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Proc. nº 324/00 Acórdão nº 372/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. O Ministério Público veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional da decisão do Tribunal Tributário de 1ª Instância do Porto que, considerando organicamente inconstitucional a norma constante do artigo 5º da Tabela de Emolumentos do Notariado, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 397/83, de 2 de Novembro, julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A. contra a liquidação de emolumentos notariais devidos pela celebração de uma escritura pública de compra e venda de imóveis.
Tal recurso fundamenta-se na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional e tem por objecto a norma contida no artigo 5º da Tabela de Emolumentos do Notariado, aprovada pelo Decreto-Lei nº 397/83, de 2 de Novembro, cuja aplicação foi recusada pelo tribunal a quo com fundamento na sua inconstitucionalidade.
2. Notificadas para o efeito, as partes apresentaram as suas alegações.
O Ministério Público concluiu do seguinte modo:
'1º - A Directiva 69/335/CEE – e a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias sobre a interpretação das normas que a integram – está exclusivamente coligada ao tema da liberdade de circulação de capitais no espaço comunitário, não tendo qualquer ligação com as taxas devidas pela realização de actos notariais que consubstanciam alienação por particulares de imóveis sitos em Portugal.
2º - Os emolumentos notariais devidos pela realização pelos serviços notariais de uma tarefa de administração pública do direito privado têm, de um ponto de vista estrutural, carácter inquestionavelmente bilateral ou sinalagmático, já que traduzem a prestação de um serviço aos utentes, consubstanciando na fé pública e segurança associada à outorga em escritura notarial de compra e venda de imóveis.
3º - O carácter bilateral da taxa não implica uma estrita correspondência económica entre o valor da prestação imposta ao particular e o custo do serviço que constitui contraprestação do ente público – podendo, porém, no caso de ocorrer «desproporção intolerável» entre ambos, resultar violado o direito fundamental que, porventura, seja actuado ou realizado mediante a prestação do serviço público em causa.
4º - O carácter bilateral da taxa não impede que no seu montante possam ser repercutidos os custos globais de instalação e funcionamento dos serviços que visam a administração pública do direito privado, fazendo partilhar pelos utentes (e não pela generalidade dos contribuintes) tais custos globais, em função da relevância económica dos actos que praticam.
5º - Na específica situação dos autos, não constitui «desproporção intolerável» a liquidação de emolumentos notariais no valor de cerca de 7 mil contos, quando está em causa a celebração de uma escritura, envolvendo negócio jurídico complexo, por traduzir alienação de numerosos imóveis e fracções, no valor global de cerca de 2 milhões e meio de contos.
6º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, em consonância com o juízo de constitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida.'
Por seu turno, a recorrida, nas contra-alegações, formulou as seguintes conclusões:
'1º- A fixação do montante dos emolumentos deverá obedecer a uma justa proporção ou a um justo equilíbrio entre a prestação do particular e a contra-prestação de natureza pública fornecida;
2ª- A pretexto de uma relação bilateral, o Estado não pode cobrar receitas calculadas de acordo com os critérios próprios que presidem à quantificação das receitas unilaterais;
3ª- A justificação para a cobrança de quantias tão díspares a título de emolumentos por ocasião da celebração de uma escritura pública de compra e venda de imóveis, de acordo com o disposto no art. 5º da «Tabela dos Emolumentos do Notariado», com a redacção que lhe foi dada pelo D.L. nº 397/83, reside na circunstância de o legislador ter erigido como critério para o pagamento do serviço prestado pelos notários a capacidade contributiva dos interessados, capacidade essa que é medida através de um índice revelado: o valor dos imóveis negociados;
4ª- As receitas públicas calculadas desta forma, de acordo com os critérios próprios de uma receita unilateral, devem ser abrangidas pelo princípio da legalidade tributária, previsto nos arts. 106º, nº 2, e 168º, nº 1, al. i), da Lei Constitucional nº 1/92 (aos quais, correspondem, actualmente, os arts. 103º, nº 2, e 165º, nº 1, al. i));
5ª- A utilização do método ad valorem para a fixação do montante de uma receita pública é exclusiva dos impostos (nomeadamente, dos impostos indirectos) e não poderá, em caso algum, ser aplicada às taxas dado que o quantitativo destas não pode andar ligado ao valor dos bens;
6ª- A fixação da taxa de justiça obedece a uma lógica de redução da procura que não pode ser transposta para a fixação dos emolumentos cobrados pelos notários a título de serviço público que estes prestam;
7ª- Nos serviços do notariado, ao contrário do que se passa com o serviço da administração da justiça, não interessa ao Estado limitar a procura, dado que o recurso a este serviço é obrigatório, importa sim, fixar taxas que assegurem as receitas suficientes para cobrir os custos do serviço;
8ª- O negócio jurídico em causa nos presentes autos é idêntico aos demais contratos de compra e venda outorgados por outras escrituras públicas e a prestação do notário é idêntica em todos eles: certificação de forma legal e de fé pública aos actos jurídicos extrajudiciais;
9ª- Verifica-se uma desproporção intolerável entre a prestação da recorrida e a contra-prestação fornecida pelo ente público, pois pelo mesmo serviço os cidadãos pagam montantes bastante diversos, consoante o valor dos prédios negociados;
10ª- A A., pagou pelo serviço público a que recorreu um montante a título de emolumentos notariais bastante mais elevado do que teria de pagar um particular que recorresse ao mesmo serviço público mas adquirisse os imóveis por um valor diferente;
11ª- A desproporção entre o tributo cobrado e o serviço prestado é tal que se pode afirmar que aquele se desligou completamente deste ultimo, tornando-se, assim, uma receita abstracta;
12ª- O carácter abstracto da receita em causa é ainda reforçado pelo facto de o produto da sua cobrança reverter não apenas para os custos directos e globais do serviço do notariado, mas para uma série de despesas que nenhuma conexão com ele apresentam;
13ª- A norma contida no art. 5º da «Tabela de Emolumentos do Notariado», com a redacção que lhe foi dada pelo D.L. nº 397/83, de 2/11, prevê uma receita pública de natureza fiscal, sujeita ao princípio da legalidade estabelecido no art. 106º, nº 2, e art. 168º, nº 1, al. i), da C.R.P., pelo que apenas poderia ser criada por lei da Assembleia da República ou pelo Governo no uso da competente autorização legislativa emanada daquela assembleia.
14ª- O DL nº 397/83, de 2/11, não foi emitido ao abrigo de qualquer autorização legislativa, pelo que o art. 5º da «Tabela de Emolumentos do Notariado» enferma do vício de inconstitucionalidade, sendo ilegal a liquidação de emolumentos praticada pelo notário na situação sub judice. Termos em que deverá negar-se provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida que julgou a impugnação procedente e provada [...].'
3. Tendo o relator cessado funções, houve redistribuição dos presentes autos (despacho de fls. 305 vº).
Cumpre decidir.
4. O Tribunal Constitucional teve já ocasião de apreciar a conformidade constitucional da norma questionada no presente processo.
Na verdade, no acórdão nº 115/02, de 12 de Março de 2002, proferido no processo nº 567/00, tirado em Plenário (publicado no Diário da República, II, nº 123, de 28 de Maio de 2002, p. 10068 ss), este Tribunal pronunciou-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma contida no artigo 5º da Tabela de Emolumentos do Notariado, aprovada pelo Decreto-Lei nº 397/83, de 2 de Novembro.
É esse julgamento de não inconstitucionalidade que aqui se reitera, pelas razões expostas no mencionado acórdão, para as quais se remete.
5. Nestes termos, em aplicação da referida jurisprudência, concede-se provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento sobre a questão de constitucionalidade.
Lisboa, 26 de Setembro de 2002- Maria Helena Brito Luís Nunes de Almeida Artur Maurício José Manuel Cardoso da Costa