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Processos n.ºs 554/02, 554-A/02 e 554-B/02
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório Em 24 de Julho de 2002, A veio, 'nos termos do art. 103º-D da Lei do Tribunal Constitucional', intentar neste Tribunal contra o Partido Comunista Português
(P.C.P.) 'acção de impugnação da deliberação que o puniu com a sanção de
«Expulsão do Partido»', sanção, essa, que lhe fora, em 19 de Julho de 2002, aplicada pelo Secretariado do Comité Central, e, no mesmo dia, ratificada pela Comissão Central de Controlo do P.C.P. e comunicada ao arguido. Na petição conclui-se pela existência de violação de direitos fundamentais do Autor, em si e como membro do Partido (referindo-se no articulado as normas constitucionais que consagram a liberdade de expressão, o direito de reunião, a liberdade de associação e o direito de participar em associações e partidos políticos), de violação dos estatutos do P.C.P., 'quando o órgão que o puniu não foi o Comité Central', e de violação do direito de defesa, 'quando, sem prova e independentemente dela, um ente diferente do que decidiu ordenou, recomendou ou preconizou a mera formalização da audição de testemunhas, mesmo antes de elas serem ouvidas, dando por consumada a decisão, independentemente do teor, impacto, alcance, sentido e relevo da prova produzida, o que se veio a verificar, por via do exacto e rigoroso cumprimento formal e substantivo dessa ordem, recomendação ou opinião'. O Autor – que ofereceu como prova nove documentos e requereu a audição de cinco testemunhas – termina pedindo que seja declarada a nulidade do processo disciplinar, a nulidade da deliberação punitiva e todas as legais consequências decorrentes dessas declarações de nulidade. No mesmo dia, A veio requerer, nos termos do artigo 103º-E, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, a 'suspensão de eficácia da deliberação do Secretariado do Comité Central' do P.C.P. referida, já que, alega, 'a execução da deliberação que expulsou o Requerente do P.C.P. provocar-lhe-á danos violentos na sua esfera pessoal, cívica e política.' O Autor requereu que 'nos termos conjugados dos Arts. 103º-E, n.º 2 da L.T.C. e dos Arts. 396º e 397º do C.P.C. seja o Requerido citado para se opor, querendo, no prazo de 5 dias, devendo oferecer os documentos a que se referem os citados preceitos, tanto mais que requereu cópia da Acta da Deliberação, que lhe não foi fornecida, com excepção das Actas das Deliberações que foram requeridas e, nesta data, entregues ao Requerente'. Com o requerimento, juntou actas das deliberações do Secretariado do Comité Central e da Comissão Central de Controlo, requereu a apensação dos autos à acção de impugnação, para servirem de prova os mesmos documentos, e indicou também cinco testemunhas. Também em 24 de Julho de 2002, B veio também intentar contra o P.C.P. acção de impugnação da deliberação que o puniu com a sanção de 'Expulsão do Partido', aplicada também nas datas e pelos órgãos referidos no número anterior. Na acção conclui-se igualmente pela existência, na decisão punitiva impugnada, de violação de direitos fundamentais do Autor, em si e como membro do Partido
(liberdade de expressão, direito de reunião, liberdade de associação e direito de participar em associações e partidos políticos), bem como de violação dos estatutos do P.C.P. ('quando o órgão que o puniu não foi o Comité Central'). O Autor – que juntou sete documentos e requereu a audição de três testemunhas – termina formulando pedidos idênticos aos referidos no número anterior. No mesmo dia, B requereu também, nos termos do artigo 103º-E, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, a 'suspensão de eficácia da deliberação do Secretariado do Comité Central' do P.C.P. referida, alegando que 'a execução da deliberação que expulsou o Requerente do P.C.P. provocar-lhe-á danos violentos na sua esfera pessoal, cívica e política'. O demandante indicou três testemunhas e requereu ainda que o P.C.P. oferecesse com a contestação os documentos a que se referem os preceitos dos artigos 103º-E, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional, 396º e
397º do Código de Processo Civil, 'tanto mais que requereu cópia da Acta da Deliberação, que lhe não foi fornecida'. Ainda em 24 de Julho de 2002, C veio intentar contra o P.C.P. acção de impugnação da deliberação que o puniu com a sanção de 'suspensão da actividade partidária pelo período de 10 meses', sanção, essa, que lhe foi aplicada em 19 de Julho pelo Secretariado do Comité Central – o qual deliberou também 'submeter a medida disciplinar à ratificação do Comité Central' –, e que, nesse mesmo dia, foi comunicada ao Autor. Na acção conclui-se também pela existência, na decisão punitiva, de violação de direitos fundamentais do Autor, em si e como membro do Partido (referindo-se a liberdade de expressão, o direito de reunião, a liberdade de associação e o direito de participar em associações e partidos políticos), bem como de violação dos estatutos do P.C.P. ('quando o órgão que o puniu não foi o Comité Central'). O Autor – que juntou sete documentos e requereu a audição de quatro testemunhas – termina pedindo também que seja declarada a nulidade do processo disciplinar, a nulidade da deliberação punitiva e todas as legais consequências decorrentes dessas declarações de nulidade. E, no mesmo dia, C veio também requerer, nos termos do artigo 103º-E, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, a 'suspensão de eficácia da deliberação do Secretariado do Comité Central' do P.C.P. referida, alegando que 'a execução da deliberação que suspendeu o Requerente do P.C.P. provocar-lhe-á danos violentos na sua esfera pessoal, cívica e política'. O demandante indicou quatro testemunhas e requereu ainda que o P.C.P. oferecesse com a contestação os documentos a que se referem os preceitos dos artigos 103º-E, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional, 396º e 397º do Código de Processo Civil, 'tanto mais que requereu cópia da Acta da Deliberação, que lhe não foi fornecida'. No Tribunal Constitucional foi ordenada, por despacho do Ex.mº Conselheiro Presidente exarado nos autos referidos supra no n.º 1 (processo n.º 554/02), a apensação a estes dos autos de impugnação e suspensão de eficácia que foram indicados nos n.ºs 2 e 3 (n.ºs 554-A/02 e 554-B/02). Determinada a citação do P.C.P., veio este contestar, em síntese, quanto às duas acções de impugnação primeiro referidas: a. Suscitando uma questão prévia, pois das decisões de aplicação de sanções cabia 'recurso, nos termos estatutários, para o organismo imediatamente superior que, neste caso, é o Comité Central', estando os impugnantes, ao intentar as acções, 'ainda em tempo de interpor recurso para o Comité Central', sendo que, não o tendo feito, a 'acção é extemporânea, pelo que deve ser liminarmente indeferida'; b. Quanto ao órgão competente para decidir, que nada nos estatutos impunha que as sanções de expulsão fossem decididas pelo Comité Central, sendo, aliás, que, 'ao delegar os poderes de ratificar as sanções de expulsão num organismo executivo (de acordo com os Estatutos), garantiu o CC, como quis garantir, um amplo direito a recorrer para o Comité Central, da decisão de ratificação tomada pelo organismo executivo'; c. Quanto ao procedimento seguido, que não é verdade que as decisões estivessem previamente tomadas, ou que não tenha existido contraditório e prova; d. Quanto à fundamentação das acusações e das decisões, que não é verdade que aquelas se baseassem em 'meras abstracções, imputações ou conceitos vagos', ou que, com as decisões, tenham sido violados direitos fundamentais dos impugnantes, como a liberdade de expressão e o direito de reunião e de manifestação, pois 'nem a Constituição nem a lei obrigam a que um Partido Político tenha como militante, quem, no exercício dos direitos atrás referidos, ataque o Partido, calunie, mine a coesão e a unidade do Partido', e a negação do correspondente poder disciplinar significaria uma 'inadmissível ingerência estadual' e um 'controlo sobre a organização interna do Partido', violadores da Constituição e não legitimados pelas modificações introduzidas na última revisão constitucional (como resultaria, aliás, quanto à Lei do Tribunal Constitucional, de alteração introduzida no Projecto de Lei, na sequência do relatório e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias); e. E que, por fim, 'é gritantemente injusta a afirmação de que o[s] A fo[ram] punido[s] por delitos de opinião'. Respondendo aos correspondentes pedidos de suspensão de eficácia, o P.C.P. veio negar que estejam reunidos os respectivos pressupostos, por os requerentes não terem esgotado todos os meios internos previstos nos estatutos para a apreciação da validade e regularidade das deliberações, e veio, subsidiariamente, deduzir oposição, na qual concluiu que:
'a. da execução da deliberação sancionatória não decorrem danos apreciáveis para o[s] Requerente[s] pelo que não é aplicável o preceito contido no n.º 1 do artº
103º-E conjugado com o n.º 7 do artº 103º-C, da Lei do Tribunal Constitucional. b. A ser entendido o contrário, seriam agravados os múltiplos prejuízos que a actuação do[s] Requerente[s] já provocou ao requerido.' Ao pedido de impugnação interposta por C, o P.C.P. respondeu começando por sustentar, em questão prévia, que 'a acção é extemporânea, por não estar ainda em execução a medida aplicada' – pois 'o A interpôs a acção assim que recebeu a notificação da resolução, não aguardando pela deliberação do Comité Central quanto à ratificação' a que está estatutariamente sujeita –, e aduzindo, seguidamente, argumentação análoga à que se acabou de descrever, para os outros dois pedidos de impugnação. E, quanto ao pedido de suspensão de eficácia da decisão, o P.C.P. afirmou também que, 'não sendo a decisão ainda plenamente eficaz, não tem aplicação imediata e, como tal, não é susceptível de suspensão', deduzindo seguidamente oposição, que rematou com conclusão idêntica à que se transcreveu. Com as respostas, o P.C.P. juntou a documentação referida no n.º 5 do artigo
103º-C da Lei do Tribunal Constitucional, bem como diversos outros documentos, incluindo cópia das actas das deliberações em causa do Secretariado do Comité Central e da Comissão Central de Controlo. Notificados para responder às questões prévias suscitadas pelo P.C.P., vieram os requerentes dizer, em síntese, que: a. Não se pode inferir da exigência de esgotamento dos meios partidários internos que 'urge alcançar um acto definitivo e executório para se obter a satisfação de um direito com o alcance que o Art. 2º, n.º 2 CPC consagrou', movendo-se os Autores no plano do Código de Processo Civil (correspondente ao
'enquadramento teleológico das normas em que se suportam para agir junto do Tribunal Constitucional'); b. Foi praticado, mesmo para o Autor C, 'o último acto do processo sancionatório – a publicitação', e pelo órgão com poderes delegados pelo Comité Central para a prática de um acto punitivo, tendo, aliás, o 'vaivém das competências próprias e delegadas' sido deliberadamente criado pelo P.C.P.,
'remetendo para o órgão delegante o poder de reapreciar um acto emergente da competência que havia abandonado (por delegação)', não podendo, porém, tal
'curto-circuito de competências aproveitar ao infractor'; c. Quanto aos demais Autores, do último acto, praticado pela Comissão Central de Controlo, não poderia caber recurso para o Comité Central, já que tal acto teria sido praticado pela Comissão Central de Controlo também como '
‘instância de recurso de qualquer organismo’ (maxime do Comité Central)'; d. Por outro lado – e para além de não se alcançar 'a susceptibilidade de um órgão de direcção política delegar competências num órgão com competência jurisdicional' (entorse que, porém, decorreria dos estatutos do P.C.P. ao consagrarem a Comissão Central de Controlo como órgão executivo do Comité Central) –, a competência para punir com a sanção expulsiva caberia, em exclusivo, ao Comité Central, sendo indelegável, pelo que o vício de competência que inquinaria as medidas disciplinares aplicadas não poderia reverter a favor do infractor (sendo, aliás, que, segundo a interpretação efectuada pelos demandantes de certos passos da contestação, o P.C.P. implicitamente reconheceria a competência exclusiva do Comité Central); As respostas concluem com a reiteração da nulidade do procedimento, não junto aos autos, e com uma impugnação global dos factos novos invocados na resposta do P.C.P.. Com a resposta às questões prévias, foi junto pelos demandantes um requerimento de 'desentranhamento da Contestação na Providência de Suspensão suscitada', invocando o disposto no artigo 397º, n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicável por força do artigo 103º-E, n.º 2 da Lei do Tribunal Constitucional, pois 'a deliberação está contida num processo, cuja junção foi requerida', não tendo este processo disciplinar sido oferecido juntamente com a contestação pelo P.C.P.. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos Nos termos dos artigos 10º, n.º 2 e 51º, n.º 1, da Constituição da República, os partidos políticos concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular, no respeito, entre outros, pelo princípio da democracia política. A Constituição, que reconhece aos partidos políticos certos direitos (cfr. os artigos 40.º, n.º 1, 114º e 151º, n.º 1, relativo, este último, à apresentação de candidaturas nas eleições para a Assembleia da República), fixou, como
'princípios' relativos ao seu funcionamento, os da 'transparência, da organização e da gestão democráticas e da participação de todos os seus membros'
(artigo 51º, n.º 5 da Constituição). Pode dizer-se que tais princípios são vistos como correlato necessário do papel constitucional dos partidos políticos na formação, organização e expressão da vontade política dos cidadãos: uma democracia em grande medida de partidos não pode prescindir, como sua condição funcional, de exigências de democracia também nos partidos (isto, mesmo que sem relação directa com a ideia de 'inimizade constitucional', como refere Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed., Coimbra,
2002, pág. 318). Já, aliás, antes da revisão constitucional de 1997, o princípio da gestão democrática se encontrava enunciado, para as associações sindicais, no artigo
55º, n.º 3 da Constituição da República. E, para os partidos políticos, essa
'forma particularmente importante das associações de natureza política', já antes de 1976 o Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de Novembro, que regulamentou a sua actividade, previa, no artigo 7º, sob a epígrafe 'Princípio democrático', que a organização interna de cada partido devia, entre outras, satisfazer as condições de os seus estatutos e programas serem 'aprovados por todos os filiados ou por assembleia deles representativa', e de os titulares dos órgãos centrais serem
'eleitos por todos os filiados ou por assembleia deles representativa', dispondo-se, também, que os 'estatutos devem conferir aos filiados meios de garantia dos seus direitos, nomeadamente através da possibilidade de reclamação ou recurso para os órgãos internos competentes' (artigo 17º, n.º 2). Em concretização do artigo 223º, n.º 1, alínea h) da Constituição, a Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional ('Lei do Tribunal Constitucional', na redacção dada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro) veio prever, nos seus artigos 103º-C e 103º-D, acções de 'impugnação de eleição de titulares de órgãos de partidos políticos' e de 'impugnação de deliberação tomada por órgãos de partidos políticos' (e respectivas medidas cautelares – artigo 103º-E do citado diploma). Quanto a esta última acção, distingue-se, no referido artigo 103º-D, entre, por um lado (n.º 1), a impugnação, 'com fundamento em ilegalidade ou violação de regra estatutária', de 'decisões punitivas' dos órgãos partidários tomadas em processo disciplinar em que seja arguido o impugnante, ou de 'deliberações dos mesmos órgãos que afectem directa e pessoalmente os seus direitos de participação nas actividades do partido', e, por outro lado (no n.º 2), a impugnação, por 'qualquer militante', de quaisquer deliberações dos órgãos partidários, mas apenas 'com fundamento em grave violação de regras essenciais relativas à competência ou ao funcionamento democrático do partido' (a solução do projecto de alteração à Lei do Tribunal Constitucional, que previa a possibilidade de impugnação de deliberações partidárias por qualquer militante, com fundamento em incompetência, preterição de regras de forma ou procedimentais, motivara reservas à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, expressas no respectivo relatório – Diário da Assembleia da República, cit., II série-A n.º 32, de 19 de Fevereiro de 1998, pág. 625 –, tendo, na sequência, sido alterado o projectado n.º 2 do artigo
103º-D – cfr., porém, ainda assim, a declaração de voto do P.C.P., no Diário, cit., I série, n.º 41, de 19 de Fevereiro de 1998, pág. 1389). Não é agora necessário apurar precisamente se este regime veio alargar ou restringir possibilidades de controlo judicial que já resultariam de um regime geral anterior, ou se, no que ora interessa, veio simplesmente concentrar no Tribunal Constitucional a competência para esse controlo – encontrando-se, aliás, referência a tal questão logo no debate da norma constitucional citada
(v. o Diário..., cit., II série, n.º 24, de 19 de Setembro de 1996, pág. 713, e I série, n.º 102, de 30 de Julho de 1997, pág. 3867). Basta considerar que tal regime não conduz a uma ingerência estatal, constitucionalmente inadmissível, na liberdade de funcionamento dos partidos políticos, pois limita-se a prever mecanismos indispensáveis à garantia dos princípios constitucionais e legais enunciados (a alteração acolhida pelo legislador parlamentar, que o P.C.P. refere na sua resposta, não se reportou, aliás, à impugnação de decisões punitivas, mas apenas ao n.º 2 do artigo 103º-D da Lei do Tribunal Constitucional). Pode, mesmo, na decorrência dos princípios constitucionais referidos, defender-se que é a própria protecção dos direitos dos militantes, em conjugação com a garantia constitucional de acesso aos tribunais, a requerer a possibilidade de um controlo judicial externo de decisões disciplinares punitivas, o qual não conflitua com a liberdade partidária, desde logo, 'na medida em que a intensidade de controlo seja diferenciada e em que, para protecção da autonomia dos partidos, sejam previamente esgotadas as vias jurídicas internas', como pressuposto para o controlo judicial externo (assim, Martin Morlok, Grundgesetz–Kommentar, org. por Horst Dreier, vol. II, 1998, pág.
306, em anotação ao artigo 21, n.º 1, 3, da Lei Fundamental alemã – segundo o qual a ordenação interna dos partidos tem de obedecer a princípios democráticos
–, e defendendo, ainda, que o controlo da aplicação de regras jurídicas estatutárias, como as disciplinares, para além da base factual e das regras de processo aplicáveis, poderá ter apenas o alcance de um 'controlo de plausibilidade, isto é, do arbítrio'). Ora, importa justamente apreciar a verificação dos pressupostos para se poder tomar conhecimento dos pedidos. A) Requerimentos de C Começando pelos pedidos formulados por C, e em face do teor dos actos questionados, não pode deixar de notar-se logo que, seja como for que se queira conceber o fundamento e o alcance da intervenção do Tribunal Constitucional no julgamento de impugnações de decisões punitivas de órgãos partidários, tal impugnação só há-de ser admissível em relação a decisões que estejam já a produzir os seus efeitos jurídicos, não carecendo para tal, nos seus próprios termos ou segundo os estatutos do respectivo partido, de quaisquer fases ulteriores (ratificação, confirmação, etc.). Ora, em relação a este impugnante está em causa uma decisão do Secretariado do Comité Central do P.C.P. de aplicação de sanção disciplinar, que ficou submetida a ratificação do Comité Central – não relevando, para o ora impugnante, a delegação de competências efectuada pelo Comité Central para a decisão de outras sanções (nem, por conseguinte, o 'vaivém das competências' contestado pelo demandante, que, quando muito, poderia resultar da delegação, existente, apenas, quanto a essas outras sanções). Assim – e mesmo deixando em aberto a questão de saber se, no caso de sanções sujeitas a ratificação, a decisão punitiva impugnada é, em rigor, a decisão de aplicação da sanção ou a decisão de ratificação –, resulta logo dos próprios termos da deliberação impugnada, em conjugação com o artigo 63º, n.º 3 dos estatutos do P.C.P. (que sujeita a medida disciplinar de suspensão 'a ratificação pelo organismo imediatamente superior àquele que aplica a sanção'), que se não está ainda perante um acto eficaz, podendo, mesmo, não chegar nunca a sanção disciplinar a produzir efeitos, por não vir a ser ratificada (e sendo certo que, se e quando o vier a ser, ao impugnante poderá abrir-se a via da impugnação e da suspensão de eficácia, se estiverem verificados os respectivos pressupostos). A confirmação de que não se está ainda perante um acto eficaz resulta, aliás, da própria resposta do P.C.P. na acção de impugnação, na qual se refere 'não estar ainda em execução a medida aplicada' (itálico aditado), e não é infirmada pela alegada publicitação da decisão, também enquanto sujeita a ratificação, pelo Comité Central. Não pode, pois, tomar-se conhecimento do pedido de impugnação. E, da mesma forma, não poderá tomar-se conhecimento do pedido de suspensão da eficácia de uma decisão punitiva que juridicamente não está ainda a produzir efeitos. B) Requerimentos de A e B Diferentemente se perfila a situação quanto aos pedidos formulados pelos outros dois requerentes (referidos supra, nos n.ºs 1 e 2), como resulta, não só de se tratar de sanções aplicadas e já ratificadas – pela Comissão Central de Controlo, por delegação do Comité Central, nos termos do artigo 63º, n.º 3, dos estatutos (que se refere a ratificação 'pelo Comité Central ou pelo organismo executivo ao qual tenha delegado tal competência') –, como, também, dos próprios termos da comunicação a um dos requerentes, em cumprimento do artigo 66º dos estatutos do P.C.P., de que, 'em função da sanção aplicada', devia 'devolver o cartão do Partido'. Nos termos do artigo 103º-C, n.º 3 (aplicável, com as adaptações necessárias, ao processo de impugnação de deliberações punitivas, nos termos do artigo 103º-D, n.º 3), da Lei do Tribunal Constitucional, 'a impugnação só é admissível depois de esgotados todos os meios internos previstos nos estatutos para apreciação da validade e regularidade do acto eleitoral' (no caso, da decisão punitiva). Não se trata, aqui, como se disse, de um pressuposto com meras finalidades formais ou de ordenação processual, nem sequer, que resulte, sem mais, de um
(duvidoso) paralelismo com a tradicional exigência, para efeitos de recurso, da definitividade e executoriedade do acto administrativo. É, antes, uma exigência que se compreende substancialmente como salvaguarda, num primeiro momento, de uma esfera de liberdade interna dos partidos, perante a imediata intervenção judicial externa no seu ordenamento disciplinar. Há, pois, que apurar se está verificada essa exigência de esgotamento de todos os meios internos previstos nos estatutos do P.C.P. para apreciação da validade e da regularidade da decisão impugnada. Dispõe o artigo 26º dos estatutos do P.C.P. que os 'órgãos superiores do Partido
à escala nacional são o Congresso e o Comité Central e seus organismos executivos', prevendo-se no artigo 34º que o Comité Central elegerá, de entre os seus membros, estes organismos executivos, a saber, 'a Comissão Política do Comité Central, o Secretariado do Comité Central e a Comissão Central de Controlo'. Enquanto o Congresso é um órgão não permanente (veja-se o artigo 27º, n.º 4), o Comité Central é, nos termos do artigo 31º, n.º 1 dos estatutos, 'o organismo que dirige a actividade do Partido no intervalo dos Congressos, assumindo a responsabilidade de traçar, de acordo com a orientação e resoluções dos Congressos, a orientação superior do trabalho político, ideológico e de organização do Partido'. Segundo o artigo 34º, n.º 3, o Secretariado do Comité Central, eleito pelo Comité Central, 'orienta e dirige o trabalho diário, é responsável pela distribuição de quadros e assegura o controlo de execução das tarefas correntes indicadas pelo Comité Central.' E, nos termos do artigo 34º, n.º 4, a Comissão Central de Controlo tem como atribuições a 'fiscalização da legalidade estatutária das actividades do Partido, a intervenção na solução de problemas de quadros de particular complexidade e como instância de recurso de qualquer organismo ou militante, a fiscalização das contas do Partido.' Sobre os meios de garantia dos direitos dos filiados perante os órgãos internos competentes, referidos no citado artigo 17º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 595/74, de 7 de Novembro, prevê-se no artigo 15º, alínea e) dos estatutos o direito do
'membro do Partido' de 'recorrer para organismos de responsabilidade superior de qualquer decisão de carácter disciplinar que lhe tenha sido aplicada' (segundo o artigo 18º dos estatutos, 'o organismo que dirige um determinado sector é considerado de responsabilidade superior a todos os que dirigem uma parte do mesmo'). E no artigo 62º (inserido no capítulo X, sobre 'Disciplina do Partido') desse regulamento estatutário pode ler-se:
'De qualquer sanção disciplinar, assim como da suspensão cautelar, pode sempre haver recurso para os organismos de responsabilidade superior, devendo estes informar os membros do Partido alvo da sanção ou suspensão da sua decisão.' Além disto, prevê-se nos estatutos que a medida disciplinar de expulsão, 'depois de apreciada pelo organismo imediatamente superior, é decidida ou ratificada pelo Comité Central ou pelo organismo executivo ao qual tenha delegado tal competência' (artigo 63º, n.º 3), e que todas as sanções disciplinares são comunicadas à Comissão Central de Controlo. O Comité Central pode 'modificar ou anular qualquer sanção, assim como a suspensão cautelar, mesmo que não tenha havido recurso' (artigo 63º, n.º 4). Traçado, assim, o quadro das disposições estatutárias relevantes, o que se poderá retirar delas para o presente caso? As sanções disciplinares em causa – recorde-se – foram decididas pelo Secretariado do Comité Central e ratificadas pela Comissão Central de Controlo, por delegação do Comité Central (delegação, esta, prevista no artigo 63º, n.º 3 dos estatutos). Ora, a possibilidade de recurso destas sanções para o Comité Central é defendida pelo próprio P.C.P. nas suas respostas, importando verificar se essa possibilidade dispõe de suficiente base estatutária. Entende-se que a conjugação dos preceitos referidos no número anterior inculca, efectivamente, que, nos termos dos estatutos do P.C.P., cabia recurso para o Comité Central das decisões disciplinares tomadas pelo Secretariado do Comité Central, por aquele poder ser considerado, para o efeito do citado artigo 62º, um 'organismo de responsabilidade superior' a este (e que, aliás, o elege). A qualificação do Comité Central como 'organismo de responsabilidade superior' ao Secretariado do Comité Central, para efeitos disciplinares – pese embora uma eventual sugestão de sinal contrário que se poderia pensar resultar da comum qualificação como 'órgãos superiores do Partido', no artigo 26º dos estatutos, tanto do Comité Central como dos seus organismos executivos (como o Secretariado) –, é, na verdade, não só a mais próxima da definição estatutária dos órgãos em causa, como é, ainda, de certa forma, confortada pelo próprio procedimento seguido quanto à sanção de suspensão igualmente impugnada nos presente autos: prevendo o artigo 63º, n.º 3, dos estatutos, que tal medida deve ser sujeita 'a ratificação pelo organismo imediatamente superior àquele que aplica a sanção', e tendo esta sido aplicada pelo Secretariado do Comité Central, decidiu-se submeter tal sanção à ratificação do Comité Central, como
'organismo imediatamente superior àquele que aplica a sanção'. Tal possibilidade de recurso – para o qual não se encontra fixado expressamente nos estatutos qualquer prazo (apenas o artigo 33º dispõe sobre a periodicidade das reuniões do Comité Central), do qual, aliás, os impugnantes não foram informados – pode dizer-se, ainda, correspondente à lógica que terá levado à sua formulação no artigo 62º dos estatutos, nos termos do qual 'De qualquer sanção disciplinar, assim como da suspensão cautelar, pode sempre haver recurso para os organismos de responsabilidade superior, devendo estes informar os membros do Partido alvo da sanção ou suspensão da sua decisão' (itálicos aditados). E a possibilidade de recorrer para o Comité Central afigura-se, ainda, subjacente ao citado artigo 63º, n.º 4, in fine, dos estatutos, onde se diz que
'mesmo que não tenha havido recurso', esse órgão pode anular ou modificar qualquer sanção. Mesmo, aliás, que se quisesse restringir esta referência no artigo 63º, n.º 4, a um recurso para outros órgãos, que não o Comité Central, o que é certo é que, nos termos do mesmo artigo, este dispunha do poder de anular ou modificar as sanções, nada impedindo os impugnantes de dirigirem a tal órgão o correspondente requerimento. Ainda, portanto, que não se qualificasse a intervenção do Comité Central propriamente como intervenção em sede de recurso – mas, por exemplo, como um mecanismo mais próximo de uma reclamação –, sempre subsistiria, à disposição dos impugnantes e como exigência prévia à acção no Tribunal Constitucional, um meio interno resultante dos estatutos, para apreciação da validade e regularidade do acto eleitoral. Acresce, ainda, que a solução segundo a qual os impugnantes podiam, nos termos dos estatutos, provocar a intervenção do Comité Central para reapreciação das decisões disciplinares do Secretariado (e mesmo que tenham sido ratificadas por um órgão com competência delegada pelo Comité Central) deve ser preferida por ser aquela que mais favorece o objectivo do citado artigo 17º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 595/74. É que outra solução significaria que os estatutos do P.C.P. não conferiam aos filiados 'meios de garantia dos seus direitos', pela
'possibilidade de reclamação ou recurso para os órgãos internos competentes', justamente para a sanção disciplinar mais grave – a expulsão –, que tem sempre de ser ratificada pelo Comité Central ou por um órgão executivo no qual este delegue tal competência. A conclusão a que se chegou não se altera, ainda, se perspectivarmos como objecto da acção a impugnação apenas das decisões de ratificação tomadas pela Comissão Central de Controlo – ratificações efectuadas por este órgão, não como instância de recurso, e no exercício da respectiva competência, mas, antes, no exercício da competência delegada pelo Comité Central para 'a ratificação da sanção disciplinar «expulsão do Partido»'.
É que valem também para estas decisões da Comissão Central de Controlo os argumentos referidos no número anterior, que se podem retirar dos estatutos. E isto, aliás, independentemente de saber se, quando o órgão que ratifica a sanção disciplinar é o próprio Comité Central, cabe ou não recurso para este
órgão (com a virtualidade de permitir um certo contraditório para reapreciação por tal órgão interno ad quem) – bem como da questão de saber se, como se defende nas respostas do P.C.P., a apreciação pelo órgão imediatamente superior, prevista nos estatutos, podia considerar-se consumida pela ratificação. É que, na parte ora em questão, a ratificação foi efectuada, não pelo próprio Comité Central, mas por outro órgão, embora por delegação daquele. Tal exercício de uma competência delegada (regularmente ou não – a resposta a este quesito suporia já apreciar o mérito da acção) não constitui obstáculo à intervenção, estatutariamente prevista, do Comité Central para anulação ou modificação de qualquer sanção disciplinar, nem a que os impugnantes suscitem junto desse órgão a correspondente reapreciação, esgotando os meios internos previstos nos estatutos para a apreciação da validade e regularidade da decisão (tal como não obsta à a essa reapreciação um inadequado paralelismo dogmático com o direito administrativo, quanto à concepção e à natureza jurídica da figura da delegação). Nestes termos, não constando dos autos que os requerentes impugnaram a sanção disciplinar perante o Comité Central, tem de concluir-se que não foram esgotados todos os meios internos previstos nos estatutos para apreciação da validade e regularidade da decisão punitiva, como exige o artigo 103º-C, n.º 3 (aplicável por força do artigo 103º-D, n.º 3 da Lei do Tribunal Constitucional), e, consequentemente, que não pode tomar-se conhecimento dos pedidos de impugnação. Atingido este resultado, logo se impõe a conclusão de que não pode também tomar-se conhecimento dos pedidos de suspensão de eficácia deduzidos, que são instrumentais daquelas acções de impugnação. Na verdade, ainda que se considerasse que, para pedir a suspensão de eficácia da decisão, nos termos do artigo 103º-E, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, não era indispensável esgotar previamente todos os meios internos previstos nos estatutos para apreciação dessa decisão – do que, em face da aludida ratio deste requisito, se pode, pelo menos, duvidar –, o certo é que os requerimentos de tais medidas cautelares foram reportados concretamente à 'deliberação do Secretariado do Comité Central', como 'preliminar da acção de impugnação e por apenso à mesma acção'. Não se verificando os pressupostos indispensáveis à apreciação dos pedidos deduzidos nestas acções principais simultaneamente interpostas, por não terem sido ainda esgotados os meios internos de apreciação das decisões em causa, não podem também apreciar-se os pedidos de suspensão de eficácia instrumentais daquelas acções. Aliás, tendo este Tribunal concluído que as decisões punitivas estão ainda sujeitas a uma possível reapreciação pelo Comité Central, sendo tal reapreciação requerida, e enquanto ela não vier a ocorrer, não serão ainda tais decisões, como é natural, susceptíveis de execução. Relativamente à suscitada nulidade da junção da contestação do pedido de suspensão de eficácia, diga-se que ela pressuporia que a citação tivesse sido efectuada com a cominação de que a contestação não seria recebida sem vir acompanhada do(s) documento(s) em causa – o que não ocorreu por se entender que não fora expressamente requerida a junção de todo o processo disciplinar. E, de todo o modo, cumpre anotar que tal junção é irrelevante, atenta a decisão de não conhecimento dos pedidos a que se chegou, pelo fundamentos expostos. III. Decisão Nestes termos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento dos pedidos de suspensão de eficácia e de impugnação das decisões punitivas em causa. Lisboa, 21 de Agosto de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma Luís Nunes de Almeida (vencido em parte, nos termos da declaração de voto junta)
Declaração de voto
Votei vencido quanto ao não conhecimento dos pedidos de impugnação formulados pelos requerentes A e B, por entender que já se encontravam esgotados todos os meios internos previstos nos estatutos do PCP para apreciação da validade e da regularidade da decisão impugnada.
Com efeito, desde logo, a 'possibilidade de reclamação ou recurso para os órgãos internos competentes', prevista no artigo 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 595/74, de 7 de Novembro, há-de ser entendida como não exigível naqueles casos em que existe já decisão tomada pelo órgão máximo do partido político (excluindo, naturalmente, o Congresso, como 'órgão não permanente'). É que, se assim não fosse, teria de se entender – o que se afigura absurdo, mas que não se encontra expressamente afastado no acórdão – que das decisões disciplinares emitidas pelo próprio Comité Central do PCP (ou pela Comissão Nacional de Jurisdição do Partido Socialista; ou pelo Conselho de Jurisdição Nacional do Partido Social Democrata; ou pelo Conselho Nacional de Jurisdição do Partido Popular) teria ainda de haver um recurso ou reclamação para esse mesmo
órgão decisor.
Por outro lado, a deliberação punitiva do Secretariado foi ratificada pela Comissão Central de Controlo no exercício de uma competência delegada pelo Comité Central. Quer isto dizer que esta deliberação da Comissão Central de Controlo deve ter um tratamento jurídico idêntico, para efeitos de recurso contencioso, ao de uma deliberação do próprio Comité Central. E, como entendo que, se a ratificação tivesse sido decidida pelo Comité Central se abria de imediato a possibilidade de impugnação contenciosa, entendo igualmente que essa possibilidade de impugnação contenciosa se abriu com a ratificação operada no exercício de poderes por ele delegados.
Luís Nunes de Almeida