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Proc. nº 559/02 Acórdão nº 359/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A, identificado nos autos, interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra da decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca da Guarda que decretou a sua prisão preventiva.
Nas alegações do recurso, em que pediu a revogação da decisão recorrida (fls. 10 a 14 destes autos), disse a certo passo o recorrente:
'[...] sendo a prisão preventiva uma privação da liberdade, é excepcional
(artigo 27º nº 2 e nº 3 al. a) da C.R.P.) e, por isso mesmo, carece de uma especial justificação: é este o sentido e a função do conceito de 'Fortes Indícios'.
[...] Por outro lado, o direito ao recurso postula, exactamente porque está em causa sindicar o juízo formulado pelo juiz ao decretar a prisão preventiva no que ao conceito de 'Fortes Indícios' diz respeito, uma fundamentação que contenha a indicação dos indícios e das razões de relevância e concludência que o levaram a reconhecer aos mesmos a eficácia probatória a que o conceito de 'Fortes Indícios' apela ou seja, de que existe um forte grau de probabilidade quanto à prática do facto pelo arguido, bem como relativamente à sua culpabilidde [...]. Só assim poderá o arguido exercer o seu direito de recurso, nomeadamente com fundamento em eventual erro na valoração da prova [...].
[...] Do despacho que aplicou a prisão preventiva ao A apenas consta que 'indiciam fortemente os Autos' que o mesmo praticou o crime de Associação Criminosa, envolvimento em pelo menos um crime tentado de homicídio, um crime de detenção de armas proibidas, um crime de falsificação de documentos. Por outro lado, a dado passo do despacho pode ler-se: «Estes os crimes fortemente indiciados qu[ere]ndo com isso significar que os elementos probatórios e vestígios existentes nos Autos são sólidos, robustos e consistentes. Na verdade, além destes crimes fortemente indiciados outros existem cujos indícios serão suficientes, o que se quis significar quando se disse que alguns dos arguidos praticaram ‘pelo menos’ os seguintes crimes». Começando pelo fim, não se faz a menor ideia se ao A são imputados alguns destes crimes que, pelos vistos, aparecem nos Autos como suficientemente indiciados, sendo certo que por crimes em relação aos quais apenas haja «indícios suficientes» não é permitida a aplicação da prisão preventiva (artigo 27º nº 3 al. a) da Constituição da República Portuguesa e artigo 202, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal), ao que acresce que não se indica, no despacho, de que crimes se trata. Para além de tudo isto, não se refere um único dado de facto relativamente a estes supostos crimes. Por outro lado, quanto aos crimes, estes imputados ao A, de associação criminosa, envolvimento em pelo menos um crime tentado de homicídio, um crime de detenção de armas proibidas, um crime de falsificação de documentos, não se refere um único facto, um único indício, pelo que falta de todo a indicação dos motivos de facto que levaram à aplicação da prisão preventiva, como nada se diz, obviamente, relativamente ao que levou o juiz a considerar tais factos, constantes dos Autos, como reveladores da alta probabilidade de o arguido os ter praticado, e de forma dolosa (artigo 194º, nº 3 do Código de Processo Penal). Como o despacho não contém a indicação dos motivos de facto, como determina o artigo 194º, nº 3 do Código de Processo Penal, estamos, no mínimo, perante uma irregularidade (artigo 113º, nº 1 e 2) com a consequente invalidade do mesmo
(artigo 123º do Código de Processo Penal), o que tem como consequência a invalidade do acto e aplicação da prisão preventiva, que do despacho depende
(artigo 122º, nº 1 e 194º, nº 1, ambos do Código de Processo Penal). No entanto, pensamos que estamos perante uma nulidade, uma vez que foi violado o artigo
194º, nº 4 do Código de Processo Penal, mas também o artigo 208º, nº 1, 18º, nº
2, e 27º, nº 1, todos da Constituição da República Portuguesa [...].
[...]'.
2. No parecer que emitiu a propósito do recurso interposto por A, o representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra pronunciou-se no sentido do não provimento do recurso, nos seguintes termos
(parecer de fls. 15 a 20 dos presentes autos):
'[...]
«A enunciação dos motivos de facto da decisão», referida no artigo 194º, nº 3, do CPP, não tem o sentido correspondente à da fundamentação de uma sentença. Pela própria natureza da situação, em que não é de prova de julgamento que se trata, mas de mera indiciação, ainda que com suficiente consistência, nos termos da lei. Para além de que haverá sempre que conjugá-la, segundo cremos, com o princípio do segredo de justiça, no sentido em que com este se pretende acautelar igualmente o interesse do normal desenvolvimento das investigações, conforme, nomeadamente, transparece do disposto no artigo 89º, nº 2, do CPP. Nem haverá lugar, por outro lado, a uma enunciação factual similar à de uma acusação, sendo certo que também, no despacho que determina a medida de coacção, o elemento subjectivo do delito se retirará, fundamentalmente, da materialidade indiciada. De forma que, aliás em concordância e na linha de fundamentação da resposta ao recurso apresentada na 1ª instância, afigura-se-nos que o despacho impugnado responde suficientemente às exigências legais. Vão no sentido desta perspectiva as menções e transcrições que naquela resposta se mencionam, sendo que as mesmas e os fortes e consistentes indícios da prática dos delitos que no despacho impugnado se afirmam estão em consonância com os elementos constantes dos autos, de que se destacam os conteúdos dos traslados de fls. 191 e seguintes, e, bem assim, os dos autos de busca e apreensão. Outrossim nos identificamos com a qualificação de mera irregularidade que na resposta se aponta para a, eventual, omissão ou insuficiência aludida no recurso, e extemporaneidade da sua arguição. Pelo que se nos afigura ser o recurso de improceder.
[...]'.
3. Notificado para se pronunciar sobre o parecer do Ministério Público, disse, para o que aqui releva, o arguido A (fls. 21 a 23):
'[...] o direito ao recurso, consagrado no artigo 219º do Código de Processo Penal, é uma expressão do direito de defesa do arguido que se encontra constitucionalmente consagrado no artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa [...]. Este seu estatuto de direito fundamental não permite que o seu núcleo essencial seja postergado em caso algum. Neste contexto, parece ser de entender que, para que o arguido possa exercer efectivamente o seu direito ao recurso, terá que saber quais as razões de facto que fundam a decisão que por recurso impugna, pois só desse modo pode sindicar e colocar em crise, caso para isso encontre fundamento, a decisão recorrida. Assim sendo, a falta de fundamentação de facto impede o exercício do direito ao recurso pelo arguido, de modo que a interpretação segundo a qual a locução de que os «indícios são sólidos, robustos e consistentes», sem menção de qualquer facto satisfaz as exigências do artigo 194º, nº 3 do Código de Processo Penal, redunda na negação do direito ao recurso do arguido, logo à negação absoluta do seu direito de defesa, pelo que tal interpretação padece de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa. Por outro lado, mas ainda na mesma linha de argumentação, nunca aquela interpretação seria de sustentar face à própria função dos recursos.
[...] à decisão que determina a prisão preventiva não se aplica a regra geral do artigo 97º, nº 4 do Código de Processo Penal, mas, precisamente, o artigo 194º, nº 3 do Código de Processo Penal ou seja, no inquérito (artigo 194º, nº 1 do CPP) o juiz pode determinar a prisão preventiva e o seu despacho tem, por determinação expressa da lei quanto a tal despacho, que «enunciar os motivos de facto da decisão»; ou seja, e dito de outro modo, quando o despacho seja determinativo da prisão preventiva, o juiz está vinculado a um certo conteúdo do seu despacho, conteúdo que resulta do artigo 194º, nº 3 do Código de Processo Penal e não do artigo 97º, nº 4 do Código de Processo Penal que, em sede geral, se contrapõe à regra geral do segredo de justiça (artigo 89º, nº 2 CPP). Ora, o entendimento de que não há que compatibilizar o dever de fundamentação do artigo 194º, nº 3 do Código de Processo Penal com o segredo de justiça (artigo
89º, nº 2 do Código de Processo Penal) parece ser o único defensável, pois que a necessidade de compatibilização já resultaria do dever geral de fundamentação
(artigo 97º, nº 4 do Código de Processo Penal) e tornaria o artigo 194º, nº 3 Código de Processo Penal perfeitamente inútil, pois nada acrescentaria ao artigo
97º, nº 4 do Código de Processo Penal.
[...]
[...] a falta de fundamentação, porque viola um direito fundamental do arguido, viola a norma constitucional que o consagra, ou seja, o artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, sendo irrelevante que o artigo 194º, nº 3 do Código de Processo Penal não comine a nulidade para a sua violação, pois as normas que consagram Direitos, Liberdades e Garantias são de aplicação directa
(artigo 18º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa), não se devendo aceitar que, só porque o artigo 194º, nº 3 do Código de Processo Penal não comina nulidade aquele direito fundamental sofre redução na sua tutela [...]. Por outro lado, a falta de fundamentação também não poderá ser mera irregularidade, pois que viola o artigo 27º, nº 4, e 28º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, pois que tais normas exigem as razões da prisão ou detenção (artigo 27º, nº 4 da CRP) e as causas da detenção (artigo 28º, nº 1 da CRP) sejam dadas a conhecer ao arguido, no sentido de ao mesmo tempo serem dados a conhecer os factos materiais, reais, da vida, que lhe são imputados, não se compreende como pode a fundamentação da decisão que aplica a prisão preventiva pode deixar de conter a enunciação de tais factos. Do que fica exposto, e do que consta das alegações de recurso, parece ter que concluir-se que a violação dos artigos, 200º, nº 1, 18º, nº 2, 27º, nº 1 e 4, e 28º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, não devendo tal violação ser degradada a mera irregularidade, antes devendo ser considerada uma nulidade, com as respectivas consequências: invalidade do despacho que determinou a prisão preventiva (artigo
123º do Código de Processo Penal) e da prisão preventiva que aplicou (artigo
122º, nº 1 e 194º, nº 1 do Código de Processo Penal).
[...]'.
4. Por acórdão de 15 de Maio de 2002 (fls. 24 a 30 destes autos de reclamação), o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu negar provimento ao recurso, mantendo, nos seus precisos termos, a decisão recorrida, com os seguintes fundamentos:
'[...] Não põem [...] em causa a validade formal do despacho, que, diga-se, obedece aos requisitos impostos pelos arts. 97º/4 – o despacho está fundamentado de facto e de direito; 191º – a medida é legal está prevista; 192º/1 – foram os destinatários constituídos arguidos; 194º/1/2/3 – foi aplicada por juiz, com enunciação dos motivos de facto da decisão (artigos todos do Código de Processo Penal). E também verifica-se estarem cumpridos os requisitos de carácter essencial, impostas por lei. Com efeito, no despacho recorrido fundamenta-se:
– a adequação e proporcionalidade da medida em concreto – a eventualidade de fuga, a possibilidade de o arguido prejudicar a prova e a sua aquisição, por se indiciar pertencer a um grupo que se dedica a actividades criminosas, o alarme público que a sua libertação pode causar na comunidade pela publicitação nos media, pela frequência com que aí se vêm cometendo os crimes por que o arguido está acusado, tudo conforme aos arts. 193º, 202º e 204º do Código de Processo Penal;
– a insuficiência das outras medidas – (art. 202º do Código de Processo Penal) – a acusação que sobre o arguido recai, por si só, indica a existência de fortes indícios da prática dos crimes aí tipificados, a impossibilidade de garantir a presença do arguido em actos de instrução e investigação e de inquérito, por poder este contactar elementos, eventualmente não identificados ainda da presumida associação criminosa, a incompleta descrição dos actos e comportamentos, já que o arguido não consegue explicar com o mínimo de credibilidade a sua presença e actuação com os outros co-arguidos.
– a permanência das circunstâncias determinativas da aplicação da medida – já que as agora enunciadas são as mesmas que se verificaram quando foi determinada a detenção – art. 212º/1/a) do Código de Processo Penal. Assim sendo, não se verifica a violação de qualquer norma. Não tem pois fundamento de facto e de direito o recurso.
[...]'.
5. A interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, através de requerimento assim redigido (fls. 31):
'[...] tendo sido notificado do douto acórdão desse Alto Tribunal, vem do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional, com fundamento na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15.11. As normas constitucionais violadas pela interpretação dada ao artº 194º nº 3 do Código de Processo Penal são os artigos 18º nº 2, 27º, nº 1 e 2 e 208º da C.R.P., tendo tal inconstitucionalidade sido invocada nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra. Por outro lado, aquela interpretação viola também os artigos 27º nº 4, 28º nº 1, 32°, nº 1 e 200º nº 1 e 18º nº 2 da C.R.P., tendo tal inconstitucionalidade sido invocada na resposta ao parecer do Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Coimbra.
[...].'
6. O Relator, no Tribunal da Relação de Coimbra, por despacho de fls.
32, decidiu não admitir o recurso, pelas razões a seguir indicadas:
'A. veio [...] recorrer para o Tribunal Constitucional, do acórdão deste Tribunal, isto com fundamento, como indica, no art. 70º/1/b) da Lei nº 28/82, de
15.11. Declara terem sido violadas as normas contidas nos arts. 194º/3 do Código de Processo Penal, por força dos arts. 18º/2, 27º/1/2/4, 28º/1, 32º/1, 200º/1 e
208º da Constituição da República Portuguesa. Declara que a inconstitucionalidade vem invocada na resposta ao parecer do Ministério Público . O art. 70º/1/b) citado no requerimento de recurso, admite recurso para o Tribunal Constitucional, das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Como admite o próprio recorrente, não se suscita durante o processo a questão de qualquer inconstitucionalidade de norma, vindo, na dita resposta, alegada a nulidade da decisão por violação das normas do Código de Processo Penal e, só por consequência destas, da Constituição da República Portuguesa. Não estão assim reunidos os pressupostos do recurso ora interposto, pelo que não o admito'.
7. A. reclamou do despacho que não admitiu o recurso (requerimento de fls. 2 a 4), ao abrigo ao disposto no artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, tendo assim concluído:
'[...] A) O reclamante arguiu a nulidade do despacho que determinou a prisão preventiva por entender que o mesmo violava o artigo 194/3 do Código de Processo Penal, na interpretação que lhe é imposta pelos artigos 18º, nº 2; 27, nº 1-2-4; 28º, nº
1; 32º, nº 1; 200º; nº 1 e 208º da Constituição da República Portuguesa; B) Ao arguir a nulidade do aludido despacho, com o fundamento referido na conclusão anterior, colocou em crise a interpretação que ao artigo 194/3 do Código de Processo Penal estava a ser dada pelo Tribunal Judicial da Guarda e pelo parecer do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra, precisamente por violação daquelas normas da Constituição da República Portuguesa; C) A aludida inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 194/3 do Código de Processo Penal foi suscitada nas alegações de recurso e na resposta ao parecer do Ministério Público, ou seja, num momento processual em que o poder jurisdicional do Tribunal da Relação de Coimbra ainda não se tinha esgotado, de modo que a inconstitucionalidade foi suscitada durante o processo; D) O aqui reclamante identificou a interpretação do artigo 194/3 do Código de Processo Penal que, no seu entender, padecia de inconstitucionalidade ou seja, que o despacho que determina a prisão preventiva não viola as aludidas normas constitucionais quando não contenha a indicação dos factos, dos indícios; E) O artigo 194/3 do Código de Processo Penal foi o fundamento normativo da decisão recorrida, até porque era o respeito do mesmo, que face à interpretação que o recorrente entendia ser conforme à Constituição da República Portuguesa, que constituía o objecto do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.
[...].'
8. No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido de que, 'mesmo que se admita, de forma benevolente, que a argumentação expendida pelo reclamante na resposta ao parecer exarado nos autos pelo Mº Pº traduz suscitação adequada de uma questão de inconstitucionalidade normativa', 'a presente reclamação se configura como improcedente' (fls. 34 v.º a 35 v.º).
II
9. O Tribunal da Relação de Coimbra não admitiu o recurso interposto pelo ora reclamante, por entender, em síntese, que não tinha sido suscitada
'durante o processo' uma questão de inconstitucionalidade normativa.
O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a disposição invocada no requerimento de interposição do recurso – é o recurso que cabe das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso fundado nessa disposição, exige-se que os recorrentes suscitem, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma (ou de uma determinada interpretação da norma) que pretendem submeter ao julgamento deste Tribunal e que tal norma
(ou essa interpretação da norma) seja aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, não obstante a acusação de inconstitucionalidade.
Nos termos do artigo 72º, nº 2, da mesma Lei, o recurso previsto na mencionada alínea b) só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
O sentido funcional que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem atribuído à exigência constitucional e legal de que a inconstitucionalidade seja invocada durante o processo tem em vista dar ao tribunal recorrido a oportunidade de se pronunciar sobre tal questão, de modo que o Tribunal Constitucional venha a decidir em recurso. Deve portanto em princípio a questão de inconstitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
Ora, no caso dos autos, não podem ter-se por verificados os pressupostos de admissibilidade do recurso interposto.
10. Assim, e em primeiro lugar, o ora reclamante não suscitou, de modo procedimentalmente adequado, uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa a propósito da norma que agora pretende submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional – o artigo 194º, nº 3, do Código de Processo Penal.
Com efeito, nas alegações apresentadas perante o Tribunal da Relação de Coimbra, o ora reclamante veio expressamente arguir a nulidade do despacho que determinou a sua prisão preventiva, por alegadamente ter sido proferido com base num sentido das normas do Código de Processo Penal diferente daquele que parece ser o único defensável, isto é, diferente daquele que o ora reclamante considera o sentido adequado a atribuir a tais normas.
Como se afirma no despacho do Tribunal da Relação de Coimbra que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, o então recorrente alegou a irregularidade (invalidade, nulidade) da decisão impugnada por violação de normas do Código de Processo Penal e, ao mesmo tempo, pretende que a essa alegação seja atribuído o significado de invocação da desconformidade constitucional de tais normas do Código de Processo Penal.
É certo que na resposta ao parecer emitido pelo representante do Ministério Público junto daquele Tribunal da Relação – momento ainda adequado para suscitar uma questão de inconstitucionalidade – o ora reclamante invocou a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 194º, nº 3, do Código de Processo Penal. Todavia, como bem sublinha o Senhor Procurador-Geral Adjunto, não chegou a ser enunciada com clareza, nessa peça processual, qual a interpretação, atribuída pela decisão então impugnada, ao artigo 194º, nº 3, do Código de Processo Penal, que é considerada desconforme com a Constituição – sendo certo que, como reconhece o próprio reclamante, não está em causa o sentido literal de tal preceito, cuja conformidade constitucional nunca foi posta em causa.
Essa enunciação seria indispensável para que pudesse considerar-se preenchido o pressuposto processual do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – já que, como determina o artigo
72º, nº 2, da mesma Lei, a questão de inconstitucionalidade tem de ser suscitada
'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer'.
Só no requerimento em que deduziu a reclamação do despacho que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional – que, de todo o modo, não constitui já momento adequado para considerar suscitada 'durante o processo' a questão de inconstitucionalidade – o ora reclamante enunciou com clareza uma dimensão interpretativa da norma do artigo 194º, nº 3, do Código de Processo Penal que pretende ver apreciada: a interpretação segundo a qual 'o despacho que determina a prisão preventiva [não] viola as aludidas normas constitucionais [os artigos 18º, nº 2; 27, nº 1-2-4; 28º, nº 1; 32º, nº 1; 200º; nº 1 e 208º] quando não contenha a indicação dos factos, dos indícios' (supra, 7., conclusão D)).
11. Em segundo lugar, e decisivamente, admitindo como possível vislumbrar na argumentação expendida pelo ora reclamante durante o processo a invocação da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 194º, nº 3, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual 'o despacho que determina a prisão preventiva [não] viola as aludidas normas constitucionais [os artigos
18º, nº 2; 27, nº 1-2-4; 28º, nº 1; 32º, nº 1; 200º; nº 1 e 208º] quando não contenha a indicação dos factos, dos indícios' (tal como veio a ser identificada no requerimento em que deduziu a reclamação do despacho de não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional), então há-de concluir-se que essa dimensão normativa não foi acolhida no acórdão recorrido.
Com efeito, tendo em conta o carácter normativo do objecto dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade admitidos na nossa ordem jurídica, o controlo exercido pelo Tribunal Constitucional no âmbito de tais recursos apenas pode ser um controlo normativo. Daqui resulta que, no caso em apreciação nos autos, a fiscalização deste Tribunal só pode incidir sobre o critério normativo acolhido pelo Tribunal da Relação de Coimbra no acórdão recorrido quanto à natureza da fundamentação em que assentou tal despacho.
Ora, o critério normativo efectivamente acolhido pelo Tribunal da Relação de Coimbra na decisão recorrida não coincide com aquele que é enunciado pelo ora reclamante e que é por ele reputado de inconstitucional. Na verdade, o Tribunal da Relação verificou que a medida de coacção aplicada – a prisão preventiva – foi decidida com base na 'enunciação dos motivos de facto da decisão' e teve em conta: 'a adequação e proporcionalidade da medida em concreto'; 'a insuficiência das outras medidas'; 'a permanência das circunstâncias determinativas da aplicação da medida' (cfr. supra, 4.).
Ao exigir para a fundamentação do despacho que determina a prisão preventiva que os elementos probatórios e vestígios existentes nos autos sejam
'sólidos, robustos e consistentes', o Tribunal da Relação de Coimbra expressamente afasta a interpretação – identificada pelo ora reclamante – que prescinde de qualquer 'indicação dos factos, dos indícios'.
Em conclusão, pois, a norma impugnada pelo ora reclamante não foi aplicada na decisão recorrida com o sentido por ele identificado e considerado incompatível com a Constituição.
12. Não se encontrando verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, não poderia este Tribunal tomar conhecimento do recurso que o ora reclamante pretendia interpor.
III
13. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 9 de Agosto de 2002 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida