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Procº nº 417/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 17 de Junho de 2002, o relator proferiu a seguinte decisão:-
'1. Contra A e pelo 4º Juízo Cível do Porto intentou B, acção, seguindo a forma de processo sumário, solicitando a condenação da primeira a pagar à segunda a quantia de Esc. 868.700$00, acrescida de juros vencidos, no montante de Esc. 47.754$00, e juros vincendos até integral pagamento, quantia essa devida pela ré em virtude de um contrato de financiamento celebrado entre aquela ré e a autora para a aquisição de uma viatura automóvel.
Tendo a ré sido citada por carta simples com prova de entrega, nos termos dos números 5 a 7 do artº 236º-A do Código de Processo Civil, e não tendo a mesma contestado, por sentença proferida em 12 de Junho de 2001 pelo Juiz do indicado Juízo foi a acção julgada procedente e, em consequência, condenada aquela ré no pedido.
Dessa sentença apelou a ré para o Tribunal da Relação do Porto, tendo, na alegação que produziu, concluído, inter alia:-
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3. Conforme resulta dos autos, a R. foi citada por via postal simples, contudo este meio de citação não dá qualquer garantia ao citando, de este ter efectivo conhecimento da pendência contra si de qualquer acção judicial, nem assegura posição idêntica à da contraparte no processo, uma vez que, enquanto o A. pode escolher e bem o momento da propositura da acção em tribunal, já o citando não poderá nunca ausentar-se da sua residência, sem correr o sério risco de se ter por citado e condenado em acção judicial contra si intentada, e sem que alguma vez tenha tido conhecimento atempado da pendência dos autos, como aconteceu no presente caso, sendo-lhe assim coar[c]tado o direito a uma defesa efectiva.
4. Daí que, a R. no caso vertente não tenha sido constitucionalmente nem regularmente citada, e por essa via, estive[sse] impedida de deduzir a respectiva contestação.
5. Assim, a interpretação dada pelo Meritíssimo juiz ‘a quo’ aos artigos 484º nº
1 e 784º do C.P. Civil, é inconstitucional e ilegal por violação dos artigos 20 da C.R.P. e 6 nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Foram violados: O artigo 20º, da Constituição da República Portuguesa. O artigo 6 nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem'.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 4 de Abril de 2002, negou provimento ao recurso.
Pode ler-se nesse aresto, para o que ora releva:-
‘............................................................................................................................................................................................................................................
Porém, nas suas alegações, a recorrente vem invocar que o conhecimento da instauração contra si da presente acção, apenas teve lugar aquando da notificação da sentença impugnada, o que indicia, portanto, a sua falta de citação para os termos da presente lide.
Na verdade, se, simplesmente, a recorrente, embora tendo recebido a carta de citação, estivesse convicta da inconstitucionalidade que agora suscita perante esta instância de recurso, no que respeita à forma de citação empregue,
óbvia e necessariamente que teria de proceder à sua invocação no respectivo articulado de defesa, sob pena de preclusão de tal meio de defesa - art. 489º do CPC.
Por outro lado, se o seu alegado desconhecimento da presente lide tivesse resultado apenas do facto da mesma, sem qualquer motivo justificativo, não ter procedido à recolha diária da correspondência colocada no receptáculo postal do seu domicílio, actividade essa que faz parte do quotidiano comum de qualquer cidadão, igualmente lhe seria imputável a responsabilidade por aquele não atempado conhecimento da acção proposta.
Assim, e perante a falta de indicação concreta do motivo determinante do referido desconhecimento, ter-se-á de considerar, por exclusão de partes, que a aludida carta de citação foi retirada por terceiros, estranhos à Ré, do local onde havia sido depositada pelo respectivo distribuidor postal.
Ora, a falta de citação, que tem, como directa e imediata consequência, a anulação de todo o processado posterior à apresentação da petição inicial, verifica-se, no caso de ter tido lugar a citação pessoal, quando se demonstre que o respectivo destinatário não chegou da mesma a ter conhecimento, por motivo que lhe não foi imputável - arts. 194º, al. a) e 195º, al. e) do CPC.
E, se, por um lado, tal nulidade é do conhecimento oficioso - art.
202º do CPC - na situação em apreço, sempre seria impossível ao tribunal a quo, pelo seu absoluto desconhecimento, da mesma se aperceber, impendendo, portanto, sobre a Ré o ónus da sua invocação perante aquele tribunal, uma vez que ainda não tinha tido lugar o trânsito em julgado da sentença proferida - art. 204º, nº
2 do CPC -, já que, a ter-se verificado tal trânsito em julgado, tal situação seria então passível de recurso de revisão, sempre, porém, da iniciativa do demandado - arts. 771º, al. f), 773º e 774º do CPC.
Porém, só no caso da existência de um despacho a autorizar a omissão de uma determinada formalidade processual, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que tivesse sido cometida, será a sua impugnação, através da interposição do competente recurso, uma vez que, em caso de arguição da ocorrência de uma qualquer nulidade processual, o meio adequado para tal já será, então, a sua reclamação, pela parte interessada, e perante o tribunal onde a mesma foi cometida, dado que, dos despachos se recorre e das nulidades apenas se reclama - vide ‘Comentário’ do Prof. Alberto dos Reis, vol. 2º, pág. 507.
Ora, na situação que ora nos vem presente, a recorrente não procedeu à reclamação, da sua falta de citação, perante o tribunal recorrido, vindo apenas a suscitar a ocorrência da nulidade resultante daquela omissão, no presente recurso, em que, como antecedentemente se referiu, limitou exclusivamente a tal vício processual a sua discordância, relativamente à decisão proferida.
Temos, assim, que não tendo sido proferido qualquer despacho, quer sobre a matéria processual ora impugnada, quer inclusive sobre a inconstitucionalidade alegada ex novo perante esta instância de recurso, está vedado a esta Relação pronunciar-se sobre tais questões - arts. 676º, n.º 1,
680º, n.º 1 e 690º do CPC e ‘Manual dos Recursos em Processo Civil’ do Consº Amâncio Ferreira, pág. 106.
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Da decisão constante do acórdão lavrado pelo Tribunal da Relação do Porto e de que praticamente toda a fundamentação se encontra transcrita, recorreu a ré para o Tribunal Constitucional, estribada na alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, com vista a ser apreciada ‘a inconstitucionalidade e a ilegalidade das normas dos artigos 484º nº 1 e 784 do C.P. Civil, com a interpretação com que foram aplicadas’.
O recurso veio a ser admitido por despacho proferido em 6 de Maio de
2002 pelo Desembargador Relator daquele tribunal de 2ª instância.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa (cfr. nº 3 do artº
76º da Lei nº 28/82) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, a presente decisão, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto da vertente impugnação.
Na verdade, como facilmente deflui da transcrição supra efectuada, o aresto ora intentado colocar sobre a censura deste Tribunal não fez qualquer aplicação, como suporte normativo da decisão no mesmo ínsita, dos preceitos constantes dos artigos 484º, nº 1, e 784º, ambos do diploma adjectivo civil.
Antes entendeu que, a ter havido uma nulidade consubstanciada na falta de citação da ré, ora recorrente, para a acção em que foi proferida a sentença que a condenou (e ainda que essa nulidade houvesse decorrido da aplicação de normativos constitucionalmente insolventes), mister era que tal nulidade tivesse sido arguida perante o tribunal de 1ª instância, a fim de, desta arte, provocar a prolação, perante esse tribunal, de um despacho decisório sobre a alegada invalidade, pois que só deste poderia haver impugnação para o tribunal hierarquicamente superior.
E, porque não foi essa a senda trilhada pela recorrente, absteve-se o Tribunal da Relação do Porto de se pronunciar sobre a questão de mérito consistente em saber se, in casu, ocorreu, ou não, falta de citação da impugnante.
Convir-se-á, assim e inequivocamente, que o aresto tirado naquele tribunal de 2ª instância, não convocou, como ratio decidendi, os normativos processuais civis vertidos no nº 1 do artº 484º e no artº 784º, pois aquilo que foi convocado para a decisão foram, e tão só, os preceitos reguladores da arguição de nulidades e os que unicamente permitem o conhecimento, pelos tribunais superiores, do objecto de impugnação relativamente a tal matéria, desde que, sobre ela, tenha, precedentemente, havido despacho judicial decisório da arguida nulidade proferido nos tribunais de inferior hierarquia.
Neste contexto, falece, na situação sub specie, um dos requisitos a que se reporta o recurso previsto na aludida alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, justamente aquele que consiste na aplicação, na decisão desejada impugnar perante o Tribunal Constitucional, da norma cuja desconformidade com a Constituição foi, antecedentemente ao proferimento daquela decisão, suscitada por quem daquele recurso que quer, posteriormente, servir.
Termos em que se não toma conhecimento do objecto do recurso, condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em cinco unidades de conta'.
Da transcrita decisão reclamou, nos termos do nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, a recorrente A, sustentando:-
- que, não obstante, no recurso para o Tribunal da Relação do Porto, ter suscitado 'a inconstitucionalidade da interpretação e alcance com que foram aplicadas' as normas dos artigos 484º, nº 1, e 784º do Código de Processo Civil, o acórdão tirado naquele tribunal de 2ª instância não se pronunciou sobre uma tal questão, pelo que incorreu ele em nulidade, ex vi da alínea d) do nº 1 do artº 668º daquele Código;
- sendo assim, 'não é razoável nem justo, que em virtude de o Tribunal recorrido ter praticado uma nulidade, as suas consequências negativas venham a ser imputadas à ora reclamante, ficando, por essa via, impedida de arguir a inconstitucionalidade e ilegalidade em causa'.
Cumpre decidir.
2. A reclamação ora em apreço não consegue, minimamente, abalar as considerações levadas a efeito na decisão sub iudicio e, bem assim, o juízo na mesma ínsito.
Na verdade, no tocante à invocada falta de citação, o que o aresto lavrado no Tribunal da Relação do Porto decidiu foi que uma tal nulidade teria de ser arguida perante o tribunal de 1ª instância - dado tratar-se de uma nulidade processual - e não em via de recurso interposto de uma decisão que conheceu do mérito da causa, decisão essa que se não pronunciou sobre a invocada nulidade. E, assim sendo, continuou aquele Tribunal, porque tal nulidade unicamente foi suscitada no recurso da decisão que julgou procedente a acção - e não foi essa questão objecto de despacho judicial tirado na 1ª instância - estava vedado ao tribunal superior pronunciar-se sobre ela.
É por demais evidente que não compete ao Tribunal Constitucional censurar as decisões tomadas pelos tribunais das várias ordens judiciárias quando lhes é assacado o vício de nulidade, verbi gratia, por omissão de pronúncia, motivo pelo qual, in casu, este órgão de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa se não pode pronunciar sobre a questão de saber se, ao decidir como decidiu, o acórdão prolatado no Tribunal da Relação do Porto incorreu naquele vício, e isto tanto mais que o objecto do intentado recurso de constitucionalidade não versava normativos que regem as formas como devem ser arguidas as nulidades, as respectivas categorias e os poderes cognitivos em tal matéria por banda dos tribunais inferiores e superiores.
O que haveria - como houve - de verificar, era se o aresto pretendido impugnar se debruçou, em termos de conhecimento de mérito, sobre a matéria atinente à invocada falta de citação e, dessa arte, se aplicou, em sede de ratio decidendi, as normas vertidas nos citados artigos 484º, nº 1, e 784º do Código de Processo Civil. E, tendo-se concluído, após essa verificação, que, efectivamente, não houve uma tal aplicação, claro era que do objecto do recurso interposto se não deveria tomar conhecimento, justamente porque falecia, na situação em espécie, um dos requisitos pressupositores desse recurso.
Termos em que se indefere a reclamação, condenando-se a reclamante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa, 2 de Outubro de 2002- Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa