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Proc. n.º 145/02 Acórdão nº 288/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Por decisão sumária de fls. 350 e seguintes, não se tomou conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A, pelos seguintes fundamentos:
'[...]
7. Constitui pressuposto processual do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – aquele que foi interposto pelo recorrente – a aplicação, pelo tribunal recorrido, da norma cuja inconstitucionalidade o recorrente suscitou no processo e que pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. No presente caso, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a conformidade constitucional do Regulamento aprovado pela Associação dos Técnicos Oficiais de Contas, conforme decorre do requerimento de fls. 343 (supra, 6.). O recorrente, porém, não especifica quaisquer normas desse Regulamento. Esta falta de concretização do objecto do presente recurso só poderia, porém, justificar um despacho de aperfeiçoamento nos termos do artigo 75º-A, n.º 6, da Lei do Tribunal Constitucional, caso se entendesse ser útil esse despacho. Ora, no caso dos autos, tal utilidade não se verifica, na medida em que, fosse qual fosse a norma do Regulamento que, na sequência do despacho de aperfeiçoamento, o recorrente indicasse, sempre se haveria de concluir que tal Regulamento não foi aplicado na decisão recorrida e, como tal, faltaria um dos pressupostos processuais do presente recurso, não podendo conhecer-se do respectivo objecto. Na verdade, o tribunal recorrido limitou-se a aplicar o artigo 1º e o artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 27/98, de 3 de Junho, tendo concluído que o recorrente, face aos elementos de prova que forneceu, não poderia ser inscrito como técnico oficial de contas ao abrigo daquele primeiro preceito. Considerou mesmo o tribunal recorrido ser irrelevante, para a decisão da causa, «indagar se as normas do Regulamento que interpretou a aplicação daquela lei, subverteram o regime decorrente da Lei 27/98 [...], pois que, independentemente das normas fixadas naquele Regulamento, o seu pedido de inscrição, face ao exposto, teria sempre que ser indeferido por falta de comprovação do pressuposto fixado na lei que o regulamento pretendeu interpretar» (cfr. a transcrição do acórdão recorrido, supra, 5.). Não tendo o tribunal recorrido aplicado as normas do Regulamento cuja conformidade constitucional o recorrente questiona, mas apenas os mencionados preceitos da Lei n.º 27/98, de 3 de Junho, é evidente que o Tribunal Constitucional não pode conhecer do objecto do presente recurso, por falta de preenchimento de um dos seus pressupostos processuais. E não destrói esta conclusão a alegada possibilidade de a aplicação dos mencionados preceitos da Lei n.º 27/98, de 3 de Junho, assentar numa interpretação coincidente com o que se estatui no artigo 2º, n.º s 1 e 2, do Regulamento da ATOC (cfr. conclusão 11ª das alegações de fls. 227 e seguintes: supra, 4.), pois que nem o Tribunal Constitucional tem competência para aferir tal coincidência, nem a circunstância de a interpretação de uma norma legal adoptada por um tribunal coincidir com o determinado num Regulamento (ou em qualquer outro acto normativo) permite transformar este Regulamento (ou este outro acto normativo) em objecto de recurso de constitucionalidade. Não pode, assim, conhecer-se do objecto do presente recurso por falta de preenchimento de um dos seus pressupostos processuais – o da aplicação, na decisão recorrida, da norma cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie.
[...].'
2. Notificado da referida decisão sumária, A dela veio reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional (fls. 369 e seguinte). Na reclamação disse o seguinte:
'[...]
1. Com todo o respeito, não se aceita, nem se conforma o recorrente com a douta posição adoptada pela Exma. Srª. Juíza Conselheira-Relatora.
2. Na verdade, a última coisa que o recorrente esperava, era que pudesse ser o Tribunal Constitucional a pactuar com um cerceamento no acesso ao Direito, se não mesmo com uma verdadeira denegação de justiça.
3. Vamos a ver se nos entendemos e se percebemos o que se passa nos autos, para que este Venerando Tribunal apreenda a verdadeira fraude de que o recorrente está a ser vítima.
4. O que está em causa é um acto administrativo praticado pela Comissão de Inscrição da ATOC, que indeferiu, ou negou, o pedido de inscrição do recorrente na ATOC.
5. Ora, em que termos o faz e quais as disposições normativas que esse acto aplicou?
6. A resposta é simples: – A Lei 27/93, de 3 de Junho, no seu artº 1° estabelecia os requisitos para essa inscrição: – ter sido durante pelo menos três anos, seguidos ou interpolados, responsável directo por contabilidade organizada.
7. Não estabelecia, nem tinha de estabelecer aquela lei, a forma como se faria a prova daqueles requisitos, naturalmente deixando isso para os princípios gerais e para a amplitude dos meios de prova em direito permitidos.
8. Só que a Comissão Instaladora da ATOC, de forma de todo ilegal e inconstitucional, e sem ter competência para tanto, decidiu emitir o Regulamento que foi junto com a petição como doc. 5 cujos arts. 1º, 2º e 3° sofrem de manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade.
9. Ora, foi este Regulamento, que o acto administrativo impugnado nos autos aplicou, como se pode ver pelo ofício junto à petição como doc. 1, onde se refere expressamente:
«De acordo com aquele Regulamento a prova da responsabilidade directa pela contabilidade organizada durante o período considerado relevante terá de ser feita através da entrega com o requerimento de inscrição de cópias autenticadas de declarações modelo 22 do IRC e/ou o anexo C às declarações modelo 2 do IRS, assinadas pelo profissional de contabilidade no quadro destinado pelas mesmas aí responsável pela escrita».
10. Isto é do mais bloqueador do acesso à profissão já que, ao tempo, além do mais, as declarações fiscais em causa não tinham, de ser assinadas pelos profissionais de contabilidade, como se decidiu, e bem, no Acórdão do S.T.A., de
16.04.2002, proferido no Proc. nº 48.397, da 2ª Subsecção, da 1ª Secção, de que se protesta juntar cópia.
11. Ora, o Acórdão sob recurso, ao confirmar a sentença da 1ª Instância, é óbvio que, pelo menos implicitamente, aplicou o Regulamento cuja ilegalidade e inconstitucionalidade foi suscitada nos autos.
12. O que o Acórdão decidiu é que o recorrente não podia ser admitido na ATOC porque não apresentara os documentos que o Regulamento em causa exige, de nada valendo ao Acórdão em causa dizer que aplica tão só a Lei 27/98, pois essa admitia todo e qualquer meio de prova, o que foi vedado ao recorrente.
13. Assim sendo, como é, e com o devido respeito, constitui um artifício falacioso dizer que se aplicou tão só a Lei, quando se aplicou, de facto, o Regulamento, já que se a lei dissesse o que diz o Regulamento, para além dos demais vícios deste, também era inconstitucional.
[...].'
Foi junto aos autos, conforme requerido pelo reclamante, fotocópia do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 16 de Abril de 2002, proferido no processo n.º 48.397, da 2ª Subsecção da 1ª Secção (fls. 374 e seguintes). A Comissão de Inscrição da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, notificada desse requerimento, veio dizer o seguinte (fls. 389):
'[...] vem requerer o seu desentranhamento, por a sua junção ser extemporânea, nada ter a ver com a matéria em causa nesse Colendo Tribunal e por o rec.te, contrariamente ao que afirma, não ter, na sua reclamação para a conferência da decisão sumária que rejeitou o recurso, protestado juntar qualquer documento. Contudo, deve relevar-se que o Acórdão que se pretende juntar não transitou em julgado e até à data a única decisão conhecida, naquele sentido, proferida pelo S.T.A.'
Especificamente quanto à reclamação para a conferência da decisão sumária, pronunciou-se a Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas do seguinte modo
(fls. 392):
'[...]
1 - Antes de mais quem não «entendeu nem percebeu» o que se passa nos autos foi o rec.te e não a Excelentíssima Senhora Juíza Conselheira Relatora.
2 - Com efeito, como resulta da transcrição feita na douta decisão reclamada da parte decisória do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo foi negado provimento ao recurso contencioso interposto pelo ora rec.te da deliberação de
31.07.98 da rec.da, porque aquele não lograva fazer prova do pressuposto vinculado de ter sido o responsável directo por contabilidade organizada durante
3 anos no período que foi de 01.01.89 a 17.10.95.
3 - Ou seja, analisados os elementos de prova juntos pelo rec.te ao processo administrativo conclui-se que dos mesmos não resultava o preenchimento daquele pressuposto, não porque não fossem atendíveis, mas sim porque o que resultava dos mesmos era que o exercício da actividade relevante não havia durado o mínimo de 3 anos.
4 - Consequentemente, não foi por aplicação do regulamento de 03.06.1998 que o douto Acórdão rec.do negou provimento ao recurso do rec.te, mas sim por aplicação directa da lei n° 27/93 aos factos assentes. Termos em que deve ser indeferida a reclamação.'
Cumpre apreciar.
II
3. Alega o reclamante, em primeiro lugar, que o acto administrativo praticado pela Comissão de Inscrição da Associação de Técnicos Oficiais de Contas (ATOC) – que indeferiu o pedido de inscrição do recorrente na ATOC – aplicou um Regulamento, emitido pela Comissão Instaladora da ATOC, que contém preceitos que sofrem de manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade (n.º s 4 a
9 da reclamação).
Simplesmente, a alegada circunstância de o referido acto administrativo ter aplicado o mencionado Regulamento é irrelevante para a decisão da presente reclamação.
Aquilo que competiria ao reclamante demonstrar era que a decisão judicial da qual interpôs recurso para o Tribunal Constitucional aplicou o questionado Regulamento, estando, consequentemente, preenchido o pressuposto processual cuja falta se havia assinalado na decisão sumária ora reclamada – a aplicação, pela decisão recorrida, da norma cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal Constitucional aprecie. Ora tal demonstração manifestamente não resulta da afirmação de que o acto administrativo impugnado nos autos aplicou o Regulamento. Sendo o acto administrativo e a decisão judicial realidades diversas, não pode inferir-se que, tendo no acto administrativo sido aplicada certa norma, necessariamente na decisão judicial ela também foi aplicada. Especialmente quando é a própria decisão judicial a considerar ser tal norma irrelevante para a apreciação de certa questão, como sucedeu com a decisão recorrida.
Em segundo lugar, invoca o reclamante um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, que considerou ilegal a limitação dos meios de prova dos requisitos estabelecidos no artigo 1º da Lei n.º 27/98 (n.º 10 da reclamação). Mas não se alcança em que medida a doutrina estabelecida em tal acórdão tem repercussão na questão que agora cumpre resolver e que é a de saber se a decisão ora recorrida aplicou o Regulamento da ATOC e se, portanto, está preenchido um dos pressupostos processuais do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional. Em terceiro lugar, alega o reclamante que a decisão recorrida, na medida em que confirmou a sentença da 1ª instância e não admitiu todo e qualquer meio de prova, pelo menos implicitamente aplicou o Regulamento cuja inconstitucionalidade foi suscitada nos autos (n.º s 11 e 12 da reclamação). Não se alcança também qual a base de sustentação de tal tese, atendendo a que – como já atrás se disse – é a própria decisão judicial recorrida a considerar ser tal Regulamento irrelevante para a apreciação da questão que tinha de apreciar, bem como a considerar que os elementos de prova fornecidos pelo ora reclamante apontavam no sentido do não preenchimento de um pressuposto fixado na lei para a sua inscrição como técnico oficial de contas. Efectivamente, diz-se nessa decisão (fls. 324 e seguintes) o seguinte:
'[...] Assim, demonstrando que o recorrente, face aos elementos de prova que forneceu, não poderia ser inscrito como técnico oficial de contas ao abrigo do artº 1º da Lei 27/98 de 3 de Junho, por não preencher um dos pressupostos vinculados para que tal pudesse ocorrer, seria, como é, irrelevante (e mostrava-se também prejudicado atento o que cumpria decidir) indagar se as normas do Regulamento que interpretou a aplicação daquela lei, subverteram o regime decorrente da Lei
27/98, concretamente por sofrerem, ou não, das inconstitucionalidades ou ilegalidades, que o recorrente lhe imputa, pois que, independentemente das normas fixadas naquele Regulamento, o seu pedido de inscrição, face ao exposto, teria sempre que ser indeferido por falta de comprovação do pressuposto fixado na lei que o regulamento pretendeu interpretar. Daí, a inverificação de nulidade da sentença, por omissão de pronúncia (cf. n.º 1, al. d. do artº 668º do CPC), como acima começou por se aludir. Concluindo-se, pois, pela não verificação de um dos pressupostos vinculados que a lei prescreve com vista à inscrição na ATOC como técnico oficial de contas, não importa indagar se foram violados os princípios constitucionais da igualdade, da boa fé, da responsabilidade das informações prestadas, da auto-vinculação e o da interpretação abusiva da Lei 27/98 ou o da restrição dos meios de prova. Efectivamente, perante a indemonstração do referido pressuposto vinculado, e nos já enunciados termos, sempre a Administração teria de indeferir a pretensão formulada ao abrigo do referido artº 1º da Lei 27/98 de 3 de Junho, por não preenchimento do requisito atinente ao exercício efectivo daquele tipo de actividade durante o período mínimo de 3 anos. No sentido que se vem propugnando poderão ver-se os recentes acórdãos do STA, de 9 de Outubro de 2001
(rec. nº 47669) e de 4 de Dezembro de 2001 (rec.47670).
[...] Face ao exposto, deve concluir-se que bem andou a sentença recorrida quando concluiu também pela improcedência do referido vicio de forma.
[...].'
Finalmente, alega o reclamante que se a lei dissesse o que diz o Regulamento, para além dos demais vícios deste, seria também inconstitucional
(n.º 13 da reclamação).
Este argumento também nada releva para a decisão da presente reclamação. Na verdade, se a lei aplicada no acórdão recorrido coincidisse com o Regulamento e fosse inconstitucional, competiria ao reclamante pedir ao Tribunal Constitucional que apreciasse a conformidade constitucional da norma dessa lei que tivesse sido aplicada na decisão recorrida, não lhe sendo permitido, à luz do que se dispõe na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, optar por requerer a apreciação do Regulamento, pela mera circunstância de, na sua perspectiva, o teor de tal Regulamento coincidir com o teor da lei.
III
4. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, indefere-se a presente reclamação, mantendo-se a decisão sumária reclamada de não conhecimento do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 3 de Julho de 2002- Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida