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Procº nº 305/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 15 de Maio de 2002 lavrou o relator a seguinte decisão sumária:-
'1. Tendo a Licª A ... requerido ao Tribunal Central Administrativo a suspensão de eficácia do despacho, proferido em 15 de Novembro de 2001 pelo Secretário de Estado da Justiça, por intermédio do qual foi indeferido o recurso hierárquico necessário interposto do despacho do Director Geral dos Registos e Notariado que lhe impôs a pena de suspensão por noventa dias, veio aquele Tribunal, por acórdão de 17 de Janeiro de 2002, decretar a requerida suspensão.
Não se conformando com o assim decidido, recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo a entidade requerida.
Na alegação que então produziu, o Secretário de Estado da Justiça, a dada altura, referiu:-
‘............................................................................................................................................................................................................................................
20º
No tocante ao requisito da alínea b) do citado nº 1 do comando supra citado [o artº 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos] entendemos também que tal requisito não se verifica e que, ao contrário do decidido, existe grave lesão do interesse público.
21º
No incidente de suspensão de eficácia presume-se a veracidade dos factos que constituem pressupostos do acto administrativo recorrido, como o tem vindo a afirmar a jurisprudência dos nossos tribunais.
22º
Os comportamentos atribuídos à requerente e que motivaram a instauração de procedimento disciplinar e a consequente aplicação da pena disciplinar de suspensão por 90 dias revelam uma deficiente e pouco tranquila compreensão dos deveres funcionais.
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24º
Entender em sentido diverso - dando designadamente o benefício da dúvida ao funcionário - é coarctar à Administração e à colectividade por si representada as melhores possibilidades de se organizar no sentido de melhor servir.
25º
Torna-se, pois, necessário ‘salvaguardar o prestígio e dignidade dos serviços não só perante o público, mas também perante os outros funcionários’, o que,
26º
Só será possível com plena execução do despacho de 15/11/01 que indeferiu o recurso hierárquico interposto pela rogante.
27º
É que, no caso sub judice, assistimos à violação do dever especial enunciado nos nºs 1 e 2 do artº 5º do Código do Notariado (aplicável por força do estatuído no artº 143º do Dec-Regulamentar nº 55/80, de 8 de Outubro), encontrando-se a requerente então obrigada a declarar o seu impedimento.
28º
Do mesmo modo, e também com repercussões no interesse público, foram desrespeitados os deveres gerais de zelo, isenção e imparcialidade previstos nas alíneas a) e b) do nº 4 do artº 3º do Estatuto Disciplinar aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro.
29º
Com o seu comportamento, i.é., com a inobservância destes deveres, a requerente obstaculizou, de forma inelutável, que se criasse no público a necessária (e desejada) confiança na acção da Administração Pública.
Pelo que se conclui:
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2. Por outro lado é patente a grave lesão do interesse público a que se refere a alínea b) do mesmo nº 1 do artº 76º da L.P.T.A..
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Na alegação que, por seu turno, efectuou, a requerente nunca equacionou qualquer questão de desconformidade com a Lei Fundamental reportadamente a normas constantes do ordenamento jurídico infra-constitucional, tendo dito, no respectivo «teor» e tocantemente à grave lesão do interesse público invocada pela entidade então recorrente, e nas «conclusões»:-
‘........................................................................................................................................................................................................................................................................................
21 Só a vontade incontrol[á]vel de ver de imediato a execução do acto ora em questão pode levar a dizer que há Grave lesão do interesse p[ú]blico.
22 Já que a sua suspensão é que não determina qualquer lesão do interesse p[ú]blico, é Notária/Conservadora há cerca de 18 anos e sempre com a classificação de ‘Bom’, querida e respeitada por todos, nas localidades onde tem trabalhado, só agora o SENHOR PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE FREIXO DE ESPADA
[À] CINTA VIU TÃO GRAVES ACUSAÇÕES.
23 Pois tecnicamente o acto ora em questão e que determinou o presente processo, o conselho Técnico emitiu opinião de que o acto não era censurável.
24 Não há qualquer ilegalidade na interposição do presente recurso, e muito menos na decisão ora posta em crise, tanto mais que o conselho superior técnico como já se referiu, emitiu parecer no sentido de que o acto foi efectuado dentro de parâmetros legais. Só tendo sido alterada esta opinião no final do processo disciplinar.
25 Porque assim é, a execução da pena aplicada tr[az] graves prejuízos patrimoniais, pondo mesmo em risco a sobrevivência, do seu agregado familiar, quer quanto à alimentação e necessidades básicas, quer quanto à manutenção da sua residência, filhos e restante agregado familiar.
26 Com traz ainda graves preju[í]zos de ordem moral, já que estamos numa localidade pequena, onde toda a gente se conhece e terá conhecimento dos factos quer a nível económico quer a nível psicológico.
27 Por outro lado, o cumprir da pena que lhe foi aplicada neste momento, ou no caso de improcedência do recurso, daqui a algum tempo, em nada pode ficar lesado o interesse p[ú]blico.
28 Já que a ora recorrida voltará sempre ao serviço, e a sua permanência no serviço não perturba de modo algum a organização e regular funcionamento do serviço, nem está posta em causa a dignidade e prest[í]gio da instituição Conclusões:
1 - Sempre será de manter a suspensão do acto dad[o] que a sua execução neste momento em que o marido da arguida está desempregado tr[az] efectivamente um grave prejuízo a todo o agregado familiar, deixando-o mesmo sem poder fazer face
[à]s despesas básicas como alimentação e vestuário e prestação da casa. Pelo que nos parecem estar preenchidos os requisitos da alínea a) do artigo 76º da L.P.T.A..
2 - Por outro lado não há qualquer lesão para o interesse p[ú]blico, já que a ora arguida [é] Conservadora/notária há 18 anos com a classificação de ‘BOM’ nunca teve até então nem posteriormente qua[is]quer outros processos disciplinares a não ser as participações deste SENHOR PRESIDENTE DA CÂMARA MUNICIPAL DE FREIXO DE ESPADA [À] CINTA.
3 - Porque assim é mantendo-se a suspensão do acto e consequentemente a decisão recorrida se fará JUSTIÇA’.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 14 de Março de
2002, concedeu provimento ao recurso, assim indeferindo o pedido de suspensão de eficácia.
Pode ler-se, em dados passos, nesse aresto:-
‘............................................................................................................................................................................................................................................ Os contornos do caso presente e a sensibilidade do Tribunal levam a apreciar em primeiro lugar o requisito negativo da al. b) - inexistência de grave lesão para o interesse público. O ponto II do sumário do Ac. do S.T.A. de 10.7.97, proc.º nº 42.484, que a seguir se transcreve é bem elucidativo acerca da maneira como o Tribunal vem abordando a verificação deste requisito a propósito da suspensão da eficácia dos actos administrativos que apliquem sanções disciplinares:
‘Para a apreciação da ocorrência do requisito da alínea b) do mesmo preceito, relativamente a pedidos de suspensão da eficácia de sanções disciplinares, não há que atender decisivamente ao tipo de pena aplicada, mas antes que proceder, caso a caso, a uma apreciação dos factos concretos que fundamentaram a punição e
à prognose das repercussões que, sobre o regular funcionamento dos serviços e imagem da instituição pública, terá a manutenção do funcionário ao serviço até ser proferida decisão, com trânsito em julgado, no recurso contencioso, entre os factores a considerar neste juízo, avultam os reflexos que a suspensão pode ter nos efeitos de prevenção geral, intimamente conexionados com o círculo onde a infracção foi cometida ou se tornou conhecida, o tipo de serviço administrativo onde ocorreu a infracção e a natureza das funções aí desempenhadas pelo agente’. Vejamos então se, no respeito por estes critérios, se pode considerar preenchido aquele requisito. Constitui Jurisprudência pacífica que, na suspensão da eficácia, tem de partir-se do princípio de que são verdadeiros e exactos os factos e pressupostos em que o acto se fundamentou. A discussão em torno dessa matéria não pode fazer-se neste incidente, mas unicamente no recurso contencioso que tem por objecto esse acto.
.............................................................................................................................................................................................................................................. Segundo os fundamentos do acto, que nesta sede se têm de aceitar como bons, haverá infracção grave dos deveres de isenção e imparcialidade, com abuso da função.
.............................................................................................................................................................................................................................................. Razão assiste, portanto, ao recorrente em defender que a suspensão da punição disciplinar da recorrida traria grave lesão do interesse público......................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................................... Existe, assim, lesão do interesse público, com contornos de gravidade. E por isso não pode dar-se por verificado o requisito negativo da al. b) do art. 76º/1 da LPTA, o que inviabiliza por si só o decretamento da providência requerida, com prejuízo, portanto, do conhecimento do requisito da al. a) do mesmo artigo.
............................................................................................................................................................................................................................................’
É do acórdão de que parte se encontra transcrita que, pela Licª A ... vem, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interposto recurso para o Tribunal Constitucional, com vista à apreciação da (in)constitucionalidade da alínea b) do nº 1 do artº 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos aprovada pelo Decreto-Lei nº 267/85, de
16 de Julho, ‘na interpretação que del[a] é feita pelo acórdão recorrido’.
Segundo a impugnante, ‘as questões que constituem fundamento do presente recurso jurisdicional apenas se suscitaram com o entendimento perfilhado ex novo pelo acórdão recorrido, quanto à interpretação que é dada à alínea b) do nº 1 do citado artigo 76º da LPTA’, ‘razão pela qual a questão de inconstitucionalidade não foi suscitada até este momento’.
Por despacho proferido em 4 de Abril de 2002 pelo Conselheiro Relator do Supremo Tribunal Administrativo, embora com dúvidas, foi admitido o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este Tribunal (cfr. nº 3 do artº 76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, a presente decisão sumária, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto da vertente impugnação.
Viu-se já que a recorrente sustenta que a questão da interpretação, ora questionada, da alínea b) do nº 1 do artº 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos - interpretação essa que, presume-se (já que nenhuma indicação é dada neste particular no requerimento de interposição do recurso), será no sentido na apreciação do requisito negativo ínsito nesse preceito, estando em causa um acto administrativo consubstanciador da aplicação de uma pena disciplinar, se ter de partir do princípio de que são verdadeiros e exactos os factos em que se fundamentou tal acto) - só com o acórdão intentado impugnar se teria colocado, motivo pelo qual lhe não seria exigível a suscitação da inconstitucionalidade de uma tal dimensão interpretativa.
Todavia, não lhe assiste, neste ponto, qualquer razão.
Na verdade, como deflui do relato supra efectuado, aquando do recurso interposto pelo Secretário de Estado da Justiça do acórdão lavrado pelo Tribunal Central Administrativo, aquela entidade sustentou, justamente, a interpretação que veio a ser perfilhada pelo aresto ora impugnado (cfr. items 21, 24 e 25 e
«conclusão» 2 acima transcritas).
Neste contexto, tendo em conta aquilo que, neste particular, era defendido pela entidade que então recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo, incumbia à Licª A ..., se entendesse que a interpretação que era sustentada pelo Secretário de Estado da Justiça padecia de desconformidade com a Constituição, suscitar a questão de inconstitucionalidade da dimensão interpretativa com a qual aquele brandia, pois que, como é evidente, era perfeitamente previsível que aquele Alto Tribunal, em face do recurso que lhe era apresentado (e até, note-se, em face da sua anterior jurisprudência, exemplificada no aresto citado no acórdão ora impugnado), tivesse de enfrentar o problema advindo da interpretação que era defendida pelo então recorrente. E, haveria então, igualmente, de se debruçar sobre uma eventual enfermidade constitucional decorrente da interpretação que constituía um dos esteios da argumentação utilizada pelo aludido Secretário de Estado, caso a questão dessa eventual enfermidade lhe fosse apresentada, como o deveria ter sido, pela então recorrida.
Vale isto por dizer que a impugnante teve plena oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade da interpretação conferida à norma constante da alínea b) do nº 1 do artº 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, pelo que, contrariamente ao que agora vem dizer, não se pode falar em que tão somente com o acórdão pretendido recorrer se viu confrontada com aquela interpretação que, para si, tem como desconforme com o Diploma Básico.
Como o vertente recurso é o fundado na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, falece aqui um dos seus requisito, precisamente aquele que consiste na suscitação, antes de proferida a decisão desejada impugnar perante o Tribunal Constitucional, podendo tê-lo sido, da questão de inconstitucionalidade normativa.
Em face do exposto, não se toma conhecimento do objecto do recurso, condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em cinco unidades de conta'.
É da transcrita decisão que, pela Licª A ..., vem, nos termos do nº
3 do artº 778º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, deduzida a vertente reclamação.
Em síntese, brandiu com a seguinte corte de razões:-
- a postura do Secretário de Estado da Justiça, quer no recurso para o Tribunal Central Administrativo, quer para o Supremo Tribunal Administrativo, não se esteou em qualquer questão de (in)constitucionalidade;
- ao alegar no recurso para este último Alto Tribunal, a reclamante
'não enveredou ... por qualquer linha argumentativa alcandorada em juízos de inconstitucionalidade da norma' constante da alínea b) do nº 1 do artº 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos;
- por isso, somente com a prolação do acórdão tirado no Supremo Tribunal Administrativo veio a assumir 'relevância a questão de
(in)constitucionalidade cuja análise se solicita' ao Tribunal Constitucional;
- não se pode, em consequência, sustentar que a reclamante teve oportunidade processual para suscitar a questão de inconstitucionalidade normativa em causa, já que 'as partes num determinado processo não são obrigadas a contra-alegar com base em argumentos de constitucionalidade, maxime, quando a parte recorrente ou activa não utilizou argumentação dessa ordem' e, designadamente, quando a «contra-parte» recorrida obteve ganho de causa na decisão que foi impugnada.
Ouvido o Secretário de Estado da Justiça, não houve, da parte desta entidade, qualquer pronúncia.
Cumpre decidir.
2. As razões que levaram ao proferimento da decisão sub specie não são minimamente abaladas pela reclamação de que ora se cura.
Na verdade, não releva saber se pela entidade então peticionante do recurso jurisdicional foi ou não invocada qualquer questão de
(in)constitucionalidade normativa.
O que interessa, isso sim, foi que a mesma entidade, no recurso para o Supremo Tribunal Administrativo, sustentou uma determinada interpretação da norma vertida na alínea b) do nº 1 do artº 76º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, propugnando pela aplicação dessa interpretação ao caso então sub iudicio.
Neste contexto, era, pelo menos, plausível que, na decisão a tomar por aquele Supremo, uma tal interpretação também aí viesse a ser sufragada.
Perante esta plausibilidade, se a então recorrida e ora reclamante entendesse que o sentido normativo em que se ancorava a então entidade recorrente padecia de ofensa a normas ou princípios constitucionais, sobre si impendia o ónus de suscitar uma tal questão, com vista a que o Supremo Tribunal Administrativo equacionasse esse problema e sobre o mesmo efectuasse pronúncia.
O que não fez.
Não se pode, por isso, esgrimir com o facto de a ora reclamante não ter tido oportunidade processual para suscitar a questão de
(in)constitucionalidade e que foi «surpreendida» com a interpretação normativa que foi seguida pelo acórdão de que intentou recorrer para este Tribunal. Essa interpretação, repete-se, tinha sido aduzida pela entidade recorrente e, sendo assim, a então recorrida, ao «contra-alegar», se entendesse que uma tal interpretação era desarmónica com o Diploma Básico, deveria ter pugnado com uma tal questão.
Termos em que se indefere a presente reclamação, condenando-se a recorrente nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa,3 de Julho de 2002- Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa