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Processo nº 311/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - Nos presentes autos de fiscalização concreta de constitucionalidade, instaurados ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que são recorrentes A, B e mulher, e C e é recorrido D, todos neles melhor identificados, foi proferida em 12 de Junho último, decisão sumária (fls. 546 a
553), nos termos do nº 1 do artigo 78º-A daquela Lei nº 28/82, que se passa a transcrever:
'1. - D instaurou no Tribunal de Círculo de Coimbra acção declarativa com processo ordinário contra A, B e mulher, e C, todos identificados nos autos, pedindo que se condene os réus a reconhecerem o autor como legítimo proprietário do prédio descrito nos artigos 1º e 2º da petição inicial e a entregarem-lho livre de bens, pessoas, ónus e encargos, ordenando-se o cancelamento de todos os registos na Conservatória do Registo Predial de Coimbra, que colidam com o direito do autor, mormente o registo da aquisição dos primeiros réus e os registos das hipotecas a favor da segunda ré, e que se condene ainda os primeiros réus no pagamento ao autor do montante de 6.560.000$00, a título de danos patrimoniais, acrescido do montante correspondente ao preço de mercado da produção anual mínima que o autor obteria com a sementeira do terreno, que é de
800 fardos de forragem, a partir de 1988 até à entrega do prédio, tudo acrescido dos juros de mora legais vincendos, desde a citação até efectivo e integral pagamento. Todos os réus contestaram, pugnando pela improcedência da acção e, os primeiros, deduziram reconvenção. Os autos prosseguiram os seus regulares termos, vindo a ser proferida sentença, em 22 de Setembro de 1999, que julgando a acção parcialmente procedente e improcedente o pedido reconvencional, condenou os réus a reconhecerem o autor como legítimo proprietário do prédio descrito nos artigos 1º e 2º da petição inicial e a entregarem-no ao autor livre de pessoas, bens, ónus e encargos, determinando o cancelamento dos registos na Conservatória do Registo Predial de Coimbra, que colidam com o direito do autor, como peticionado, e, os primeiros réus, ainda, a pagarem ao autor, a título de danos patrimoniais, a quantia que se liquidar em execução de sentença. Não se conformando com o assim decidido, os réus A, B e mulher , e a ré C, interpuseram recursos para o Tribunal da Relação de Coimbra, que sustentaram nas respectivas alegações.
2. - Por acórdão de 6 de Junho de 2000, o Tribunal da Relação de Coimbra julgou improcedentes ambos os recursos, confirmando a decisão recorrida. Notificados deste aresto interpuseram os primeiros réus e a ré, recursos para o Supremo Tribunal de Justiça Os primeiros réus apresentaram alegações tendo formulado as seguintes conclusões:
'1) Em 30/3/89 os Recorrentes, como promissários compradores, celebraram um contrato promessa, através de escritura pública, cujo objecto era o prédio supra identificado com o legítimo proprietário como promitente vendedor.
2) Tal prédio encontrava-se livre de quaisquer ónus ou encargos.
3) Tendo expressamente sido atribuída eficácia real à promessa foi tal contrato promessa alvo pelos Recorrentes de um registo definitivo em 14/4/89.
4) Ao recorrido, em 6/9/89, posteriormente portanto à celebração do contrato promessa a que foi atribuída eficácia real e ao seu registo definitivo, foi adjudicado o prédio referido.
5) Tendo o registo dessa aquisição, que foi efectuada provisoriamente por dúvidas, caducado em virtude da sua não conversão em definitivo.
6) Nos termos do art° 413°, quer da sua aplicação quer da sua interpretação, resulta que, em resumo 'qualquer acto de alienação praticado pelo promitente vendedor ou por alguém em seu nome que o impossibilita de cumprir a obrigação assumida é ineficaz em relação ao promissário e, por isso, este poderá fazer valer o seu direito, pela via da execução específica, como se nenhuma alienação tivesse sido realizada'.
7) Os recorrentes obtiveram os mesmos efeitos que, em tese, obteriam através da execução específica, celebrando o contrato prometido com a utilização, legal, de uma procuração com os poderes necessários para intervir em tal acto.
8) Aquisição que foi alvo de registo definitivo.
9) Sendo os Recorrentes os únicos titulares das inscrições válidas e actuais, no registo predial da promessa com eficácia real e de compra e venda e tendo oposto esse direito real que o contrato definitivo lhes conferia são os Recorrentes, através da aplicação do art° 413 do Código Civil e da sua interpretação e demais legislação, nomeadamente registral, ( art°s 5° e 6° do Código de Registo Predial) os únicos e legítimos proprietários do prédio acima descrito.
10) Ao terem através do Acórdão recorrido decidido de forma diferente foi violado o artigo 413° do Código Civil e o art° 6° do Código do Registo Predial.'
A ré também motivou o seu recurso, concluindo nos seguintes termos:
'a) Por escritura pública de 30/03/89 a D prometeu vender aos ora RR. B e A, que declararam prometer comprá-lo, o prédio inscrito na matriz sob o artigo ... da freguesia de C... e descrito na Conservatória do Registo Predial de C... sob o numero ...; b) A tal contrato-promessa foi expressamente atribuída força de Execução Especifica, nos termos do artigo 830º do C. Civil; c) Bem como atribuída EFICÁCIA REAL; d) Na mesma data da escritura referida, a D otorgou procuração com poderes especiais a favor dos promitentes compradores, especialmente para celebrarem negócio consigo mesmos nos termos do artigo 261º do C. Civil; e) No dia 19/04/89 os ora RR. B e A fizeram registar a dita promessa de compra e venda com eficácia real na Conservatória respectiva; f) Tal promessa de compra e venda deixou de ter eficácia meramente obrigacional; g) Passando os promitentes compradores a estarem investidos num verdadeiro real de aquisição; h) Sendo tal direito oponível erga omnes; i) Oponibilidade erga omnes que determina a ineficácia dos actos jurídicos efectuados em sua violação; j) A venda efectuada na Execução numero ... da 1ª Repartição de Finanças de Coimbra é pois ineficaz em relação aos RR. B e A; l) Não sendo nula; m) Ao efectuarem a escritura definitiva de compra e venda, os RR. B e A não adquiriram qualquer bem alheio, pois a venda efectuada ao A. lhes era ineficaz; n) Com base em tal escritura, os RR. B e A vieram a registar definitivamente o mesmo prédio a seu favor na Conservatória do Registo Predial;
0) O A. não efectuou qualquer registo definitivo; p) Após a aquisição do prédio, os RR. B e A entraram na posse do mesmo, praticaram sobre o mesmo actos de posse convictos de não lesarem os direitos de outrem e muito menos do ora A.; ( Alínea HH). q) Estando de boa-fé, ( artigo 1260 do C. Civil) r) À ora Apelante foi solicitado pelos RR. A e B a concessão de empréstimo, dando como garantia a hipoteca sobre o prédio objecto da presente acção; s) Foi aos mesmos RR e pela ora Apelante solicitada a entrega de certidão do Registo Predial; t) Perante tal certidão, em que se verificou a inscrição definitiva a favor dos RR. A e B, bem como a ausência de qualquer ónus ou encargo, decidiu conceder o solicitado empréstimo; u) 0 Douto Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 413º do C. Civil, artigo 5º n.º 1, artigo 6º n.º 1, 7º, e 1º do C. Registo Predial.' O autor respondeu pugnado pela improcedência dos recursos.
3. - Por acórdão de 29 de Novembro de 2001, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento a ambos os recursos, mantendo as decisões das instâncias. Notificados, os réus A, B e mulher B, vieram arguir a nulidade deste aresto, com fundamento na alínea c) do nº1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, por
'manifesta contradição entre a decisão e os fundamentos', e requerer um esclarecimento, tendo o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 21 de Fevereiro de 2002, indeferido a reclamação na sua totalidade.
4. - Em 7 de Março de 2002, o relator no Supremo Tribunal de Justiça proferiu despacho a indeferir o pedido de revista ampliada, entretanto formulado pelos réus A, B e mulher , por não se verificar o requisito temporal exigido no nº1 do artigo 732º-A do Código de Processo Civil. Notificados desta decisão, vêm agora os réus interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de
15 de Novembro, declarando que 'pretende-se ver apreciada a constitucionalidade da norma contida no artigo 413º, nº1, do Código Civil, com a interpretação que lhe foi dada no aresto de que ora se recorre', por alegada violação dos artigos
2º, 18º, nº1 e 2, e 62º da Constituição da República, questão que [afirmam] 'foi suscitada de forma atempada e adequada nos autos'.
5. - No caso em apreço, os recorrentes não concretizaram qual a interpretação dada à norma do nº1 do artigo 413º do Código Civil que reputam de inconstitucional, nem identificaram expressamente qual a decisão recorrida de que pretendem interpor recurso, o que legitimaria o convite ao aperfeiçoamento do requerimento, nos termos do nº5 do artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional. Porém, sendo evidente que o presente recurso, tendo em conta o seu objecto, só pode dizer respeito ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2001, que conheceu de fundo e aplicou a norma em causa, seria inútil que se lançasse mão do referido convite pois, independentemente da concretização que viesse a ser efectuada sempre seria de proferir-se decisão sumária de não conhecimento do recurso, nos termos do nº1 do artigo 78º-A do mesmo diploma, em virtude de os recorrentes não terem suscitado durante o processo a questão de constitucionalidade. Na verdade, como se pode verificar das conclusões das respectivas alegações de recurso acima transcritas, os recorrentes não aludiram sequer à problemática da constitucionalidade, de forma a que o tribunal recorrido pudesse sobre ela pronunciar-se, nem o fizeram posteriormente nem em qualquer outra fase processual, o que, por si só, constitui obstáculo ao conhecimento do recurso.
6. - Com efeito, constitui jurisprudência reiterada e uniforme do Tribunal Constitucional entender que, nos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, como é o caso, a suscitação da questão de constitucionalidade reportada a normas, na sua integralidade, em dada dimensão ou na interpretação que delas se faz, há-de ocorrer durante o processo, e, bem assim – entre outros pressupostos de admissibilidade do recurso que, no caso, não interessa considerar – que a decisão recorrida haja aplicado essa norma, que como tal se assuma como seu suporte fundamentante. A suscitação atempada, ou seja, durante o processo, significa que a questão deve ser levantada, em princípio, em momento anterior ao de o tribunal recorrido proferir a decisão final, de modo a ser-lhe ainda possível pronunciar-se a seu respeito. A inconstitucionalidade há-de suscitar-se antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que a questão de constitucionalidade versa, entendendo-se, por conseguinte, a locução durante o processo não em sentido formal que permita equacionar o problema até à extinção da instância, mas sim em sentido funcional, determinante de a invocação ocorrer em momento em que o tribunal recorrido ainda possa conhecer da questão. Nesta linha de orientação – que está apoiada abundantemente na jurisprudência como, a título exemplificativo, o ilustram os acórdãos n.ºs. 479/89 e 232/94, publicados no Diário da República, II Série, de 24 de Abril de 1992 e 22 de Agosto de 1994, respectivamente – igualmente se vem entendendo que o pedido de aclaração da decisão ou a arguição de nulidades desta não constituem já, em princípio, momento atempado e via idónea para equacionar os problemas de constitucionalidade articulados com a decisão, o mesmo se dizendo da suscitação ocorrida apenas no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade. Também neste sentido o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado repetidamente, como nos casos dos acórdãos citados ou nos n.ºs. 635/93 e 102/95, publicados no mesmo Diário, II Série, de 31 de Março de 1994 e 17 de Junho de 1995, respectivamente.
7. - Deste modo, não tendo os recorrentes suscitado atempadamente durante o processo a questão de constitucionalidade não pode tomar-se conhecimento do recurso.
8. - Assim, dado o sumariamente exposto, decide-se, nos termos do nº1 do artigo
78º-A, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, não tomar conhecimento do recurso. Custas a cargo dos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 6 unidades de conta para o recorrente A e em 6 unidades de conta para os recorrentes B e mulher.'
2. - Notificados os recorrentes, A, B e mulher, vêm reclamar para a conferência, de acordo com o preceituado no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, discordando do decidido na medida em que aí se afirma não ter sido suscitada de forma atempada a questão de constitucionalidade (durante o processo), sendo certo que, 'a referida questão foi invocada de forma expressa no recurso de revista interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra'.
O recorrido não respondeu.
Cumpre decidir.
3. - Na decisão sumária houve oportunidade de transcrever integralmente as conclusões formuladas pelos ora reclamantes nas respectivas alegações de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.
Como é patente e decorre da sua singela leitura, nenhuma questão de constitucionalidade aí se reportou, sequer implicitamente – como, tão pouco, se surpreende a sua suscitação ao longo da respectiva peça processual.
De resto, os reclamantes não cuidam de precisar a localização da questão, como se outra intenção não tivessem senão a de protelar o trânsito em julgado da decisão.
4. - Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta, para o recorrente A e em 15 unidades de conta para os recorrentes B e mulher . Lisboa, 26 de Setembro de 2002- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida