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Proc. nº 442/02 TC – 1ª Secção Relator: Consº. Artur Maurício
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1 - Nos autos em que A, devidamente identificada, recorre do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 149 para o Tribunal Constitucional, foi proferida a seguinte decisão sumária:
'1 – B. moveu execução para pagamento de quantia certa a C, casado com A, e outro, execução no âmbito da qual foram penhorados bens comuns daquele casal.
Em 23 de Janeiro de 1993, A deduziu embargos de terceiro por apenso àquela execução e que foram julgados improcedentes por sentença da 1ª instância. Esta sentença foi, contudo, revogada por acórdão da Relação de Lisboa, que ordenou o levantamento das penhoras.
A exequente/embargada recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça com fundamento de que tinha sido violado o disposto no nº. 1 do artigo 1696º do Código Civil
(na redacção que lhe foi dada pelos artigos 4º e 27º do Decreto-Lei nº.
329-A/95, de 12 de Dezembro), recurso sobre o qual foi produzido, em 17 de Dezembro de 1998, acórdão revogatório da decisão recorrida na parte em que ordenara o levantamento das penhoras, mantendo-as, podendo a embargante requerer a separação de bens, nos termos do artigo 825º do Código de Processo Civil, no prazo de 15 dias após o trânsito em julgado do acórdão do STJ.
Em 11 de Março de 1998, A deduziu novos embargos de terceiro sustentando - em síntese - que o acórdão do STJ retirou às penhoras efectuadas os efeitos anteriores ao caso julgado, conferindo-lhes efeitos apenas para o futuro; tal significaria uma nova penhora, sendo que os bens penhorados já não eram, à data da prolação daquele acórdão, comuns, por terem sido entretanto partilhados; a nova penhora incidira, assim, sobre bens de terceiro já que o STJ, ao retirar os efeitos do passado, consolidara a propriedade exclusiva da embargante resultante da partilha.
A excepção de caso julgado deduzida pela embargada foi julgada procedente e a embargada absolvida da instância, tendo a embargante sido condenada como litigante de má fé em multa de 10 UCs (cf. fls. 47 a 49).
Inconformada, a embargante recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo apresentado alegações em que defendeu – em síntese – não estar verificada a excepção de caso julgado por não haver identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, sendo nos primeiros embargos o bem comum e nos segundos bens próprios da embargante por partilha; os segundos embargos, ao contrário dos primeiros, não eram embargos de cônjuge; o sentido da decisão do STJ seria, assim, o de uma nova penhora incidente agora sobre bens próprios da embargante.
Por acórdão de 22 de Maio de 2001, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida e condenou a embargante em
15 U.Cs de multa como litigante de má fé (cf. fls. 88 a 91).
A embargante interpôs recurso de revista para o STJ '(...) apresentando extensas alegações com 21 conclusões argumentativas, repetitivas e mesmo confusas, indicando como violados os artºs 497º, 498º e 668º, nºs 1 b) e d) do CPC' (cf. fls. 151).
Por acórdão de 23 de Abril de 2002, o STJ decidiu negar provimento ao recurso e condenar a embargante nas custas e, como litigante de má fé, na multa de 20 U.Cs.
Este acórdão confirmou o julgado recorrido. Na parte em que confirmou a procedência da excepção de caso julgado, disse-se no aresto:
- Que o acórdão do STJ, de 17/2/98, considerara que a penhora efectuada não podia, à data, incidir sobre bens comuns do casal, podendo a referida A, citada para requerer a separação de bens, embargar de terceiro;
- Que no mesmo acórdão se considerou que a nova redacção do artigo 1696º nº 1 do Código Civil, excluindo a moratória era aplicável ao caso, por força do disposto nos artigos 26º nº 2 e 27º do Decreto-Lei nº 329-A/95, em certos termos;
- Que esses termos se destinavam a impedir que a embargante ficasse privada do direito de requerer a separação de bens, tal como é configurada no actual artigo
825º do Código de Processo Civil;
- Que, ainda nos termos do mesmo acórdão, as penhoras foram mantidas com efeitos para o futuro (não ocorrera nova penhora), porque deixara de aproveitar à embargante a moratória prevista na lei civil, mas permitindo-se, então, que a embargante requeresse a separação de bens;
- Que os segundos embargos são idênticos aos primeiros, com os mesmos sujeitos, as mesmas penhoras para garantir o mesmo crédito e o mesmo efeito jurídico, ocorrendo, assim, repetição de uma causa, contra o disposto no artigo 498º do CPC.
De novo inconformada, a embargante recorreu para o Tribunal Constitucional tendo dito no requerimento de interposição de recurso, no que interessa para a questão de constitucionalidade (cf. fls. 161 a 166):
'10 – A Constituição consagra, em princípio, a intangibilidade do caso julgado como regra geral do direito português resultante, designadamente, do princípio constitucional do estado de Direito Democrático (artigo 2º), enquanto pressuposto de garantia dos valores da segurança e da certeza da ordem jurídica. Admitir a modificabilidade do caso julgado, fosse por via judicial ou legislativa, significaria sempre colocar em causa as ideias de estabilidade, de segurança e mesmo de tutela da confiança dos cidadãos; e a obrigatoriedade das decisões judiciais para todas as entidades públicas e privadas e a sua prevalência sobre as de quaisquer outras entidades (C.R.P., artigo 208º, nº2) constituem também fundamento para a intangibilidade do caso julgado (Prof.Paulo Otero, Ensaio Sobre o caso Julgado Inconstitucional, Lex, 1993, pág. 50).
11 – Constitui objecto do recurso a norma decorrente da conjugação entre o artigo 27º do Decreto-Lei nº. 329-A/95 e a nova redacção do nº 1 do artigo 1696º do Código Civil. A recorrente contou com a protecção, mais forte, da moratória e violaria o princípio da confiança a validade retroactiva de uma penhora ilegal, pretendida pelo acórdão ora recorrido, feita num quadro legal diferente do resultante da alteração da lei, não podendo a embargante contar com este, sendo a consequência desta concreta aplicação da norma, pelo acórdão recorrido, não a incidência da penhora sobre bem comum, mas a incidência irreversível da penhora sobre bem próprio de terceiro não responsável pela dívida e que já não pode requerer a separação de bens. Se no decurso da penhora ilegal, inválida - e ineficaz – foi feita a partilha do bem comum, deixou de existir o objecto bem comum para convalidação da penhora
(em verdade, não se trata de convalidação, mas de uma nova penhora).
É inconstitucional – por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito, consagrado no art. 2º da Constituição da República e do direito de propriedade protegido pelo art.62º - a norma que se extrai da conjugação do artigo 27º do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro
(acrescentado pelo Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro) com o artigo 1696º, nº 1 do Código Civil (na redacção introduzida por aquele Decreto-Lei nº
329-A/95), interpretada no sentido de que a penhora de bens comuns do casal, feita numa execução instaurada contra um só dos cônjuges, para cobrança de dívidas por que só ele era responsável, contra a qual o cônjuge do executado deduziu embargos de terceiro, que foram julgados procedentes, em virtude de a execução estar, na altura, sujeita a moratória, passou a ser válida, sobre bens de terceiro, após a partilha do casal em data na qual aquela penhoranão estava convalidada, nem produzia efeitos, conforme acórdão do Supremo transitado em julgado.'
Cumpre apreciar e decidir.
2 – Nas palavras da recorrente 'Constitui objecto do recurso a norma decorrente da conjugação entre o artigo 27º do Decreto-Lei nº. 329-A/95 e a nova redacção do nº 1 do artigo 1696º do Código Civil.'
Dispõe o artigo 27º do Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro:
'Artigo 27º (Moratória forçada) – É aplicável nas causas pendentes à data da entrada em vigor deste diploma a nova redacção introduzida no artigo 1696º do Código Civil.'
Por força do artigo 4º do mesmo Decreto-Lei, passou a ser esta a redacção do artigo 1696º, nº. 1 do Código Civil:
'1. Pelas dívidas da responsabilidade de um dos cônjuges respondem os bens próprios do cônjuge devedor e, subsidiariamente, a sua meação nos bens comuns.'
Segundo o entendimento da recorrente, essas normas conjugadas são inconstitucionais, por violação do princípio da confiança e do direito de propriedade, quando '(...)interpretada no sentido de que a penhora de bens comuns do casal, feita numa execução instaurada contra um só dos cônjuges, para cobrança de dívidas por que só ele era responsável, contra a qual o cônjuge do executado deduziu embargos de terceiro, que foram julgados procedentes, em virtude de a execução estar, na altura, sujeita a moratória, passou a ser válida, sobre bens de terceiro, após a partilha do casal em data na qual aquela penhora não estava convalidada, nem produzia efeitos, conforma acórdão do Supremo transitado em julgado.'
O Tribunal Constitucional já por diversas vezes teve oportunidade de se pronunciar sobre a constitucionalidade das normas conjugadas constantes do artigo 27º do Decreto-Lei nº. 329-A/95, de 12 de Dezembro e do artigo 1696º do Código Civil, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 4º do referido Decreto-Lei.
Decidiu este Tribunal no acórdão nº. 559/98, de 29 de Setembro, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', vol. 41º, págs. 63 a 82:
'Por todo o exposto, o Tribunal decide:
(a). julgar inconstitucional - por violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2º da Constituição da República - a norma que se extrai da conjugação do artigo 27º do Decreto-Lei n.º
329-A/95, de 12 de Dezembro (acrescentado pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro) com o artigo 1696º, n.º 1, do Código Civil (na redacção introduzida por aquele Decreto-Lei n.º 329-A/95), interpretada no sentido de que a penhora de bens comuns do casal, feita numa execução instaurada contra um só dos cônjuges, para cobrança de dívidas por que só ele era responsável, contra a qual o cônjuge do executado tinha deduzido embargos de terceiro, que a 1ª instância e a Relação julgaram procedentes, em virtude de a execução estar, na altura, sujeita a moratória, passou a ser válida, desde que o exequente, ao nomear tais bens à penhora, tivesse pedido a citação desse cônjuge para requerer a separação de bens;'
Por seu turno, no acórdão nº. 29/2000, de 12 de Janeiro, in 'Acórdãos do Tribunal Constitucional', vol. 46º, págs. 245 a 259, decidiu este Tribunal:
'Ora, com a aplicação da lei nova com supostos efeitos retroactivos e nos termos em que ocorreu (com a penhora efectuada no domínio da lei anterior), impossibilitada a recorrente de defender a posse do bem comum (no limite com sujeição à moratória e relativa ao direito à meação do executado cuja penhora viesse, posteriormente, a ser requerida pelo exequente), os direitos da recorrente seriam intoleravelmente afectados e, assim, ofendido o princípio da confiança ínsito na ideia de Estado de Direito consagrado no artigo 2º da CRP, se não houvesse já qualquer meio de defesa daqueles bens, ainda que - com a eliminação da moratória – necessariamente menos forte.
É, aliás, essa ausência de meios de defesa – no caso a perda de oportunidade para requerer a separação de bens nos termos do artigo 825º nº. 2 (nova redacção) do CPC – que ditou o julgamento de inconstitucionalidade por ofensa daquele princípio, no citado Acórdão nº. 559/98. A lógica de argumentação é idêntica no Acórdão nº. 508/99; só que o julgamento de não inconstitucionalidade foi determinado pelo reconhecimento de que, no caso, não houvera ainda lugar à citação do cônjuge do executado nos termos do artigo 825º nº. 2 do CPC, estando ainda em tempo, como meio de defesa dos bens, o requerimento de separação de bens. Ora, no caso em apreço, e sem embargo de se reconhecer que a citação da recorrente há muito se efectuou, o Tribunal entende que da sentença de 1ª instância, confirmada pelos Acórdãos da Relação e do STJ, resulta que o artigo
27º do DL nº. 329-A/95 foi aplicado numa dimensão que pressupõe – aliás expressamente – uma (nova) citação do cônjuge do executado, estando este, então, ainda em tempo para se defender da penhora. Escreveu-se na referida sentença:
'De qualquer forma quando for citado o cônjuge do executado, ora embargante, no momento e com as garantias a que se refere o artigo 864º do CPC, poderá ele, no prazo de 15 (quinze) dias, requerer a separação de bens ou juntar aos autos certidão comprovativa da pendência de processo de separação de bens já instaurado, sob pena de a execução prosseguir no bem penhorado' (sublinhado nosso) Está assim, neste específico contexto, inequivocamente salvaguardado o direito da recorrente em termos tais que a suposta retroactividade que teria implicado a aplicação imediata do artigo 27º do DL nº. 329-A/95 não afecta, de forma inadmissível e arbitrária, os direitos ou expectativas legitimamente fundadas da mesma recorrente. Não foram assim violados os princípios da confiança e da segurança jurídica.'
O que justificou, pois, os juízos de (in)constitucionalidade deste Tribunal teve sempre como vector essencial a possibilidade ou impossibilidade de o embargante se defender da penhora e requerer a separação da meação, determinando a ausência de meios de defesa o juízo de inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança no caso do acórdão nº. 559/98 e a possibilidade de (nova) citação da embargante para requerer, querendo, a separação de bens o juízo de não inconstitucionalidade dos acórdãos nº. 508/99 e 29/00.
No caso dos presentes autos, a decisão do STJ, de 17/2/98, ao manter a penhora, mas assegurando a possibilidade de a embargante requerer a separação de bens no prazo de 15 dias, a contar do trânsito em julgado, não deixa, assim, de estar de harmonia com o que este Tribunal vem, a propósito, decidindo.
O que se acaba de dizer tem, porém, que ver – e apenas – com o citado acórdão do STJ de 17/2/98, onde a citada questão de constitucionalidade se poderia colocar, por nele se ter feito aplicação, com determinada interpretação, das referidas normas.
Coisa diferente sucede no acórdão recorrido.
É que este se limita, na parte que interessa, a decidir se se verifica a excepção de caso julgado, ou seja se ocorre a identidade prevista no artigo 498º do CPC, questão a que dá resposta afirmativa.
Nesta operação, o acórdão cinge-se à interpretação do julgado no acórdão do STJ de 17/2/98 e a verificar a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir nos dois processos de embargos. Nada, absolutamente nada, que consubstancie a aplicação, expressa ou implícita, das normas (ou de uma sua interpretação) questionadas sub specie constitutionis.
Não se mostra, pois, preenchido um dos pressupostos de admissibilidade do recurso – aplicação pela decisão recorrida da norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada (artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC).
3 – Decisão:
Pelo exposto, e em conclusão, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs.'
Notificada desta decisão, a recorrente vem reclamar para a conferência.
A recorrida sustenta que a reclamação deve ser indeferida.
2 - Na sua reclamação, a recorrente analisa o citado acórdão do STJ de 17 de Fevereiro (por lapso, referiu-se 'Dezembro', no relatório da decisão reclamada) de 1998, entendendo que ele decidira, com força de caso julgado, que a partilha efectuada em 13/11/97 era perfeitamente eficaz; mantendo a penhora, mas apenas com efeitos para o futuro, aquela passara a incidir sobre bens próprios, o que justificara os segundos embargos de terceiro, por ela deduzidos, e o pedido de levantamento da dita penhora, sendo certo que, na data do acórdão do STJ, já não era possível requerer a separação de bens.
O posterior acórdão da Relação e o acórdão do STJ ora recorrido, indeferindo o pedido de levantamento da penhora sobre bens de terceiro, violariam o caso julgado do acórdão de 17/2/98, fazendo valer, para o passado, a penhora e ofendendo o direito de propriedade da recorrente.
Estas questões não teriam sido atendidas na decisão reclamada e justificavam o conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade.
A reclamante não tem qualquer razão e desfoca a questão a resolver: a de saber se o acórdão recorrido fez aplicação das normas cuja apreciação de constitucionalidade a reclamante pretende no recurso interposto para este Tribunal.
Ora, sem embargo de a decisão reclamada tecer algumas considerações sobre o acórdão do STJ de 17/2/98, ela deixa bem claro que, interessando no caso apenas o que o acórdão recorrido decidira, este aresto negara provimento ao recurso, confirmando o acórdão da Relação então impugnado, com fundamento na repetição da causa, vedada pelo artigo 497º do Código de Processo Civil, uma vez que eram os mesmos os sujeitos, as penhoras, o crédito e o efeito jurídico
(artigo 498º do CPC)..
Nesta medida, o vício de inconstitucionalidade que justificaria o recurso para o Tribunal Constitucional só poderia reportar-se às referidas normas sobre o caso julgado (artigo 70º nº 1 alínea b) da LTC) e não àquelas que a recorrente indicara no requerimento de interposição do recurso, eventualmente pertinentes se recorrido tivesse sido o acórdão do STJ de 17/2/98.
Nada sobre este fundamento da decisão sumária a reclamante alega em contrário, remetendo-se a um expressivo silêncio.
Não merece, assim, censura a decisão reclamada.
3 – Decisão:
Pelo exposto e em conclusão, decide-se indeferir a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Ucs.
Lisboa, 26 de Setembro de 2002- Artur Maurício Luís Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa