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Processo n.º 216/00
2ª SecçãoRelator – Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório Em 13 de Março de 1995, A... intentou, no Tribunal do Trabalho de Setúbal, acção declarativa com processo ordinário contra P..., para obter desta a quantia de
9.825.478$00 referentes a salários, subsídios, férias e indemnizações, e ainda os juros de mora, à taxa legal, sobre cada uma das prestações em dívida até à data do efectivo pagamento. Tendo a demandada cessado a sua actividade por não se ter convertido em empresa de trabalho portuário, como exigido pelo Decreto-Lei n.º 280/93, de 13 de Agosto, veio o autor deduzir incidente de intervenção provocada contra o Ministério do Mar, o Instituto do Trabalho Portuário e a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra, que foi admitida em 2 de Julho de 1996. Por sentença de 21 de Setembro de 1998, foi a ré condenada a pagar ao demandante a quantia de 433.189$00 a título de férias e subsídios bem como os respectivos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até ao efectivo pagamento, e absolvida no mais, tendo sido igualmente absolvidos os restantes réus: o Estado Português, a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra e o Instituto do Trabalho Portuário. Inconformado, o autor interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora, que, por Acórdão de 22 de Junho de 1999, considerou a apelação improcedente e confirmou a decisão recorrida. Recorrendo de novo, desta feita para o Supremo Tribunal de Justiça, veio o demandante, nas suas alegações, e para o que ora importa, suscitar a inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º 280/93, de 13 de Agosto (por ter sido referendado, promulgado e publicado após ter cessado o prazo conferido pela lei de autorização), a sua ilegalidade material (face ao sentido da lei de autorização legislativa – Lei n.º 1/93, de 6 de Janeiro) e a sua inconstitucionalidade por omissão (face aos artigos 13º, 53º e 58º, n.º 1 e 2, al. b) da Constituição), tendo o acórdão de 23 de Fevereiro de 2000 daquele Supremo Tribunal desatendido todas estas invocações. Ainda insatisfeito trouxe o recorrente o presente recurso a este Tribunal, com os mesmos fundamentos, concluindo deste modo as suas alegações:
'A) O Supremo Tribunal de Justiça, reiterando o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça resolveu o caso sub iudice, recorrendo para tanto ao diploma 280/93 de
13 de Agosto, o qual veio redefinir o regime jurídico do trabalho nos portos. B) O D.L. 280/93 de 13 de Agosto enferma de inconstitucionalidade porquanto:
· O D.L. em questão foi aprovado e publicado em Conselho de Ministros no uso de uma autorização legislativa que estabelecia um prazo de caducidade de 180 dias;
· Autorização esta que caducou em momento posterior à data da promulgação do D.L. pelo Presidente da República, data em que se entende constituída a data final, decorrida a qual decai o poder do Governo em legislar sobre as matérias objecto de autorização legislativa. C) O D.L. 280/93 de 13 de Agosto está ferido de ilegalidade material face à lei de autorização legislativa 1/93:
· O sentido que a lei de autorização legislativa [dá] ao 'conceito de trabalhador' engloba todos os trabalhadores que prestam actividade no mesmo sector.
· Outra não poderia ser a interpretação, porquanto todas as reformas legislativas operadas no mesmo sector portuário se têm dirigido ao sector na sua totalidade.
· Do mesmo passo, a ausência de iniciativa por parte do legislador na criação de um complexo normativo que assegurasse os direitos legítimos dos trabalhadores portuários, não pode resultar na desprotecção jurídica, num vazio legislativo.' Contra-alegando, o Ministério Público concluiu:
'1 – Está excluído do âmbito de um recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 a apreciação de questões de ilegalidade resultante de alegada violação de lei com valor reforçado (enquadrável na alínea f) de tal preceito), bem como da pretendida inconstitucionalidade ‘por omissão’, imputada
à ‘ausência de iniciativa legislativa por parte de um complexo normativo que assegurasse os direitos legítimos dos trabalhadores portuários’.
2 – Tendo o Decreto-Lei n.º 280/93, de 13 de Agosto, sido aprovado em Conselho de Ministros dentro do prazo outorgado pela respectiva lei de autorização legislativa, não padece o mesmo da apontada inconstitucionalidade orgânica, decorrente de alegada caducidade da respectiva credencial parlamentar.
3 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.' Não houve outras contra-alegações. Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos Como resulta da Constituição e da lei, e notou o Exm.º Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal, o recurso de constitucionalidade, que tem por fundamento uma violação da Constituição, não pode ser considerado, simultaneamente, um recurso de legalidade como o previsto na alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento na violação de leis de valor reforçado. Ora, tendo sido interposto apenas um recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, a questão da desconformidade entre um decreto-lei e a respectiva lei de autorização legislativa não poderia ser apreciada e decidida por este Tribunal por violação de lei de valor reforçado, enquanto esta tem como resultado uma ilegalidade. Apenas se poderá apreciar a inconstitucionalidade resultante da invasão da área de competência reservada da Assembleia da República por um diploma (não autorizado) do Governo, por faltar credencial parlamentar para intervir numa esfera de competência reservada, ou, em alguns casos, resultante do desrespeito pela lei de autorização legislativa. Em relação à desconformidade entre o decreto-lei e a lei de autorização legislativa, o recorrente, no seu requerimento de interposição do recurso, invocou que a 'desconformidade entre o espírito e a letra da lei de autorização legislativa 1/93 de 6 de Janeiro e a interpretação que tem vindo a ser feita às normas constantes do D.L. 280/93, criado no âmbito da supra referida Lei de autorização legislativa' violaria 'o artigo 164º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa'; Por outro lado, não é possível conhecer, em sede de recurso de constitucionalidade, de uma (pretensa) inconstitucionalidade por omissão: para este vício está prevista, no artigo 67º da Lei do Tribunal Constitucional, a aplicação do regime de fiscalização abstracta sucessiva, sendo reservada a legitimidade activa para a suscitar às entidades referidas no artigo 283º da Constituição. Não sendo, porém, inteiramente claro que tenha sido dessa forma que o recorrente configurou a pretensão que endossou a este Tribunal, não se afastou preliminarmente tal questão do objecto do recurso de constitucionalidade interposto, porquanto, o recorrente invocou, desta feita nas alegações aqui produzidas, que não só haveria violação, pela 'interpretação restritiva efectuada pelo legislador no âmbito do D.L. 280/93 ao conceito de trabalhador portuário', como tal diploma violaria 'o artigo 58º n.º 1 e n.º 2 al. b) da C.R.P.' (antes, nas alegações do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, invocara que, além desta norma, também o artigo 53º e o artigo 13º da Constituição tinham sido violados pelo Decreto-Lei n.º 280/93). Assim, não podendo obviamente conhecer-se da questão de ilegalidade material – que só poderia ser tratada no quadro de um recurso interposto ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 70º da lei do Tribunal Constitucional –, nem da questão de inconstitucionalidade por omissão – para a qual existe um processo de fiscalização abstracta, e que nem poderia ser trazida pelo recorrente à apreciação deste Tribunal –, não deixarão de se ter em conta os seus argumentos no quadro do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na medida em que estejam preenchidos os respectivos requisitos de admissibilidade. Vejamos então. A única questão de inconstitucionalidade qua tale suscitada pelo ora recorrente durante o processo foi a da inconstitucionalidade orgânica do Decreto-Lei n.º
280/93, de 13 de Agosto, com fundamento na caducidade da autorização legislativa no momento da promulgação de tal diploma pelo Presidente da República (em 28 de Julho de 1993), e, consequentemente, também nos momentos da referenda pelo Primeiro-Ministro (em 30 de Julho de 1993), da publicação (13 de Agosto de 1993) e da sua entrada em vigor (1 de Novembro de 1993, nos termos do seu artigo 25º). Ora, desde, pelo menos, o Acórdão n.º 150/92 (publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Julho de 1992), que o Tribunal Constitucional firmou jurisprudência no sentido de que 'o momento a ter em consideração, para se aferir se a autorização legislativa foi usada em tempo, é o da aprovação em Conselho de Ministros' – Acórdão n.º 387/93, publicado no Diário da República, II Série, de 6 de Outubro de 1993 (cfr., também, a mais dos indicados no Acórdão recorrido, o Acórdão n.º 324/93, publicado no Diário da República, II Série, de
2 de Outubro de 1993). Tendo a autorização legislativa em causa sido conferida ao Governo, por 180 dias, pela Lei n.º 1/93, de 6 de Janeiro, e tendo a aprovação do Decreto-Lei n.º
280/93 ocorrido no Conselho de Ministros de 8 de Junho de 1993, dúvidas não restam de que a intervenção do Governo ocorreu dentro do prazo que lhe foi fixado, não interferindo no exercício da sua competência delegada o acto subsequente de promulgação, da responsabilidade de outro órgão de soberania. A Lei n.º 1/93, de 6 de Janeiro, concedeu autorização ao Governo para rever o regime jurídico do trabalho e das operações portuárias, sustentando o recorrente que o sentido desta lei de autorização legislativa não seria respeitado pelo Decreto-Lei n.º 280/93, de 13 de Agosto, devido à 'interpretação restritiva efectuada pelo legislador no âmbito do D.L. 280/93 ao conceito de trabalhador portuário'. Este diploma veio estabelecer o regime jurídico do trabalho portuário, considerando como tal, para esse efeito, 'o prestado nas diversas tarefas de movimentação de cargas nas áreas públicas ou privadas, dentro da zona portuária', e não se aplicando 'ao trabalho prestado por funcionários ou agentes da autoridade portuária nem aos trabalhadores que na zona portuária não se encontrem exclusiva ou predominantemente afectados à actividade de movimentação de cargas.' Na referida Lei n.º 1/93 não se encontra, porém, qualquer definição do alcance da noção de 'trabalho portuário', sendo certo que esse diploma abrangeu tanto o trabalho como as operações portuárias. Ora, sendo certo que, ao utilizar a autorização para legislar, o Governo não pode deixar de proceder também a uma actividade de interpretação das normas do diploma autorizante, não pode dizer-se que uma noção de trabalho portuário como a que foi adoptada pelo Decreto-Lei n.º 280/93 contrarie ou desvirtue o disposto no diploma de autorização, antes correspondendo a um sentido possível, e, talvez, mesmo ao sentido mais natural, da expressão 'trabalho portuário', considerando o que este pode ter de específico, resultante da sua afectação à actividade de movimentação de cargas. Não cumpre aqui discutir se outra interpretação da referida lei de autorização é possível. Basta verificar que a aprovação do Decreto-Lei n.º 280/93, com o
âmbito que lhe delimita o seu artigo 1º, se encontra ainda coberta pelo sentido da lei de autorização legislativa, tal como foi entendido pelo Governo, sem que se possa dizer que tal delimitação desvirtue o objecto, o sentido e a extensão do diploma de autorização (e isto, mesmo sem considerar em que medida seria possível ao Governo proceder a uma utilização apenas parcial dessa autorização sem lhe desvirtuar tal sentido). Não pode, pois, também por esta via, concluir-se pela existência de inconstitucionalidade orgânica. Em relação à eventual inconstitucionalidade material – não alegada perante este Tribunal, nem invocada durante o processo – das normas do Decreto-Lei n.º 280/93
(mais especificamente do conceito de 'trabalhador portuário' resultante do seu artigo 1º), que se referiu poder, eventualmente, resultar do requerimento de interposição de recurso – que invoca a desconformidade com 'o art.º 164º da Constituição' – tem de se sublinhar, em primeiro lugar, que o parâmetro constitucional invocado não existe (o artigo 164º da Constituição, quer na numeração anterior à revisão constitucional de 1997, quer na subsequente, não tem o n.º 2). Em segundo lugar, note-se que o sentido que poderia ser reputado inconstitucional não foi como tal apresentado ao tribunal recorrido, de modo a que o juízo de constitucionalidade que este tivesse formulado pudesse ser reapreciado, em recurso, por este Tribunal, como exigem a alínea b) do n.º 1 do artigo 70º e o artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional. Por outro lado, não se pode fazer equivaler aqui um tal desfasamento a uma falta de credencial parlamentar, para daí se pretender retirar uma outra (embora não invocada enquanto tal) inconstitucionalidade orgânica: é que existiu uma autorização parlamentar ao Governo para fixar o regime jurídico do trabalho portuário. Assim, uma intervenção legislativa governamental nessa matéria, mesmo que tida por restritiva, não configuraria nunca uma intervenção a descoberto – isto é, uma intervenção não autorizada – e portanto, o seu controlo esgotar-se-ia no plano da conformidade com a lei de autorização. Conclui-se, portanto, não existir qualquer inconstitucionalidade material, nem qualquer inconstitucionalidade orgânica, na norma do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 280/93 que tenha sido trazida a este Tribunal, em termos de este a poder apreciar no presente recurso.
9. Finalmente, em relação à suposta violação do 'artigo 58º n.º 1 e n.º 2 al. b) da C.R.P.', em que se volveu, nas alegações de recurso, a inconstitucionalidade por omissão invocada durante o processo, decorrente da 'interpretação restritiva efectuada pelo legislador no âmbito do Decreto-Lei n.º 280/93 ao conceito de trabalhador portuário', tem de se sublinhar, em primeiro lugar, que os parâmetros constitucionais invocados – traduzidos 'no direito de obter um emprego ou de exercer uma actividade profissional' (n.º 1 do artigo 58º) e na
'igualdade de oportunidade na escolha de profissão e a não discriminação
(sobretudo entre homens e mulheres) no acesso às profissões e cargos profissionais' (alínea b) do n.º 2 do artigo 58º da Constituição) enquanto incumbências do Estado (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Anotada, Coimbra, 1993, pp. 315 a 316, anotação II e III ao artigo 58º) não são postos em causa por um eventual estreitamento dos destinatários do regime jurídico do trabalho portuário, enquanto regime especial face às regras gerais do contrato de trabalho. Aliás, o artigo 1º do Decreto-Lei n.º 151/90 (cuja constitucionalidade foi apreciada no Acórdão n.º 119/95, publicado no Diário da República, II Série, de
7 de Abril de 1995, e revogado pelo Decreto-Lei n.º 280/93), já definia operações portuárias como '(...) todas as que requeiram as mercadorias desembarcadas ou para embarque directamente destinadas ou provenientes de transporte marítimo relativas à estiva, desestiva, conferência, carga, descarga, transbordo, movimentação e arrumação em cais, terraplanos ou armazéns, formação e decomposição de unidades de carga, recepção, armazenagem e entrega, bem como as operações complementares, designadamente as de superintendência de cargas, dentro da zona portuária.' O que tornava, pelo menos, duvidoso que o estreitamento criticado tenha efectivamente ocorrido, sendo certo que se trata de ponto que, em todo o caso, não cabe a este Tribunal apreciar. Importa, finalmente, referir que, embora o Tribunal Constitucional possa julgar inconstitucional uma norma por fundamentos diversos daqueles que são invocados pelo recorrente, essa tentativa de conversão de uma alegada inconstitucionalidade por omissão em inconstitucionalidade material por acção de uma determinada norma, tendo tido lugar só nas alegações de recurso, sempre se haveria de considerar extemporânea, em termos de este Tribunal não ficar obrigado a conhecer desta. III. Decisão Nos termos e pelos fundamentos expostos decide-se negar provimento ao recurso, condenando o recorrente em custas e fixando-se a taxa de justiça em 15 ( quinze
) unidades de conta.
Lisboa, 4 de Junho de
2002. Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa