direito à reversão como estabelece uma distinção injustificada, desrazoável e discriminatória entre os que recuperaram a posse nas imediações da data limite (1-1-90) e os restantes, privilegiando estes, com o que se ofendem claramente os princípios de igualdade, justiça e proporcionalidade.
22. Ao negar expressamente a um contrato de arrendamento rural particular válido a integração no conceito de ‘exploração de facto’ a que se refere a al. b) do citado art. 30, o douto Acórdão recorrido infringe directamente o disposto no art. 99 nº 1 da Const., pelo que nessa medida está também ferido de interpretação inconstitucional.
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O Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 15 de Novembro de 2001, veio a negar provimento ao recurso.
No que ora interessa, pode ler-se nesse aresto:-
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Com efeito, tal como se decidiu no Ac. deste STA, de 17-4-97 - Rec.
31007, a ‘posse material’ a que alude o aludido preceito [a alínea b) do nº 1 do artº 30º da Lei nº 109/88, de 26 de Setembro] corresponde ao ‘corpus’ possessório, ou seja, ao exercício dos poderes de facto de detenção, guarda, conservação, uso e fruição do prédio expropriado, sendo que [a] expressão
‘exploração de facto’, a que também alude a mencionada alínea b), se traduz no conjunto de poderes e actos de fruição e exploração das utilidades económicas que podem proporcionar a actividade agrícola, silvícola e pecuária, passíveis de serem desenvolvidas no referido prédio.
Temos, assim, que, no âmbito da citada alínea b) o que releva é a detenção imediata e efectiva ‘animo domini’ do prédio rústico expropriado e não a mera posse jurídica, exercida através de outrem (vidé o artigo 1252º do CC), enquanto que, para efeitos de integração do conceito de ‘exploração de facto’ se exige que a detenção e fruição do prédio não seja inerte ou passiva, não correspondendo a qualidade de locador do imóvel à ‘posse material e exploração de facto’ do bem arrendado, como bem se salienta no Acórdão recorrido - cfr. fls. 288.
Só que, sendo este o sentido e alcance da referida alínea b) e, mesmo que a entrega do ‘Herdade ...’ e a cedência do seu gozo, através de contrato de arrendamento rural ao agora Recorrido tivesse ocorrido em 18-12-89, ainda assim, tal circunstancialismo não se subsume na previsão do citado preceito, daí que o acto objecto de impugnação contenciosa, como bem se concluiu no Acórdão recorrido, padeça do arguido vício de violação de lei.
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3.4 Finalmente, importa conhecer da questão de inconstitucionalidade suscitada pelos Recorrentes nas suas conclusões 18 a 24.
Neste particular contexto sustentam que a interpretação perfilhada pelo Acórdão recorrido quanto ao sentido e alcance da alínea b), do nº 1, do artigo 30º da Lei 108/88, para além de restritiva, infringindo a garantia decorrente dos artigos 8º, 18º e 62º da CRP, ofende os princípios da igualdade, justiça e proporcionalidade, atentando, ainda, contra o disposto no nº 1, do artigo 99º da CRP.
Porém, não assiste razão aos Recorrentes.
Em primeiro lugar, imposta salientar que a interpretação perfilhada no Acórdão recorrido e coonestada por este Pleno, cfr. o ponto ‘3.3’, não se consubstancia numa qualquer interpretação restritiva do preceito em causa, antes se tendo limitado a explicitar o seu alcance, sem que, ao proceder a tal operação, se tenha limitado o alcance aparente da lei.
Por outro lado, as considerações que os Recorrentes fazem a propósito do alegado não pagamento de qualquer indemnização pela expropriação do prédio em causa, são destituídas de relevância em sede do juízo de constitucionalidade a emitir com referência à aludida alínea b), do nº 1, do artigo 30º da Lei 109/88, na medida em que tal circunstância não pode ser assacada ao preceito em análise, que nada estatui no sentido do não pagamento de indemnização.
O mesmo sucedendo em relação à invocada violação do direito de propriedade, uma vez que ela, a existir, dimanaria originariamente não da dita alínea b), mas do acto expropriativo e da legislação em que este se alicerçou.
Refira-se, ainda, que a interpretação acolhida no Acórdão recorrido não está em desconformidade com o nº 1, do artigo 99º da CRP, já que o objecto do citado preceito se circunscreve à enunciação das formas de exploração ‘de terra alheia’, não se vislumbrando em que medida é que a dita interpretação tenha, por qualquer forma, contrariado as formas de exploração indicadas no preceito constitucional, tudo se tendo situado, apenas, ao nível da integração dos conceitos de ‘posse material’ e [‘]exploração de facto’.
Por último, importa salientar que a questão levantada pelos Recorrentes não pode ser vista desligada do regime legal globalmente consagrado nas diferentes alíneas do nº 1 do artigo 30º da Lei 109/88.
Com efeito, a situação referida pelos Recorrentes nas suas conclusões pode, hipoteticamente, enquadrar-se na previsão da alínea c), do nº 1, do artigo
30º, tal como se reconhece no Acórdão recorrido (cfr. fls. 289), hipótese também admitida na própria petição de recurso contencioso (cfr. o seu ponto 15).
Não se pode, por isso, subscrever a afirmação que é feita pelos Recorrentes no sentido de que a interpretação acolhida no Acórdão da Secção inviabilize o direito à reversão, ou que seja geradora de distinções injustificadas, desrazoáveis ou discriminatórias, tendo-se limitado o Legislador a contemplar na alínea b) uma situação que, uma vez verificada, deveria levar à reversão do prédio expropriado, sem prejuízo de outras situações também consagradas no nº 1, do artigo 30º, passíveis de conduzir ao mesmo resultado
(reversão).
Não ocorre, por isso, a arguida inconstitucionalidade, desta via improcedendo as conclusões 18 a 22.
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2. É do acórdão de que partes se encontram transcritas que, pelos recorridos particulares, vem interposto, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o vertente recurso para o Tribunal Constitucional.
Como o requerimento de interposição de recurso não obedecia aos requisitos ínsitos nos números 1 e 2 do artº 75º-A da mesma Lei, foram os impugnantes, ex vi do nº 6 do mesmo artigo, convidados a prestar as necessárias indicações, nomeadamente indicando a dimensão normativa que questionavam.
Na sequência desse convite, os recorrentes vieram apresentar requerimento onde disseram:-
'C, D e E, recorrentes no processo à margem referenciados vindos do Supremo Tribunal [Administrativo]/Pleno, vêm em obediência à notificação do aliás douto despacho de fls. , e em cumprimento do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º-A da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, esclarecer que o recurso atempadamente interposto para esse Alto Tribunal, nos termos e ao abrigo da al[í]nea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro, o foi por violação pelo ac[ó]rdão recorrido, das normas e princípios constitucionais a seguir indicados:
- O direito à reversão é um direito análogo aos direitos fundamentais da Constituição (artigo 17.º) gozando, por isso do regime e garantias dos artigos
2.º, 3.º n.º 3 e 18.º da Constituição;
- A interpretação feita pelo contencioso administrativo da al[í]nea b) do n.º 1 do art.º 30 da Lei n.º 109/88, de 26 de Setembro, inviabiliza o direito de reversão, uma vez que elimina da ordem jur[í]ca o direito de propriedade que lhe
é inerente infringindo o artigo 62.º n.ºs 1 e 2, bem como as garantias resultantes dos artigos 8.º e 18.º todos da Constituição da Rep[ú]blica Portuguesa, já que os verdadeiros pressupostos da reversão são, não a exploração de facto do prédio, como indevidamente se julgou, mas sim a não afectação do bem ao fim de utilidade p[ú]blica respectivo e o não pagamento da justa indemnização
(surgindo a posse e a exploração material como autênticos ind[í]cios destes dois
[ú]ltimos pressupostos da reversão) bem como o disposto no artigo 99.º n.º 1 da Constituição da Rep[ú]blica Portuguesa;
- Foram igualmente violados os princ[í]pios da igualdade, justiça e proporcionalidade com a interpretação desrazoável e injustificável feita pelo Acórdão do Tribunal ‘a quo’, e ainda;
- O princ[í]pio da igualdade, na medida em que a situação criada com o
‘arrendatário’ aqui recorrido e todos os demais que em igualdade de situações procederam de boa fé à restituição das terras que ‘detinham’.
Estes argumentos foram suscitados nas Alegações de recurso para o Pleno do Supremo Tribunal Administrativo - n.ºs 30 a 39.º e conclusões 18 a 22 como fundamento do recurso de inconstitucionalidade.
Nestes termos, requerem que se considere suprida a falta e que o recurso siga os ulteriores termos até final'.
O objecto do vertente recurso foi delimitado por despacho do relator como devendo incidir sobre a norma constante da alínea b) do nº 1 do artº 30º da Lei nº 109/88, na parte em que na mesma se estabelece, para efeitos de reversão, a condição do regresso do prédio (ou de parte dele), antes de 1 de Janeiro de
1990, à posse material e exploração de facto dos anteriores titulares ou dos seus herdeiros.
3. Determinada a feitura de alegações, concluíram os recorrentes a por si formulada com as seguintes «conclusões»:-
'1. O Estado de direito democrático implica a garantia da efectivação dos direitos fundamentais (artº.2 da Constituição), dependendo a validade das leis da sua conformidade com a Constituição (art.º 3 n.º 2).
2. O direito de reversão é um direito de natureza análoga ao direito de propriedade que a Constituição configura com direito fundamental gozando, por isso, do mesmo regime, garantias e tutela. (arts. 8, n.º 18 e 62 da Constituição).
3. A interpretação do Ac. sob recurso quanto ao conceito de exploração de facto constante da al. b) do art.º 30.º da Lei n.º 109/88 como requisito a se da própria reversão é erróneo e desconforme à realidade dos factos, uma vez que despreza a prova da exploração efectiva e usufruição da parte florestal da herdade em causa pelos seus donos mesmo após a expropriação, e ao mesmo tempo dá-lhe um conteúdo restritivo e negatório do direito à reversão, limitado apenas
à exploração directa e pessoal, com manifesta infracção do princípio ínsito no art,º 99 n.º 1 da Constituição, já que a exploração económica da terra pode efectuar-se indirectamente através do seu arrendamento. Finalmente errou-se ainda ao considerar como única e autêntica condição ou requisito da reversão um simples indicador ou indice do verdadeiro pressuposto - a não afectação ou cumprimento do fim de interesse público que justificou a expropriação.
4. Os verdadeiros pressupostos ou condições constitucionais da reversão (não afectação do bem expropriado a fins de interesse público e a ausência de pagamento da devida indemnização) devem prevalecer e sobrepor-se, por força da hierarquia das leis, a quaisquer outros elementos apontados na Lei ordinária que lhe seja contrário.
5. Daí que a letra do citado preceito da Lei n.º 109/88 seja inconstitucional também porque na óptica da decisão adoptada se estabelece uma distinção injustificada, desrazoável e discriminatória com todos os demais seareiros ou ocupantes de muitos outros prédios dos ora alegantes que, de boa fé e em rigorosas condições de igualdade procederam à restituição voluntária das terras que detinham passando á posição de arrendatários legais que ainda hoje perdura.
6. Por todo o exposto, espera-se que esse Alto Tribunal conceda provimento ao recurso de inconstitucionalidade nos domínios mencionados e determine que o Acordão impugnado seja reformulado em conformidade com os preceitos e princípios constitucionais invocados'.
Por seu lado, o recorrido A rematou a sua alegação do seguinte jeito:-
'I
A explicitação operada pelo Supremo Tribunal Administrativo, no Douto Acórdão aqui em Recurso, do conceito material de posse, para os efeitos de aplicação da al. b) do nº 1 do artigo 30º da Lei nº 109)88 não se acha ferido de inconstitucionalidade, porquanto:
1) Na norma, prevê-se uma situação, a par de outras, que, se verificadas, poderão conduzir à reversão;
2) O conceito material de posse é composto pelos elementos definidores em concreto de um quadro fáctico de dom[í]nio imediato e efectivo - ‘animus domini’ do prédio expropriado. Exige-se que a posse não seja inerte, mas que envolva o exercício em concreto da actividade de exploração da terra. Logo, não se satisfaz com a simples percepção de frutos civis da mesma - v. g., o pagamento de rendas.
3) A tal conclusão se chegaria, igualmente, pela integração histórico-
-sistemática do preceito nos princípios subjacentes à chamada Reforma Agrária -
‘exploração a bem de todos’, supremacia do bem-estar social sobre o bem-individual, etc.;
4) E, ainda hoje, a expropriação funda-se na utilidade pública, necessária e compatível com a função eminentemente social reservada pela constituição àquela forma de propriedade;
O direito indemnizatório surge do acto de expropriação, como sua consequência, e não como condição prévia ou elemento integrante daquele;
Trata-se, tão-somente, de um factor ‘estabilizante’, de natureza creditícia, introduzido no sistema jurídico para manter o equilíbrio de interesses necessário ao bem-estar e à paz social.
II
A alegada manutenção, pelos ora recorrentes, da exploração florestal da propriedade, depois de operada a reversão, poderá ser havida como uma mera consequência da mesma característica da ‘expansibilidade’ do direito de propriedade;
Porém, essa circunstância não releva para os agora recorridos, uma vez que, quando muito, se trataria de uma questão entre o Estado Português expropriante e os exploradores florestais, em nada afectando a sua posição de rendeiros rurais.
III
As decisões de particulares, alheios a este processo, tomadas de
‘livre vontade’ ou não, de entregar os terrenos por eles arrendados, fosse a quem fosse, não pode influenciar o julgamento de inconstitucionalidade de uma norma legal nem, tão-pouco, o da sua aplicação em concreto, dado que, para o Estado, será res inter alios acta.
IV
Por tudo, e pelo que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser mantida a decisão sob recurso, considerando-se a aplicação do direito operada pelo Supremo Tribunal Administrativo totalmente conforme à Constituição, julgando-se o recurso totalmente improcedente e não provado'.
Cumpre decidir.
3. Como resulta do relato acima efectuado, o acórdão impugnado fundou o seu juízo decisório na norma ínsita na alínea b) do nº 1 do artº 30º da Lei nº 109/88, na redacção dada pela já citada Lei nº 46/90.
Dispõe aquele preceito do seguinte modo:- Artigo 30.º Reversão
1 - Por portaria conjunta do Primeiro Ministro e do Ministro da Agricultura, Pescas e Alimentação pode ser determinada a reversão dos prédios ou de parte dos prédios rústicos expropriados quando se comprove que:
a)..............................................................................................................................................;
b) Antes de 1 de Janeiro de 1990 e independentemente de acto administrativo com esse objecto, regressaram à posse material e exploração de facto dos anteriores titulares ou às dos respectivos herdeiros; c).................................................................................................................................................
2..............................................................................................................................................................................
Segundo os recorrentes, o acórdão em crise levaria a efeito uma determinada interpretação da transcrita norma por forma a inutilizar o exercício de um direito fundamental consagrado na Lei Fundamental - justamente o direito de reversão -, e isso porque considerou como requisitos não provados a posse e a exploração de facto do prédio expropriado.
É por demais evidente que o pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo não procedeu a uma qualquer interpretação da alínea b) do nº 1 do artº 30º da Lei nº 109/88 por modo a extrair deste preceito um entendimento - não directamente decorrente da sua letra - de harmonia com o qual o direito de reversão dos prédios rústicos (ou de parte deles) localizados na zona de intervenção da reforma agrária e expropriados para efeitos de reestruturação fundiária, se operaria unicamente se a finalidade da expropriação não viesse a ser prosseguida e se não fosse concedida indemnização por aquela expropriação.
Na verdade, a condição a que o direito à reversão está, neste particular, sujeita, consta já da própria letra da dita alínea b) do nº 1 do artº 30º (a reversão está condicionada à circunstância de o prédio - ou parte dele - ter, antes de 1 de Janeiro de 1990, regressado à posse material e exploração de facto dos anteriores titulares ou dos seus herdeiros, e isso quer tenha havido ou não a prática de acto administrativo nesse sentido), sendo que aquilo que o acórdão sub iudicio fez foi, e tão somente, uma aplicação daquele normativo ou, se se quiser, uma subsunção da matéria fáctica à previsão do preceito.
A única interpretação que se vislumbra pelo discurso empregue no aresto impugnado incidiu, e tão somente, sobre a asserção «posse material e exploração de facto», pois que se entendeu que esta deveria unicamente abarcar o
' conjunto de poderes e actos de fruição e exploração das utilidades económicas que podem proporcionar a actividade agrícola, silvícola e pecuária, passíveis de serem desenvolvidas' no prédio.
Esta dimensão interpretativa, porém, não constitui o objecto do presente recurso de constitucionalidade, tendo em conta a delimitação do respectivo objecto efectivada pelo citado despacho do relator, fundado no requerimento de interposição de recurso apresentado na sequência do convite dirigido aos impugnantes, o que não foi posto em causa por estes.
Simplesmente, porque estes, antes da prolação do acórdão em crise, suscitaram um outro problema de constitucionalidade, precisamente o consistente em o direito à reversão dos prédios expropriados localizados na zona de intervenção da reforma agrária se dever operar sempre que não fossem prosseguidas as finalidades que ditaram a expropriação e não fosse paga a respectiva indemnização, problema esse que veio a ser enunciado naquele requerimento apresentado na sequência do convite que lhes foi endereçado, então o que na vertente impugnação deve ser analisado é se se deve considerar que a alínea b) do nº 1 do artº 30º da Lei nº 109/88, ao estabelecer o condicionalismo do regresso do prédio (ou de parte dele), antes de 1 de Janeiro de 1990, à posse material e exploração de facto dos anteriores titulares ou dos seus herdeiros, é conflituante com o Diploma Básico.
Isto significa, por outro lado, que o que se surpreende na primeira parte da «conclusão» 3ª da alegação de recurso dos impugnantes não possa ser atendido, justamente porque a referida dimensão interpretativa se situa fora do objecto do recurso, talqualmente foi delimitado pelo despacho do relator acima assinalado, o que, repete-se, não foi questionado, sendo que isso implicará, por outro lado, que os parâmetros de constitucionalidade invocado pelos recorrentes, estribados na distinção injustificada e discriminatória e na violação do artigo
99º, nº 1, da Lei Fundamental, não possam ser tidos em conta quanto a este ponto, pois que, ainda que eventualmente uma tal questão tivesse sido suscitada antecedentemente à prolação do acórdão ora recorrido, o que é certo é que ela não foi equacionada no requerimento de interposição do recurso e naqueloutro apresentado na sequência do convite dirigido pelo relator.
4. Como sustentam alguns autores, a garantia da propriedade privada implica o reconhecimento da existência, em determinadas circunstâncias, do direito de reversão a favor dos proprietários expropriados (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, página
336) já que, 'configurando-se a expropriação como uma compressão da garantia constitucional do direito de propriedade, na sua dimensão de garantia individual, justificada pela necessidade de afectação de um bem objecto de propriedade privada a um fim de interesse ou utilidade pública' (citaram-se as palavras de Alves Correia, in A Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre expropriações por utilidade pública e o Código de expropriações de 1999, na Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 132º, p. 295), é necessário que existam mecanismos de garantia que, em determinadas condições (não pagamento de justa indemnização e ou não afectação do bem expropriado às finalidades exaradas na declaração de utilidade pública), atribuam ao expropriado o direito de reaquisição do bem de que tinha sido, então e por isso, desnecessariamente privado.
Estas considerações doutrinárias espelham ou têm por base, pois, a necessidade de salvaguardar o direito de propriedade dos particulares das compressões que lhes são efectuadas pelos poderes públicos através das expropriações levadas a efeito.
Nesta postura, há que ponderar se, nas situações a que se reporta o preceito sub specie constitucionis, estamos, ou não, perante uma efectiva compressão ou ablação do direito de propriedade que pertencia aos expropriados, ao não lhes ser devolvida - em virtude das condições estatuídas na norma da alínea b), do nº 1, do artigo 30º da Lei 109/88 – a propriedade do imóvel que foi dado como locado pela entidade Estado que passou, pela expropriação, a ser a detentora da propriedade (pública) daquele imóvel.
Ou seja: o que importa apurar no presente recurso de constitucionalidade, será, e tão só, saber se é contrário à Lei Fundamental o estabelecimento da condição sem a qual se não pode operar o denominado «direito de reversão», cuja é, como se viu, a da necessidade de os prédios rústicos expropriados (ou de parte deles) terem (antes de 1 de Janeiro de 1990) regressado à posse material e exploração de facto dos anteriores titulares ou às dos respectivos herdeiros.
5. Antes do mais, mister é não passar em claro que, de uma banda, os expropriados, ao terem sido objecto do processo ablativo consubstanciado na expropriação, necessariamente sofreram uma compressão do seu dominium rei, uma vez que foram privados do prédio rústico cuja titularidade a eles pertencia.
Mas, de outra banda, deve sublinhar-se que se não lobriga a infracção das garantias que defluem, designadamente e para o que mais releva, do artigo 62º da Lei Fundamental.
Efectivamente, se é facto que nos situamos perante uma compressão do direito de propriedade do proprietário de um imóvel quando se verifica, na sua esfera jurídica, a imposição e concretização, por razões de ordem pública, da expropriação de bens seus, não é menos verdade que a justa indemnização prevista na lei servirá para compensar o particular da privação dos bens que lhe é imposta, pois, como escreve Giovanni Torregrossa, La Proprietà fra Contenuto Minimo e Diritto All Indennizo, in Diritto e Società, Nova Série, nº 1, p. 24,
'a ineliminável conexão entre a previsão de indemnização e a tutela da propriedade resulta de facto de a medida da indemnização ser a medida da garantia da propriedade privada '.
Para fins meramente argumentativos, partindo do princípio de que se deva aceitar que a garantia da indemnização, mesmo estando em causa a expropriação para efeitos de reforma agrária, seja devida, o que é certo é que, nestes momento e sede, cumpre salientar que tal questão não está em apreciação neste recurso (do mesmo passo que não está em discussão, como referido supra, apurar se os bens expropriados foram, ou não, destinados às finalidades que impuseram a expropriação; todavia, quanto a este último particular, não se pode deixar de considerar que o prédio em causa, de todo o modo, foi dado de arrendamento a alguém que o Alto Tribunal a quo considerou, em face da matéria de facto que apurou, ser um pequeno agricultor a quem, antecedentemente à expropriação, tinha sido confiado, para efeitos de exploração, o tratamento do prédio rústico, por via de um contrato de arrendamento rural celebrado entre ele e o seu anterior proprietário).
Mas, mesmo que o estivesse, então haverá que convir que, a haver um intransponível déficit constitucional na previsão normativa da possibilidade de expropriação para efeitos de reforma agrária sem que fosse esse meio de ablação acompanhado da compensação adequada e justa a quem ficou privado da sua propriedade, tal déficit residiria na «omissão» da previsão do pagamento da justa indemnização, como se realçou no acórdão ora sub iudicio, e não sobre o preceito sindicado que, como é evidente, não estatui qualquer directriz no sentido do pagamento ou do não pagamento de qualquer indemnização.
6. Isto posto, volvamos agora a atenção para o argumento aduzido pelos recorrentes e segundo o qual se o prédio expropriado para efeitos de reforma agrária não vier a ter a destinação que à expropriação conduziu, daí resultaria, por imposição constitucional, o nascimento do «direito de reversão».
Nesta particular, convém não silenciar que, tendo em conta os contornos definidos no presente processo (que, em matéria de facto se hão-de acatar), o circunstancialismo em que ocorreu a expropriação do prédio em causa se justificou pela necessidade de o Estado se encontrar constitucionalmente obrigado a proceder a determinados objectivos impostos pelo Diploma Básico.
Na verdade, frisou-se no Acórdão deste Tribunal nº 13/88 (publicado no Diário da República, 2ª Série, de 1 de Setembro de 1988) 'que há muito que foi superada a concepção tradicional do direito de propriedade, como expressão do binómio propriedade-liberdade, dentro do qual a tal direito se assinalava um conteúdo (tendencialmente) ilimitado, referível a todas as possíveis faculdades de utilização que o poder de um sujeito jurídico sobre uma coisa pudesse comportar (...)'. E, continuou-se, dizendo nesse aresto:- 'de facto, a CRP não o aceita, logo sublinhando, no artigo 62º, nº 1, que a todos é garantido o direito
à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
Em nota a este preceito, escrevem, nesta mesma linha interpretativa, Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pp. 334 e 335, o seguinte:
O direito de propriedade é garantido ‘nos termos da Constituição’
(nº 1, in fine). A fórmula parece supérflua, mas não o é: trata-se de sublinhar que o direito de propriedade não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e nos termos previstos e definidos noutros lugares da Constituição(...).
A ausência de uma explícita reserva de lei restritiva, embora cause alguma perplexidade (pois é corrente na história constitucional e no direito constitucional comparado), não impede, porém, que a lei – seja por via de algumas específicas remissões constitucionais expressas (arts.82º, 87º e 99º) seja por efeito da concretização de limites imanentes, sobretudo por colisão com outros direitos fundamentais – possa determinar restrições mais ou menos profundas ao direito de propriedade. De uma forma geral, o próprio projecto económico, social e político da Constituição implica um estreitamento do âmbito dos poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições (quer a favor do Estado e da colectividade quer a favor de terceiros) das liberdades de uso, fruição e disposição'.
Efectivamente, fazendo a circunscrição temporal do ocorrido no presente processo à luz do diploma de 1988, é notório que era tarefa do Estado proceder à reestruturação fundiária e promover todas as políticas e actos tendentes à extinção dos grandes latifúndios, dado que a eliminação destes e das grandes explorações agrícolas constituía uma incumbência cujos contornos cabia ao Estado definir e executar.
Ao Estado impuseram-se, desta arte, incumbências significativas, especialmente em sede de política de ordenamento e reconversão agrária, que passaram, significativamente, pela transferência progressiva da posse útil da terra, promovendo-se o acesso à propriedade ou à posse da terra e demais meios de produção por parte de quem a trabalhava.
Ora, se esta filosofia previa a transformação das estruturas anteriores de pertença da terra, é natural que, no diploma em questão, o legislador tenha querido adaptar a realidade agrícola às metas impostas, constitucional e politicamente, de, como sói dizer-se, «dar a terra a quem a trabalha» e de transferir a posse da mesma a quem a explora, querendo, pois, manter um vínculo mais concreto tendo por referência a ligação laboral – entre o agricultor que cultiva a terra e a própria terra – e menos institucional ou formal da posse da terra, isto é, entre o proprietário que é titular da terra, mas não a explora de facto, nem tem dela tem a posse útil.
Pergunta-se então: teria o Estado, neste cenário, que ter promovido o regresso do prédio (ou de parte dele), aos seus anteriores proprietários, mesmo que estes não tivessem a sua posse material e não o explorassem de facto
(e não entrando agora, por isso se situar fora do âmbito deste recurso, na questão de saber se é de considerar posse útil a que se traduz na dação de arrendamento do prédio a outrem por parte de quem da respectiva propriedade foi expropriado)?
A resposta a esta questão deverá sofrer resposta negativa.
6.1. Na verdade, estabelece a Lei Fundamental que são objectivos da política agrícola, entre outros, o acesso à propriedade ou à posse da terra e demais meios de produção directamente utilizados na sua exploração por parte daqueles que a trabalham, e que as terras expropriadas serão entregues a título de propriedade ou de posse, nos termos da lei, a pequenos agricultores
[cfr., na actual versão da Constituição, os seus artigos 93º, nº 1, alínea b), e
94º, nº 2].
E foi precisamente este objectivo que foi prosseguido pelo Estado na presente situação, ao proceder à expropriação das terras aos ora recorrentes e ao dá-las de arrendamento ao ora recorrido particular, que se encontrava na posse da mesma, explorando-a já antes da expropriação ter sido levada a cabo.
Como se escreveu no Acórdão nº 187/88, (in Diário da República, 2ª Série, de 5 de Setembro de 1988) 'para lá desta ou daquela forma utilizadas, o que conta para avaliar da constitucionalidade de qualquer lei hão-de ser as soluções materiais que incorpora, as metas objectivas que aponta, os meios e interesses a que dê prevalência'.
Perante estes parâmetros, é de aceitar que os reforço e aperfeiçoamento da ligação do homem com a terra, consignados como objectivo da política agrícola, cabiam e cabem na previsão dos objectivos constitucionais de transformação das estruturas e da transferência progressiva da posse útil, e daí que a norma em crise, analisada à luz destes objectivos de política agrícola, não se mostre como desconforme com o Diploma Básico ao estabelecer que a reversão só possa operar favoravelmente para o anterior proprietário (ou para os seus herdeiros) desde que a terra tenha regressado à sua posse material e exploração de facto.
Não interessará definir aqui a não previsão constitucional concreta dos critérios para distinguir os casos em que será transferida a propriedade das terras, dos casos em que será transferida a posse das mesmas, a favor dos pequenos agricultores (cfr., sobre o ponto, Gomes Canotilho e Vital Moreira. ob. cit., 441).
Mas, na ausência dessa previsão, ou da não definição constitucional dos critérios de repartição da terra pelas duas categorias de beneficiários, tendo em atenção a existência da liberdade conformativa do legislador ordinário, há que convir que, atento um dos objectivos da política agrícola, enquanto parâmetro de constitucionalidade - precisamente aquele que visa proporcionar o acesso da «terra a quem a trabalha» - se não mostra infundada a preferência na manutenção da posição dos trabalhadores rurais e dos agricultores que já estivessem e continuem a estar ligados ao amanho, cultivo e exploração directa da mesma terra.
Conclui-se, assim, que, in casu, para além de o prédio rústico em causa ter sido, após a sua expropriação, destinado ao fim que aquela ditou, a condição para a respectiva reversão, imposta pela norma em apreço, se não mostra contrária à Constituição, pois que se afigura ela como uma das possíveis expressões legais (de entre outras que eventualmente fossem configuráveis) para se dar cumprimento aos objectivos da política agrícola consagrados nos artigos
93º e seguintes daquela Lei Fundamental.
7. Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso, condenando-
-se os recorrentes nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa,10 de Julho de 2002 Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Paulo Mota Pinto José Manuel Cardoso da Costa ( com a declaração de que me fica a dúvida de saber se, mesmo com a delimitação do objecto do recurso tal como feita oportunamente no processo, e transitado, não era possível incluir aí a questão de constitucionalidade cujo conhecimento se excluiu).