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Proc. nº 632/01
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
(Cons. Maria dos Prazeres Beleza)
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. O Ministério Público vem recorrer, ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de fls. 321, pela 'circunstância de no douto Acórdão (...) ter sido afastada a aplicação do artigo 7º alínea h) do Código das Custas Judiciais na interpretação de que o referido artigo deve ser aplicado independentemente do valor da acção para efeito de custas e da maior ou menor actividade jurisdicional envolvida pela acção, incidente ou recurso, por infringir os princípios da proporcionalidade e do acesso ao direito e aos tribunais consignados nos artigos 18º, nº 2 e 266º, nº 2 e 20, nº 1 da C.R.P.'. O recurso foi admitido, em decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do artigo
76º da Lei nº 28/82).
2. O acórdão recorrido foi proferido no âmbito de um processo de jurisdição voluntária instaurado no Tribunal Judicial da Comarca do Funchal por A., destinado a obter autorização para a redução do capital social de 192 229 088
784$00 para 24 996 857 746$00, que decorreu sem qualquer oposição e veio a ser julgado favoravelmente pela sentença de fls. 63, do 4º Juízo Cível daquele Tribunal. Por essa mesma sentença foi a requerente condenada em custas, nos seguintes termos: 'Custas a cargo da requerente – art. 446º do CPC.' O contador, ao fazer a conta, reduziu a metade o montante, presumivelmente ao abrigo do disposto no artigo 17º, nº 2, a.l. a) do Código das Custas Judiciais. Tendo sido notificada da conta de custas, no valor de 1.254.173.900$00, A veio requerer a respectiva redução, 'seja (...) através da rectificação da sentença, nos termos do artigo 667º do CPC, ou subsidiariamente, através da alteração da sentença, nos termos do artigo 1411º do CPC'; subsidiariamente ao pedido de redução, veio ainda reclamar 'da conta de custas, por erro na sua elaboração'; finalmente, invocou a inconstitucionalidade da 'norma do artigo 7º, alínea h), do Código das Custas Judiciais', por violação dos princípios da proporcionalidade, da igualdade, da confiança e do acesso à justiça e, ainda, a infracção do Direito Comunitário (requerimento de fls. 80). Pelo Despacho de fls. 161, foram indeferidas, quer a redução da condenação, quer a reclamação da conta; foi todavia entendido ter existido um lapso na referência ao artigo 446º do Código de Processo Civil, o que levou à correcção 'da parte final da sentença (...) da seguinte forma: 'custas a cargo da requerente - art.
449º, n.ºs 1 e 2, a) do CPC' '. Igualmente se entendeu não ocorrerem, nem a alegada inconstitucionalidade, nem a pretensa violação do Direito Comunitário. Recorreram o Ministério Público, alegando que não deveria ter sido alterada a sentença, porque a rectificação só foi requerida depois do trânsito em julgado, e A, por não se conformar com a decisão.
3. O recurso veio a ser julgado pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de fls. 321, do qual foi interposto o presente recurso de constitucionalidade. Quanto ao recurso interposto pelo Ministério Público, o Tribunal da Relação de Lisboa veio revogar 'o conteúdo da referida substituição' e manter a 'expressão substituída constante da sentença', por considerar que o tribunal recorrido
'infringiu o princípio da estabilidade da decisão ou do caso julgado formal a que se reporta o artigo 666º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil'. No que toca ao recurso interposto pela autora, e apenas no que agora releva, o Tribunal considerou que a norma constante da alínea h) do artigo 7º do Código das Custas Judiciais, contrariamente ao sustentado pela recorrente, não infringe o princípio constitucional da igualdade. Mas chegou à conclusão oposta no que toca à sua aferição à luz dos princípios da proporcionalidade e do acesso ao direito e aos tribunais, vindo, assim, a afastar a correspondente aplicação por inconstitucionalidade material, pois que 'nos feitos submetidos a julgamento, não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados ( artigo 204° da Constituição)'. Assim, e após referir o significado do 'princípio da proporcionalidade, ou de proibição do excesso', enquanto 'corolário do princípio da confiança ínsito na ideia de Estado de Direito democrático constante do artigo 2° da Constituição', que 'tem essencialmente a ver com a ideia de justa medida no quadro das desvantagens dos meios em relação às vantagens dos fins', o Tribunal da Relação de Lisboa procedeu à análise global do regime definido para o cálculo das custas judiciais, concluindo que, embora utilizando como critério geral o do valor da causa, 'todo o sistema de custas' é dominado pela 'ideia matriz de fixação da taxa de justiça à luz do princípio da proporcionalidade, por referência à actividade judicial desenvolvida nas acções, recursos, incidentes ou procedimentos'. Após uma síntese da jurisprudência constitucional relativa ao princípio da proporcionalidade, lido em conjunto com a garantia fundamental de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no n° 1 do artigo 20° da Constituição, o Tribunal da Relação de Lisboa passou à análise do preceito em causa, a alínea h) do artigo 7º do Código das Custas Judiciais, concluindo da seguinte forma:
'O legislador não pode, como é natural, dada a variedade da realidade da vida, prever situações anormais, como é o caso vertente, em que a redução do capital social se cifra em cento e sessenta e sete biliões, duzentos e trinta e dois milhões e duzentos e trinta mil e trinta e oito escudos. Acresce que a acção declarativa com processo especial de jurisdição voluntária em causa não teve oposição, apenas comportou um processado de sessenta e cinco páginas, teve a duração de três meses e oito dias, e a lei apenas prevê a redução da taxa de justiça a metade. Assim, ressalta com evidência, conforme alegou A, que a taxa de justiça de oitocentos e trinta e seis milhões e cento e oitenta e três mil escudos, que resulta da aplicação da lei, se revela assaz desproporcionada em relação à actividade processual desenvolvida na acção em causa. Em consequência, a interpretação do normativo do artigo 7°, alínea h), do Código das Custas Judiciais tal como foi operada no tribunal recorrido, ou seja, no sentido de que o valor para efeito de custas dele constante não pode ser reduzido no quadro processual desenvolvido na acção declarativa com processo especial em causa, queda afectada de inconstitucionalidade material por infracção do princípio da proporcionalidade. (...)'. Relativamente ao 'princípio do acesso ao direito e aos tribunais', após lembrar a sua 'dupla dimensão de garantia de defesa de direitos e de necessidade de a lei ordinária assegurar que ninguém seja impedido de aceder à justiça em razão de insuficiência de meios económicos, em termos de salvaguarda do princípio da igualdade', o Tribunal da Relação de Lisboa, salientando embora que o caso concreto é 'uma situação anómala quanto ao valor da presente acção declarativa com processo especial de jurisdição voluntária, independentemente do nível económico-financeiro envolvente da sociedade A', entendeu 'que, na sua dinâmica de aplicação ao caso vertente, a interpretação que na decisão recorrida foi operada ao artigo 7°, alínea h), do Código das Custas Judiciais, no sentido de, na espécie, o valor da acção não comportar redução, queda afectada de inconstitucionalidade material por violação do princípio do acesso ao direito e aos tribunais'. Consequentemente, o acórdão recorrido reduziu o valor da acção 'para efeito de custas que resulta do disposto naquela disposição legal de nove décimos, ou seja, [fixou-o] em um décimo' e determinou a consequente 'reformulação do acto de contagem em conformidade'; e julgou procedentes 'os recurso de agravo interpostos pelo Ministério Público e por A, quanto a este na parte relativa à decisão que incidiu sobre a reclamação do acto de contagem'.
4. Notificadas para o efeito, já no Tribunal Constitucional, as partes vieram apresentar alegações. Quanto ao Ministério Público, observando que, 'como bem se demonstra no douto e bem fundamentado acórdão recorrido', se revela 'manifestamente desproporcionado ao tipo e complexidade de actividade jurisdicional efectivamente desenvolvida neste processo de jurisdição voluntária a liquidação de uma taxa de justiça no montante de 836.000 contos – pondo-se ostensivamente em crise o carácter bilateral ou sinalagmático que constitui o núcleo essencial do próprio conceito de taxa – como decorrência de uma fixação ou determinação puramente automática do montante da taxa de justiça, em função apenas do valor da pretensão deduzida pela entidade que pretende reduzir o capital social, sem se outorgar ao julgador a possibilidade de graduar ou adequar às circunstâncias do caso tal montante. E
[que], por outro lado, o referido e exorbitante montante da taxa de justiça devida constitui obviamente restrição ou limitação excessiva e desproporcionada ao exercício perante o tribunal do direito potestivo que a requerente exercitou nos presentes autos, o que se mostra colidente com o preceituado nos artigos 20° e 18°, n° 3, da Constituição da República Portuguesa', concluiu da seguinte forma:
'Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1 ° - O estabelecimento, em processo de jurisdição voluntária destinado a obter autorização para redução do capital social, de uma taxa de justiça no montante de 836.183.000$00 – como automática decorrência do valor da pretensão deduzida e sem que tal montante revele a mínima correspectividade com a natureza e complexidade da actividade jurisdicional exercida nos autos – não respeita as exigências de bilateralidade ou sinalagmaticidade que, constituindo núcleo essencial do conceito jurídico-constitucional de ‘taxa’, subjazem necessariamente à determinação e cálculo da taxa de justiça devida como contrapartida do exercício de uma actividade jurisdicional em benefício do requerente, que actua em juízo certo direito potestativo.
2° - Tal montante de custas – radicado na aplicação da norma que integra o objecto do recurso – pelo seu carácter ostensivamente desproporcionado à natureza e complexidade da causa, é ainda susceptível de implicar o estabelecimento de uma ilegítima restrição ou limitação no acesso ao direito, inibindo os interessados de exercitarem jurisdicionalmente os seus direitos e interesses – e sendo manifesto que, no caso dos autos, não seria adequado o instituto do apoio judiciário, como forma de suprir tal restrição ou inibição no acesso ao direito e aos tribunais pela sociedade requerente.
3°- Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida'.
A recorrente, por seu turno, concluiu do seguinte modo:
'2. Conclusões
1ª - Por outro lado, a taxa de justiça é uma taxa, na medida em que constitui a retribuição dos serviços jurisdicionais prestados.
2ª - A taxa de justiça é calculada com base no valor do processo, a respectiva tramitação, a maior ou menor complexidade da causa e ainda o comportamento da partes.
3ª - Portanto, a taxa tem que ser definida segundo um critério de proporcionalidade.
4ª - Ora, a taxa de justiça aplicada pelo Tribunal de 1ª Instância era absolutamente desproporcional, relativamente aos serviços prestados.
5ª - Sendo desproporcional aos serviços prestados, a taxa de justiça perde a bilateralidade que a caracteriza e passa a revestir a natureza de um verdadeiro imposto.
6ª - O C.C.J. prevê um conjunto de normas e a intervenção correctiva do Juiz para atenuarem a rigidez das suas normas que fixam em abstracto o valor tributário das causas.
7ª - Destituída desta adequação legal, a norma do artigo 7°, h), do C.C.J., viola o Princípio da Proporcionalidade consignado no artigo 266°, n.º2, da C.R.P..
8ª - Foi igualmente violado o artigo 20º da C.R.P., uma vez que a exorbitância das custas aplicadas limitaram o direito de acesso à Justiça.
9º - Pois, a taxa aplicada era excessivamente onerosa e restritiva do acesso aos tribunais pela Recorrida, a qual não podia lançar mão do instituto do apoio judiciário.
10ª - Assim, a norma do artigo 7°, h) do C.C.J. infringe, entre outras normas e princípios constitucionais, a que está contida no artigo 204° da Constituição'.
5. É o seguinte o texto da alínea h) do artigo 7º do Código das Custas Judiciais: Artigo 7º Valor das causas relativas a sociedades
Nas causas relativas a sociedades considera-se como valor, para efeito de custas:
(...) h) Nas de autorização para redução do capital social, o da redução requerida;
...........
(...). Constitui, portanto, o objecto do presente recurso a norma constante desta alínea h) na interpretação segundo a qual, nas acções de autorização para redução do capital social, considera-se necessariamente (isto é, sem poder ser reduzido) como valor da acção, para efeito de custas, o valor da redução requerida, independentemente da maior ou menor actividade jurisdicional desenvolvida, pois foi com este sentido que a norma foi afastada por inconstitucionalidade.
6. A recorrente sustenta que a desproporção entre o valor cujo pagamento lhe foi determinado e os serviços prestados pelo tribunal que julgou o seu pedido transforma a taxa de justiça em imposto, embora não retire qualquer consequência dessa afirmação (por exemplo, no domínio de uma eventual inconstitucionalidade orgânica).
7. O Tribunal Constitucional já por diversas vezes teve a oportunidade de se pronunciar sobre o problema da distinção constitucional entre imposto e taxa, utilizando como critério básico de diferenciação o da unilateralidade ou bilateralidade dos tributos: enquanto o imposto tem estrutura unilateral, a taxa caracteriza-se pelo seu carácter bilateral e sinalagmático. A estrutura bilateral e sinalagmática das taxas supõe a existência de uma correspectividade entre a prestação pecuniária a pagar e a prestação de um serviço pelo Estado ou por outra entidade pública. À prestação de um serviço verdadeiro e próprio, equipara-se 'a utilização do domínio público (...) e a remoção de limites impostos à livre actividade dos particulares (...)' (cf., por todos, CASALTA NABAIS, 'O dever fundamental de pagar impostos', Coimbra, 1998, pág. 260). Ou, como se afirmou no acórdão nº 558/98 (Diário da República, II Série, de 11 de Novembro de 1998), remetendo para TEIXEIRA RIBEIRO, PITTA E CUNHA, XAVIER DE BASTO e LOBO XAVIER, a relação sinalagmática característica da taxa implica uma contrapartida pelo ente público, tendo 'a doutrina entendido que são essencialmente três os tipos de situações em que essa contrapartida se verifica e que se consubstanciam na utilização de um serviço público de que beneficiará o tributado, na utilização, pelo mesmo, de um bem público ou semi-público ou de um bem do domínio público e, finalmente, na remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinadas actividades por parte dos particulares', se 'com essa remoção se vier a possibilitar a utilização de um bem semipúblico' (cfr., igualmente, o acórdão nº 115/2002, ainda não publicado).
Esta tipificação, de há muito aceite na doutrina, veio inclusivamente a ser recebida na Lei Geral Tributária (aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro), que determina que '[a]s taxas assentam na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo ao comportamento dos particulares' (nº 2 do artigo 4º), enquanto '[o]s impostos assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património' (nº 1 do artigo 4º).
8. Por outro lado, o Tribunal Constitucional também já afirmou, por diversas vezes, que a referida bilateralidade não implica uma equivalência económica rigorosa entre o valor do serviço e o montante da quantia a prestar pelo utente desse serviço. Nesse sentido, escreveu-se no Acórdão nº 357/99 (Diário da República, II, de 2 de Março de 2000): «Tem ainda o Tribunal entendido que se não integra no conceito de taxa a correspondência entre o montante da prestação imposta e o custo do bem ou serviço que constitui a contraprestação do ente público (cfr. Acórdão nº. 67/90, in ‘Acórdãos do Tribunal Constitucional’, 15º vol., p. 241), salvo nos casos em que, entre aqueles montante e custo houver uma 'desproporção intolerável' (Ac. nº. 1140/96, in DR II Série de 10/2/97)». A mesma orientação voltou a ser reafirmada nos acórdãos nº 410/2000 (Diário da República, II Série, de 22 de Novembro de 2000), 200/2001 (Diário da República, II Série, de 27 de Junho de 2001) e 115/2002 (já citado). Em suma, na perspectiva do Tribunal, exigível é que, de um ponto de vista jurídico, o pagamento do tributo tenha a sua causa e justificação – material, e não meramente formal –, na percepção de um dado serviço.
10. Em particular no que respeita à chamada taxa de justiça, em causa nos presentes autos, encontramos igualmente na jurisprudência constitucional a definição dos princípios necessários ao julgamento do presente recurso. Assim, em primeiro lugar, tem o Tribunal Constitucional considerado uniformemente que a chamada taxa de justiça é uma taxa e não um imposto. No seu acórdão nº 8/2000, por exemplo, disse o seguinte: '2.1. De facto, como por várias vezes foi já sublinhado por este órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, a denominada «taxa de justiça» não é algo que deve ser perspectivado como imposto e, por isso, não está sujeita à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República constante, hoje, da alínea i) do nº 1 do artigo 165º da Constituição e, antes, após a Revisão Constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, da alínea i) do nº 1 do artigo 168º (cfr., verbi gratia, os Acórdãos deste Tribunal números 412/89, 377/94, 379/94 e 382/94, publicados na 2ª Série do Diário da República de, respectivamente,15 de Setembro de 1989, 7 de Setembro de 1994 e 8 de Setembro de 1994, e os Acórdãos números 582/94, 583/94 e 584/94, ainda inéditos). As razões que levaram o Tribunal Constitucional a emitir tais juízos de não inconstitucionalidade orgânica são (...) totalmente transponíveis para a vertente questão, independentemente de se postar agora um «novo» Código das Custas Judiciais'.
11. Finalmente, tem ainda o Tribunal Constitucional afirmado, por diversas vezes, que o legislador dispõe de uma larga margem de liberdade de conformação em matéria de definição do montante das taxas (cfr. acórdãos nºs 352/91 (Diário da República, II Série, de 17 de Dezembro de 1991), 1182/96 (Diário da República, II Série, de 11 de Fevereiro de 1997) ou 521/99 (Diário da República, II Série, de 6 de Março de 2000), por exemplo). Esclareceu, contudo, 'que essa liberdade não implica que as normas definidoras dos critérios de cálculo sejam imunes a um controlo de constitucionalidade, quer no que toca à sua aferição segundo regras de proporcionalidade, decorrentes do princípio do Estado de Direito (artigo 2º da Constituição), quer no que respeita à sua apreciação à luz da tutela constitucional do direito de acesso à justiça (artigo 20º da Constituição); em qualquer dos casos, sob a cominação de inconstitucionalidade material (cfr. acórdãos nºs 352/91, 467/91, Diário da República, II Série, de 2 de Abril de 1992, 1182/96 ou 247/99 (Diário da República, II Série, de 13 de Julho de 1999). E proferiu, mesmo, alguns julgamentos de inconstitucionalidade por violação combinada de ambos os princípios, por exemplo, nos acórdãos nºs
1182/96 e 521/99.
12. Pois bem: feitas estas considerações genéricas, cabe averiguar das consequências que delas decorrem para o julgamento da alegada inconstitucionalidade da norma que constitui o objecto do presente recurso. Recorde-se: a alínea h) do artigo 7º do Código das Custas Judiciais, na interpretação segundo a qual, nas acções de autorização para redução do capital social, considera-se necessariamente (isto é, sem poder ser reduzido) como valor da acção, para efeito de custas, o valor da redução requerida, independentemente da maior ou menor actividade jurisdicional desenvolvida.
13. Em primeiro lugar, da jurisprudência antes citada decorre que estamos perante uma taxa e não perante um imposto. Desde logo porque, conforme resulta da jurisprudência já referida, a tal não obsta o facto de não existir uma equivalência económica rigorosa entre o valor do serviço prestado e o montante da quantia a pagar pelo utente desse serviço. Como então se referiu, 'o que é exigível é que, de um ponto de vista jurídico, o pagamento do tributo tenha a sua causa e justificação – material, e não meramente formal – na percepção de um dado serviço (cfr., designadamente, o acórdão nº 1108/96, já citado). Assim, não basta uma qualquer desproporção entre a quantia a pagar e o valor do serviço prestado, para que ao tributo falte o carácter sinalagmático. Será necessário que essa desproporção seja manifesta e comprometa, de modo inequívoco, a correspectividade pressuposta na relação sinalagmática. Como se escreveu recentemente no acórdão nº 115/02 – que acompanhou, nesta parte, o que ponderado foi no acórdão nº 640/95, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Janeiro de 1996 – 'pode assim dizer-se que o Tribunal Constitucional rejeita o entendimento de que uma taxa cujo montante exceda o custo dos bens e serviços prestados ao utente se deve qualificar como imposto ou de que deve ter o tratamento constitucional de imposto: quando se verifica a correspectividade ou o carácter sinalagmático entre a imposição e um serviço divisível prestado não se está perante um imposto'.
14. Por outro lado, se é certo que o Tribunal já disse que a a existência de uma clara desproporção pode afectar a qualificação de um tributo como taxa, também é verdade que sempre acrescentou que a clara desproporção que afecta o carácter sinalagmático de um tributo não pode relacionar-se apenas com o carácter fortemente excessivo da quantia a pagar relativamente ao custo do serviço; ela há-de igualmente ser aferida em função de outros factores, designadamente da utilidade do serviço para quem deve pagar o tributo (cfr. os acórdãos nºs
1140/96 e 115/02, já citados). Para demonstrar este ponto, escreveu-se recentemente no acórdão nº 115/02:
'(...) E, o Tribunal Constitucional tem sido, no entanto, cauteloso na apreciação dos excessos indicadores de uma falta de proporcionalidade enquanto desvirtuantes da correspectividade. Assim, para a função da taxa pode ser menos relevante o custo e, por exemplo, mais relevante a contenção da utilização de um serviço – o que significa (e a jurisprudência constitucional tem-se comprometido nesse sentido) que o carácter sinalagmático da taxa não exige a correspondência do seu montante ao custo do bem ou serviço prestado: a bilateralidade que a caracteriza mantém-se, mesmo na parte excedente ao custo (cfr., v. g., o acórdão nº 205/87, publicado no Diário da República, I Série, de 3 de Julho de 1987); não é, por si só, de qualificar a taxa como imposto, ou de lhe conceder tratamento constitucional de imposto, se o respectivo montante exceder o custo dos bens e serviços prestados ao utente
(cfr., v.g., o acórdão nº 640/95, publicado naquele jornal oficial, II Série, de
20 de Janeiro de 1996).
(...)' Como, então, mais se ponderou, em termos que ora interessa reter (e reflectindo, de certo modo, o exposto precedentemente), '[a] base funcional da distinção entre taxa e imposto não impõe, todavia, uma sinalagmaticidade construída juridicamente e um sentido de correspectividade susceptível de ser entendido e aceite como tal pelos cidadãos atingidos'. Daí se retira que 'a consignação financeira de uma tal prestação económica que surge como uma elevação de um preço estabelecido em convenção poderá não afectar a natureza de taxa da referida prestação, na medida em que se entenda que a elevação do preço tem o seu fundamento (a sua causa) num determinado modo de relacionamento dos cidadãos com os custos (benefícios ou utilidades) e a própria elevação do preço seja aceitável racionalmente como contrapartida de um benefício'. Encontra-se implícita, nesta concepção, que a aferição do montante da taxa não decorre tanto do seu 'custo' mas, essencialmente, da utilidade que do serviço se extrai'.
15. Em função de tudo o que antecede apenas resta concluir que o Tribunal Constitucional não pode, pois, censurar um critério de determinação da quantia da taxa de justiça em que o legislador teve em conta não só o valor de custo do serviço em causa mas, determinantemente, o valor resultante da utilidade obtida através da prestação do serviço. Ora, é de presumir que essa utilidade seja proporcional ao valor do próprio acto. Assim sendo, entende-se que uma taxa de justiça que representa apenas 0,5% do valor do acto não deixa de satisfazer os requisitos constitucionais de proporcionalidade. III. Decisão. Em face do exposto, decide-se: a) não julgar inconstitucional a norma do artigo 7º alínea h) do Código das Custas Judiciais, na interpretação segundo a qual, nas acções de autorização para redução do capital social, considera-se necessariamente (isto é, sem poder ser reduzido) como valor da acção, para efeito de custas, o valor da redução requerida, independentemente da maior ou menor actividade jurisdicional desenvolvida. b) consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a sentença recorrida ser reformulada em conformidade com o presente juízo de constitucionalidade. Lisboa, 15 de Julho de 2002- José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (vencida, nos termos da declaração junta) Luís Nunes de Almeidas
Declaração de voto
Como primitiva relatora, pronunciei-me no sentido da improcedência do recurso, em síntese, pelas seguintes razões:
1. O processo especial previsto, entre os processos de jurisdição voluntária, no artigo 1487º do Código de Processo Civil, destina-se a obter autorização judicial – no caso, necessária, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 95º do Código das Sociedades Comerciais – para a redução do capital social. Tem uma tramitação simples, particularmente se não houver oposição, como aqui sucedeu
(cfr. os diversos nºs do artigo 1487º e o disposto nos artigos 303º e 304º, aplicáveis por força do nº 1 do artigo 1409º, todos do Código de Processo Civil). Conforme decorre do alínea h) do artigo 7º do Código das Custas Judiciais, para determinar a taxa de justiça a pagar atende-se ao valor da causa, considerando-se como tal o montante da redução pretendida. Ora é em geral aceitável – no sentido de não afectar a sua qualificação como taxa – a utilização do critério do valor da causa para determinar a forma de calcular o montante da taxa de justiça, até porque o maior ou menor valor da causa não é alheio (pelo menos dentro do processo comum) à maior ou menor complexidade da tramitação a seguir. A verdade, todavia, é que encontramos no Código das Custas Judiciais inúmeros casos em que a lei, não obstante utilizar o critério do valor da causa como elemento fundamental para o respectivo cálculo, recorre a outros critérios, fazendo desaparecer o seu carácter exclusivo e permitindo afastar hipóteses em que se poderia verificar uma desproporção inaceitável entre o montante a pagar e a actividade processual desenvolvida. Assim, por exemplo, encontramos casos em que há uma redução a metade ou a um quarto, designadamente por razões ligadas a uma menor complexidade ou duração do processo. É o que acontece, nas custas cíveis (cfr. a regra geral sobre a responsabilidade no artigo 446º do Código de Processo Civil), respectivamente por força dos artigos 14º e 15º do Código das Custas Judiciais. Semelhante redução do montante da taxa de justiça é também estabelecida em diversas hipóteses de acções em que terminam antecipadamente (artigo 17º do mesmo Código, cuja epígrafe é 'redução da taxa de justiça segundo a fase do termo do processo'; cfr. ainda o artigo 19º). Acresce que nas causas de valor superior a determinado montante 'não é considerado o excesso para efeito do cálculo da taxa de justiça inicial e subsequente' (nº 3 do artigo 27º).
2. Sucede, porém (independentemente de saber se existiria outro caminho possível), que a aplicação da norma da alínea h) do artigo 7º do Código das Custas Judiciais no sentido de que não admite qualquer redução que permita a sua adaptação a um processo em que, por um lado, é obrigatório o recurso ao tribunal e, por outro, está em jogo uma redução de capital de valor excepcionalmente elevado, sem que esse valor anormal tenha qualquer repercussão na tramitação a seguir, conduz à fixação de uma taxa de justiça de montante claramente exorbitante e desproporcionado.
É certo que a taxa de justiça não se destina a pagar, apenas, o serviço correspondente à tramitação realmente processada em cada caso; no seu cálculo inclui-se também, como é natural, uma parcela para suportar o funcionamento da máquina de justiça em geral, funcionamento de que beneficia qualquer processamento. Seja como for, não carece de mais justificações a verificação de que ocorre, em consequência da interpretação perfilhada pela 1ª instância e afastada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, uma situação em que a taxa calculada é de
'montante manifestamente excessivo', ou seja, em que há uma 'desproporção intolerável' entre 'o montante do tributo e o custo do (...) serviço prestado' , assim se legitimando que o Tribunal Constitucional possa 'cassar a decisão legislativa', para utilizar as expressões de que se serviu o acórdão nº 1140/96. E, justamente por ser manifestamente exorbitante o valor calculado em função da mesma norma, ocorre também uma violação evidente do direito de acesso ao direito e aos tribunais, sem que seja necessário entrar em considerações relacionadas com o instituto do apoio judiciário, aqui descabidas. Note-se, por fim, que o tribunal poderia ter optado por referir o juízo de inconstitucionalidade ao artigo 17º do Código das Custas Judiciais, cujo nº 2, aliás, foi aplicado (cfr. fls. 140). Não o fez, todavia, e o Tribunal Constitucional está limitado, no julgamento deste recurso, à apreciação da norma cuja aplicação foi recusada por inconstitucionalidade.
3. Não merece, assim, em meu entender, qualquer censura o juízo de inconstitucionalidade a que o acórdão recorrido chegou, pois que a norma cuja aplicação afastou viola, combinadamente, os princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso ao direito e aos tribunais, consagrados, respectivamente, nos artigos 2º e 20º, nº 1, da Constituição. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza