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Proc. nº 561/2002
2ª Secção Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam em Conferência no Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que figuram como reclamante A e como reclamado o Ministério Público, a reclamante interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que havia negado provimento ao recurso do acórdão da primeira instância que a havia condenado, em cúmulo, na pena de sete anos de prisão, pela prática de um crime de uso de documento de identificação alheio, de um crime de falsificação de documento e de um crime de burla qualificada. Nas respectivas alegações afirmou o seguinte:
'As normas constantes dos artigos 432.º, alínea b), e artigo 400.º, alínea f), padecem de inconstitucionalidade material, na medida em que através dos mesmos, se viola o princípio do duplo grau de recurso. Com efeito, as referidas normas não permitem que o recurso possa ser interposto para o Tribunal da Relação e posteriormente para o Supremo Tribunal de Justiça, violando por isso o princípio constitucional do duplo grau de recurso. Ora, o direito de defesa do arguido, consagrado no artigo 32°, n.º 1, da Constituição da República, impõe a existência de duplo grau de jurisdição. Com efeito, o legislador no que diz respeito à regulação da faculdade de recorrer e a recorribilidade de decisões de arguidos condenados não tem a liberdade nem a margem de manobra que tem em decisões doutro âmbito. Na realidade, apenas aos arguidos condenados em processo penal é insofismavelmente reconhecida garantia de recurso para outra instância. Tal garantia implica a existência de dois patamares de recurso.' O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 12 de Dezembro de 2001, considerou o seguinte: Se bem percebemos, a recorrente não põe aqui em causa o sistema de recursos no tocante ao duplo grau de jurisdição em matéria de facto, mas a possibilidade de duplo grau de recurso para a Relação e Supremo. Mas se é assim, a admissão e discussão do presente recurso constitui o desmentido de qualquer não aplicação de normas, ainda que supostamente inconstitucional. Como bem observa o Ministério Público na 1.ª Instância 'sendo o presente recurso interposto para esse STJ, não vislumbramos como é possível vir a recorrente arguir a inconstitucionalidade dos arts. 432°, al. b) e 400°, al. f) do CPP, normas essas que não foram sequer aplicadas por este Tribunal'. Em consequência, o Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso.
2. Requerida a aclaração do acórdão de 12 de Dezembro de 2001 e arguida a sua nulidade, A interpôs recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, nº
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade
à Constituição das normas dos artigos 432º, alínea b), e 400º do Código de Processo Penal, considerando inconstitucionais tais normas, 'na medida em que através das mesmas, se viola o princípio do duplo grau de jurisdição, no que à matéria de facto diz respeito (...)'. O recurso de constitucionalidade não foi admitido por despacho de 22 de Junho de
2002. Nesse despacho, depois de se proceder à citação da parte do acórdão de 12 de Dezembro de 2001 transcrita supra, afirmou-se o seguinte: Deste modo, não se está perante qualquer subjacente aplicação de normas
(consideradas inconstitucionais pela recorrente). Existiu duplo grau de recurso, tal como entendido pela recorrente. Por isso, é extemporâneo o alargamento que agora se pretende fazer da invocação de constitucionalidade levantada junto deste Supremo Tribunal. E sendo assim, mostra-se manifestamente infundado o recurso, tendo em conta o disposto nos artigos 70°, n.º 1, alínea b), 72°, n.º 2, e n.º 2 do artigo 76º, in fine, todos da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (e alterações subsequentes), inserindo-se na linha de expedientes dilatórios em que a recorrente parece insistir .
3. A. vem agora reclamar do despacho de 22 de Junho de 2002, nos termos dos artigos 76º, nº 1, e 77º, da Lei do Tribunal Constitucional, afirmando o seguinte:
1. A reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional invocando a inconstitucionalidade das normas dos artigos 432.º, alínea b), e 400.º, alínea f) do Código do Processo Penal, na medida em que através das mesmas se viola o princípio do duplo grau de jurisdição, no que à matéria de facto diz respeito, princípio este imposto pelo direito à defesa do arguido, consagrado no artigo
32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
2. A questão da inconstitucionalidade das normas legais anteriormente referidas, foi suscitada nas peças processuais de recurso, nomeadamente, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa e para o Supremo Tribunal de Justiça;
3. Sucede que, alegando um pretenso 'alargamento' da questão da inconstitucionalidade in iure, o Exmo Senhor Juiz Conselheiro-Relator do Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o recurso interposto, por entender '... manifestamente infundado o recurso...';
4. Ora, antes de mais, não se trata de qualquer 'alargamento' da constitucionalidade levantada junto do Supremo Tribunal de Justiça;
5. Com efeito, e independentemente de o Supremo Tribunal de Justiça ter reconduzido a questão levantada em recurso para aquele tribunal no que à inconstitucionalidade das normas dos art.ºs 432.º, alínea b), e 400.º, alínea f), do C.P.P diz respeito, simplesmente à questão da possibilidade de duplo recurso para a Relação e Supremo, a questão nunca foi essa, esvaziando inclusivamente de sentido toda a questão!!!;
6. Efectivamente, sempre que a ora reclamante pediu a apreciação da constitucionalidade das normas sub judice, arguindo inconstitucionalidade material fê-lo, ainda que nem sempre ipsis verbis, atendendo ao facto de caber à Relação apreciar os recursos em que se invoquem os vícios referidos no artigo
410.º, n.º 2 e 3, independentemente de serem bem ou mal invocados, dado que o Supremo Tribunal de Justiça deles não pode conhecer quando tenham por objecto acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo;
7. Na realidade o sistema que resulta da interligação, na sua mais recente redacção, dos art.ºs 432.º, alínea b) e 400.º, alínea f), todos do C.P.P., salvo melhor opinião, sofrem de inconstitucionalidade porque não permitem um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, não satisfazendo, assim, o imperativo constitucional a que alude o artigo 32°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;
8. Esta sempre foi a questão que a ora requerente pretendeu ver apreciada, e que se reconduz à já muito 'discutida' questão jurídica de saber se o artigo
32.º da Constituição da República Portuguesa impõe ou não o duplo grau de jurisdição, já que com o actual sistema o duplo grau de recurso se encontra garantido;
9. Aliás, nas próprias alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça se refere claramente '... Ora, o direito de defesa do arguido, consagrado no art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República, impõe a existência de duplo grau de jurisdição', requerendo-se, desde já, que a peça de recurso ora referida acompanhe a presente reclamação;
10. Desta forma, ainda que a ora reclamante compreenda que possa não ter sido suficientemente clara na sua exposição, nunca se poderá dizer que a questão da inconstitucionalidade não foi suscitada com a amplitude que se requer .
11. Assim, e salvo melhor opinião, é inegável que a ora reclamante suscitou durante o processo e de forma adequada a questão da inconstitucionalidade das normas em apreço.
O Ministério Público emitiu o seguinte parecer: A presente reclamação é manifestamente improcedente.
É, aliás, dificilmente inteligível a questão de constitucionalidade delineada pela reclamante: esta pretende questionar a conformidade ao princípio constitucional das garantias de defesa de normas limitativas da possibilidade de recurso até ao Supremo – num caso em que os recursos interpostos pela arguida da decisão condenatória proferida em 1ª instância foram efectivamente apreciados e julgados, quer pela Relação, quer pelo próprio Supremo. Tal implica, em última análise, que tais normas não foram sequer aplicadas pelo acórdão recorrido, já que neste se valorou inteiramente a impugnação deduzida pela recorrente, que viu ser efectivamente exercido um duplo grau de jurisdição
– nos planos fáctico e jurídico – quanto à condenação que lhe foi imposta.
Cumpre apreciar.
4. A reclamante, no recurso interposto perante o Supremo Tribunal de Justiça, suscitou a inconstitucionalidade das normas dos artigos 432º, alínea b), e 400º, alínea f), do Código de Processo Penal, na medida em que tais 'normas não permitem que o recurso possa ser interposto para o Tribunal da Relação e posteriormente para o Supremo Tribunal de Justiça'. Ora, a reclamante interpôs recurso do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso que foi admitido. Nessa medida, a norma impugnada não foi aplicada pela decisão recorrida, como de resto foi expressamente sublinhado pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido (cfr. supra nº 1). Sendo o presente recurso interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, o seu objecto só pode ser constituído por normas aplicadas pela decisão recorrida, pois se assim não acontecer o juízo que o Tribunal Constitucional vier a formular não terá a virtualidade de alterar a decisão recorrida, sendo nessa medida inútil. Desse modo, o Tribunal Constitucional não poderá tomar conhecimento da conformidade à Constituição da dimensão normativa apontada.
5. No requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade a recorrente indicou as normas dos artigos 432º, alínea b), e 400º, alínea f), do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso da matéria de facto para o Supremo Tribunal de Justiça. Porém, tal dimensão normativa não foi questionada na perspectiva da constitucionalidade durante o processo (sendo certo que o podia ter sido, uma vez que não se pode considerar inesperada ou imprevisível a limitação dos poderes cognitivos do Supremo Tribunal de Justiça ao âmbito do recurso de revista alargada previsto no artigo 410º, nºs 2 e 3 – cfr. artigo 434º do Código de Processo Penal).
6. A referência a um duplo grau de recurso em matéria penal, por si só, não pode ser interpretada como uma alusão a duplo grau de recurso em matéria de facto. Na verdade, antes da Revisão do Código de Processo Penal operada pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, a doutrina punha em causa, autonomamente, tanto a pretensa inexistência de duplo grau de jurisdição em matéria de facto – isto é, de um grau de recurso com competência plena em matéria de facto, dado o âmbito limitado do recurso de revista alargado consagrado no artigo 410º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Penal – como a efectiva inexistência, em todos os casos, de um duplo grau de recurso – por vezes criticamente confrontada com a previsão desse duplo grau de recurso no Processo Civil (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 1994, pp. 303 e ss.). A revisão do Código de Processo Penal anteriormente mencionada veio consagrar de modo mais amplo o recurso relativo à matéria de facto perante as Relações (cfr. o artigo 428º), bem como o duplo grau de recurso em alguns casos [cfr. o artigo
432º, alínea b)]. E foi precisamente ao abrigo desta última norma que o recorrente pôde recorrer, em segunda instância, da Relação para o Supremo, depois de ter interposto um primeiro recurso da decisão condenatória para a Relação. Por conseguinte, o que está em causa não é uma falta de clareza na delimitação do recurso, mas sim a colocação sucessiva de dois problemas de constitucionalidade: o primeiro não pode ser conhecido por este Tribunal por não corresponder à efectiva aplicação de normas cuja inconstitucionalidade tenha sido arguida (inexistência de duplo grau de recurso); o segundo tão-pouco pode ser conhecido porque não foi previamente suscitado pela recorrente (inexistência de duplo grau de recurso quanto
à matéria de facto). Assim, a referência à falta de duplo grau de recurso não pode ser entendida como alusão à ausência de duplo grau de recurso em matéria de facto e a menção da falta de duplo grau de jurisdição, que a reclamante fez nas alegações de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, significa só a ausência pura e simples de direito ao recurso, independentemente do respectivo âmbito, numa só instância. Desse modo, não pode o Tribunal Constitucional apreciar tal questão [cf. artigo
70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional].
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs. Lisboa,21 de Agosto de 2002- Maria Fernanda Palma Bravo Serra Luís Nunes de Almeida