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Proc. nº 126/02
3ª Secção Relator: Cons. Sousa e Brito
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. J... (ora recorrente) interpôs no Supremo Tribunal Administrativo recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário de Estado da Administração Interna (ora recorrido), que lhe aplicou a pena disciplinar de multa prevista no art. 11º, nº 1, al. b), com referência ao art. 23º, nºs 1 e 2 al. e), ambos do Estatuto Disciplinar, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, e determinou a cessação da comissão de serviço que exercia como Director do Quadro de Pessoal Dirigente da Direcção Geral de Viação.
2. Na pendência do recurso, o relator do processo no Supremo Tribunal Administrativo proferiu o seguinte despacho:
'Considerando que a infracção disciplinar imputada ao recorrente no processo disciplinar em que é arguido, cujo acto sancionatório é objecto do presente recurso contencioso, deve considerar-se amnistiada pela Lei nº 29/99, de 12/5, entendo que deverá ser declarada extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide (art.s 7º, al.c) e 10º da Lei nº 29/99)'.
3. Inconformado com este despacho o recorrente veio aos autos para dele
'reclamar para a Conferência'. Sustentou, em suma, que aquele entendimento não poderia proceder, pois foi sancionado com duas penas, sendo que só a multa (e não a cessação da comissão de serviço que exercia como Director do Quadro de Pessoal Dirigente da Direcção Geral de Viação) se poderia considerar amnistiada.
4. Por acórdão de 20 de Janeiro de 2000, a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo, reunida em Conferência, decidiu julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
5. Novamente inconformado o arguido recorreu para o Pleno da Secção daquele Tribunal. A concluir a sua alegação disse, designadamente, o seguinte:
'(...)
6ª - Resultam também violadas pelo acórdão recorrido, as disposições constantes dos nºs 1 e 2 do art. 202º da Constituição da República Portuguesa, dado o mesmo colidir com o dever dos tribunais em administrar justiça e a assegurar a defesa dos direitos do ora recorrente.
(...)'.
6. O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 5 de Julho de 2001, decidiu negar provimento ao recurso.
7. Foi desta decisão que foi interposto - já depois de não admitido um recurso para o Pleno da Secção, com fundamento em oposição de julgados -, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC, o presente recurso, para apreciação da constitucionalidade da norma contida 'no artigo 10º da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, se interpretada no sentido de que, relativamente aos efeitos já produzidos, constitui condição de apreciação de recurso de anulação de sanção disciplinar que se encontre pendente à data da entrada em vigor daquela Lei e se reporte a factos anteriores a 25 de Março de 1999, o requerimento, no prazo de dez dias a contar da entrada em vigor da Lei, de que a amnistia não seja aplicada', por violação do disposto nos artigos 20º, nºs 1 e 4, 202º, nºs 1 e 2 e 268º, nº 4, todos da Constituição.
8. Na sequência, foi proferida pelo Relator do processo neste Tribunal, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão sumária no sentido do não conhecimento do recurso (fls. 247 a 250). É o seguinte, na parte decisória, o seu teor: Admitido o recurso no Supremo Tribunal Administrativo, cumpre, antes de mais, decidir se pode conhecer-se do seu objecto, uma vez que a decisão que o admitiu não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. artigo 76º, nº 3, da LTC). O recurso previsto na al. b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional pressupõe, além do mais, que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade de determinada norma jurídica - ou de uma sua dimensão normativa - e que, não obstante, a decisão recorrida a tenha aplicado no julgamento do caso. Importa, pois, começar por averiguar se o recorrente suscitou, durante o processo, a questão da constitucionalidade da norma contida 'no artigo 10º da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, se interpretada no sentido de que, relativamente aos efeitos já produzidos, constitui condição de apreciação de recurso de anulação de sanção disciplinar que se encontre pendente à data da entrada em vigor daquela Lei e se reporte a factos anteriores a 25 de Março de 1999, o requerimento, no prazo de dez dias a contar da entrada em vigor da Lei, de que a amnistia não seja aplicada'. Ora, como vai ver-se, é manifesto que não o fez. Se atentarmos no teor das alegações do recurso interposto para o Pleno da Secção do Supremo Tribunal Administrativo, designadamente na sua conclusão 6ª, para que o recorrente remete no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, verificamos que aí não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa (i.e., reportada a uma norma), limitando-se o recorrente a imputar à própria decisão do Supremo Tribunal Administrativo - e não a normas que esta tenha aplicado - a violação do disposto no artigo 202º da Constituição. Para o demonstrar basta recordar o teor daquela conclusão 6ª. Aí se refere:
'(...) Resultam também violadas pelo acórdão recorrido, as disposições constantes dos nºs 1 e 2 do art. 202º da Constituição da República Portuguesa, dado o mesmo colidir com o dever dos tribunais em administrar justiça e a assegurar a defesa dos direitos do ora recorrente.
(...)'. (Sublinhado nosso). Ora, como resulta expressamente do disposto nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, e tem sido por inúmeras vezes repetido por este Tribunal (cfr., a título meramente exemplificativo, o acórdão nº 20/96, in Diário da República, II série, de 16 de Maio de 1996), o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade tem por objecto a apreciação da constitucionalidade de normas jurídicas cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo e não das decisões judiciais que as apliquem. Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, torna-se evidente que não pode conhecer-se do objecto do presente recurso, já que o recorrente não suscitou, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa em termos de permitir o recurso para o Tribunal Constitucional a que se refere a alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC'.
9. Inconformado com esta decisão o recorrente apresentou, ao abrigo do disposto no art. 78º-A, nº 3 da LTC, a presente reclamação para a Conferência, em que conclui da seguinte forma:
'A. O Tribunal Constitucional está adstrito à garantia de tutela jurisdicional efectiva, cabendo-lhe, na sua área de jurisdição, garantir os cidadãos contra o desrespeito pelas normas e princípios constitucionais que se produzam por via de decisões que apliquem normas inconstitucionais ou façam interpretação de normas constantes em legislação ordinária que violem normas ou princípios constitucionais. B. No sistema português, o recurso das decisões jurisdicionais em termos de fiscalização concreta da constitucionalidade faz-se no âmbito do contencioso subjectivo, isto é, para a tutela de direitos ou situações jurídicas subjectivas sobre que recaem as decisões recorridas. C. Daí que se justifique que, embora incorrectamente, nos tribunais judiciais ou nos administrativos, as partes se refiram, por vezes, à inconstitucionalidade das decisões e não das normas que lhes serviram de fundamento. D. Tal não exime os tribunais de recurso de conhecer da inconstitucionalidade das normas que fundamentaram as decisões sob recurso e não deve servir de fundamento ao não conhecimento de recurso no Tribunal Constitucional. E. No caso sub judice, o recorrente alegou que o acórdão da 1ª Secção do STA violou as disposições conjugadas do art. 10º, nº 1, da Lei nº 29/99 e do art.
48º da LPTA, pugnando pela aplicação desta disposição legal em detrimento da primeira. F. Alegou ainda que, ao não fazer tal aplicação, o acórdão violou as disposições constantes dos nºs 1 e 2 do art. 202º da Constituição da República. G. Tal implicava necessariamente dizer que, ao aplicar o art. 10º, nº 1, da Lei nº 29/99, o Tribunal violava aquelas disposições constitucionais, ou que o art.
10º, nº 1, da Lei nº 29/99, na acepção em que o Tribunal o aplicou, era inconstitucional. H. O acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do STA entendeu perfeitamente a arguição de inconstitucionalidade e pronunciou-se sobre ela. I. Inexiste pois fundamento para a não admissão do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, pelo que o recurso deve ser admitido'.
10. Notificado para responder a esta reclamação, disse a reclamado, a concluir:
'I. O Tribunal Constitucional, por força do art. 280º da Constituição da República Portuguesa e do art. 70º da LTC, apenas tem competência para apreciar a inconstitucionalidade de normas e não das decisões judiciais ou de procedimentos seguidos por um tribunal em si mesmo considerados. II. O recorrente, ao longo do processo, não suscitou a inconstitucionalidade de qualquer norma, limitando-se a considerar, expressa e objectivamente, inconstitucional o aresto recorrido. III. Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve manter-se o despacho do Exmº Conselheiro Relator que, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional, decidiu não tomar conhecimento do recurso interposto para esse Venerando Tribunal, com o que se fará justiça'.
Dispensados os vistos legais, cumpre decidir.
III – Fundamentação
11. Na decisão sumária reclamada decidiu o Relator não conhecer do objecto do recurso por o recorrente nunca ter, durante o processo, suscitado qualquer questão de inconstitucionalidade normativa - i.e., reportada a uma norma -, limitando-se a imputar à própria decisão recorrida a violação do disposto no artigo 202º da Constituição.
Na reclamação desta decisão refere o reclamante, em primeiro lugar, que o facto de as partes se referirem por vezes - embora incorrectamente, como admite - à inconstitucionalidade das decisões judiciais e não das normas que lhe serviram de fundamento (conclusão C.), 'não deve servir de fundamento ao não conhecimento do recurso pelo Tribunal Constitucional' (conclusão D.). A verdade, porém, é que não lhe assiste razão. A imputação, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade à decisão judicial, e não a normas que esta tenha aplicado, impede, efectivamente, que o Tribunal Constitucional possa conhecer do objecto do recurso. Quer porque, como resulta claramente do disposto no artigo 280º da Constituição, e tem sido por inúmeras vezes afirmado por este Tribunal, a nossa Constituição não atribui ao Tribunal Constitucional competência para apreciar a constitucionalidade de decisões judiciais (não instituiu o chamado «recurso de amparo», tal como ele vem configurado nalgumas constituições estrangeiras), mas apenas o incumbiu, em sede de fiscalização concreta, de apreciar a inconstitucionalidade de normas jurídicas, quer porque, ao limitar-se a imputar a inconstitucionalidade à decisão e nunca a normas que aquela aplicou, o recorrente terá certamente deixado de cumprir – como, efectivamente, aconteceu no caso concreto – um pressuposto indispensável de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da LTC; a saber: ter o recorrente suscitado, durante o processo, a inconstitucionalidade das norma jurídicas cuja constitucionalidade pretende ver apreciada. Refere ainda o recorrente que 'ao alegar que, ao não fazer tal aplicação [do art. 48º da LPTA], o acórdão violou as disposições constantes dos nºs 1 e 2 do art. 202º da Constituição, tal implicava necessariamente dizer que, ao aplicar o art. 10.1, da Lei 29/99, o Tribunal violava aquelas disposições constitucionais, ou que o art. 10.1 da Lei nº 29/99, na acepção em que o Tribunal o aplicou, era inconstitucional' (conclusões F. e G.). Mais uma vez, porém, sem razão. Ao contrário do que pretende o recorrente, dizer que, ao não aplicar o artigo 48º da LPTA, o acórdão é inconstitucional, não implica logicamente dizer que é inconstitucional uma determinada interpretação normativa do artigo 10º, nº 1 da Lei nº 29/99, mas, quando muito, dizer que é inconstitucional o próprio artigo 48º da LPTA, na interpretação que o torna inaplicável à situação que é objecto dos autos. Ora, como o Tribunal tem dito repetidamente (nesse sentido, designadamente, o acórdão nº 198/88, publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Março de
1989, citado pelo ora reclamado) 'Ao suscitar-se a questão de constitucionalidade há-de deixar-se claro qual o preceito legal cuja constitucionalidade se questiona ou, no caso de se questionar certa interpretação de um norma, qual o sentido e a dimensão normativa do preceito que se tem por violador da Lei Fundamental'. E a questão não é, evidentemente, uma questão do uso das palavras, mas, como se escreveu recentemente no acórdão nº 170/02 (ainda inédito) 'de uma perceptível, em termos objectivos, delimitação de ideias'. Quando o Tribunal Constitucional considera que não foi suscitada adequadamente, durante o processo, uma questão de constitucionalidade normativa, não o faz decisivamente por força da ineptidão das palavras, mas pela impossibilidade de extrair do conjunto da argumentação do recorrente, com objectividade, a questão de constitucionalidade que foi suscitada durante o processo. Alega o recorrente, finalmente, que o acórdão recorrido 'entendeu perfeitamente a arguição de inconstitucionalidade e se pronunciou sobre ela' (conclusão H.). Mas não é verdade. É certo que nos dois últimos parágrafos de fls. 196, o acórdão recorrido se refere a uma questão de inconstitucionalidade, mas a uma questão de inconstitucionalidade substancialmente diferente da que vem colocada pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso – provavelmente porque, uma vez que a questão não foi colocada de forma clara e perceptível nas alegações de recurso, ela não foi correctamente entendida pelo tribunal recorrido. Assim, enquanto que o ora reclamante pretendia ver apreciada a constitucionalidade da norma contida 'no artigo 10º da Lei nº 29/99, de 12 de Maio, se interpretada no sentido de que, relativamente aos efeitos já produzidos, constitui condição de apreciação de recurso de anulação de sanção disciplinar que se encontre pendente à data da entrada em vigor daquela Lei e se reporte a factos anteriores a 25 de Março de 1999, o requerimento, no prazo de dez dias a contar da entrada em vigor da Lei, de que a amnistia não seja aplicada', a decisão recorrida pronunciou-se sobre a constitucionalidade de uma
(hipotética) norma que em absoluto retirasse aos particulares a possibilidade de renunciar à aplicação da amnistia ao seu caso. Por tudo o exposto, não pode efectivamente conhecer-se do objecto do recurso que o recorrente pretendeu interpor, havendo por isso que indeferir a presente reclamação. III - Decisão Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 unidades de conta Lisboa, 21 de Junho de 2002- José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Luís Nunes de Almeida