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Processo nº 580/98 Plenário Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, no Plenário do Tribunal Constitucional:
1. O Procurador-Geral da República veio requerer ao Tribunal Constitucional, nos termos do disposto na al. a) do nº 1 do artigo 281º da Constituição, a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes da parte final do n° 1 e do n° 2 do artigo 8º, dos artigos 10°, 11°, dos n°s 2 e 3 do artigo 16°, da parte final da alínea b) do artigo 18° e do n° 1 do artigo 34° do Decreto-Lei n° 205/97, de 12 de Agosto
(Regulamenta o estatuto legal do Defensor do Contribuinte, criado pelo artigo
27º do Decreto-Lei nº 158/96, de 3 de Setembro – Lei Orgânica do Ministério das Finanças).
Como fundamento, o Procurador-Geral da República diz que se lhe afigura «que – ao regular no Decreto-Lei n° 205/97 o Estatuto Jurídico do Defensor do Contribuinte – o legislador não terá tido em conta, por um lado, a circunstância de o órgão em causa ter natureza estritamente administrativa e fazer parte, afinal, da estrutura orgânica do Ministério das Finanças; e, por outro lado, tratar-se de diploma legal editado pelo Governo no exercício da sua competência legislativa própria, visando desenvolver o Decreto-Lei que contém a Lei Orgânica do Ministério das Finanças, acabando por invadir áreas inseridas no
âmbito da competência legislativa da Assembleia da República».
Assim, sempre segundo o requerente, padecem do vício de inconstitucionalidade:
– As normas constantes da parte final do n° 1 e do n° 2 do artigo
8°, ao prescreverem a cessação do mandato do Defensor do Contribuinte «em caso de condenação pela prática de qualquer crime» e ao estabelecerem que «a pronúncia do Defensor do Contribuinte pela prática de qualquer crime suspende o exercício das suas funções», porquanto se trata de matéria respeitante ao direito penal (penas acessórias e efeitos das penas) e ao processo penal
(medidas cautelares e de coacção), da competência legislativa reservada da Assembleia da República, nos termos do artigo 168°, n° 1, alínea c) – actual artigo 165°, n° 1, alínea c); o decreto-lei em causa não podia, portanto, alterar o regime constante, nomeadamente, do artigo 66° do Código Penal e do artigo 199° do Código de Processo Penal;
– A norma constante do artigo 10º, ao estabelecer, como «imunidades» do Defensor do Contribuinte, que este «não responde civil e criminalmente pelas recomendações ou pareceres que emita nem por quaisquer actos que pratique no
âmbito das suas funções», pois que, versando em termos inovatórios sobre matéria inserida na competência legislativa da Assembleia da República, nos termos do disposto nos artigos 22° e 165°, n° 1, alíneas c) e s) da Constituição (na sua versão actual), não pode constar de decreto-lei não autorizado;
– A norma constante do artigo 11°, ao criar um regime específico de
«incompatibilidades» para o Defensor do Contribuinte, que deve ser considerado como um titular de um «alto cargo público», já que se está perante «o membro em regime de permanência e a tempo inteiro de entidade pública independente prevista na lei», equiparado, aliás, a director-geral (artigo 14° do mesmo Decreto-Lei); assim, em seu entender, está abrangido pelo regime de incompatibilidades definido pela Lei n° 64/93, de 26 de Agosto, com as alterações introduzidas pela Lei n° 39-B/94, de 27 de Dezembro, e pela Lei nº
12/96, de 18 de Abril. Não é possível, portanto, que uma norma constante de decreto-lei não parlamentarmente credenciado inove nesta matéria;
– A norma constante do n° 3 do artigo 16°, ao prescrever que o
«incumprimento do dever de colaboração constitui desobediência qualificada, com as inerentes consequências penais e disciplinares para os infractores», já que a definição dos tipos criminais é matéria situada no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República;
– As normas constantes do nº 2 do artigo 16º e da parte final da alínea b) do artigo 18º, ao estabelecerem que não é oponível ao Defensor do Contribuinte nem aos respectivos serviços o sigilo fiscal e que o Defensor do Contribuinte pode proceder a diligências relacionadas com factos, documentos e informações protegidos pelo sigilo fiscal, porquanto tal matéria, relacionada com os direitos fundamentais e as garantias dos contribuintes, se situa no
âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República;
– A norma constante do artigo 34°, n° 1, ao preceituar que, «salvo quanto ao exercício das suas competências no âmbito da gestão do seu pessoal de apoio, os actos praticados pelo Defensor do Contribuinte no exercício dos seus poderes são insusceptíveis de recurso contencioso». Por um lado, porque tal norma contraria a garantia da tutela jurisdicional efectiva constante do n° 4 do artigo 268° da Constituição da República Portuguesa, não podendo ser excluída do seu âmbito, por exemplo, a hipótese de o Defensor do Contribuinte extravasar os seus poderes legais e praticar um acto susceptível de lesar um direito ou interesse legalmente protegido; por outro lado, porque a admissibilidade de recurso contencioso dos actos e decisões do Defensor do Contribuinte há-de resultar do regime constitucional e legal em vigor, não sendo admissível que um decreto-lei, não credenciado por autorização parlamentar, a defina.
2. Notificado para responder, o Primeiro-Ministro veio sustentar a não inconstitucionalidade de qualquer das normas impugnadas pelo requerente, apresentando, em síntese, os seguintes fundamentos:
–O Defensor do Contribuinte é um dos órgãos de apoio do Ministro das Finanças. Cabe-lhe zelar pelo respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos contribuintes, devendo, para tanto, formular sugestões, propostas e recomendações à Administração Fiscal (artigos 6° e 27° do Decreto-Lei n° 158/96, de 3 de Setembro – Lei Orgânica do Ministério das Finanças);
– As normas constantes da parte final do n° 1 e do n° 2 do artigo
8°, ao determinarem a cessação do mandato do Defensor do Contribuinte «em caso da condenação pela prática de qualquer crime» e que «a pronúncia do Defensor do Contribuinte pela prática de qualquer crime suspende o exercício das suas funções», não criam nenhuma pena acessória, nem dispõem sobre efeitos das penas, limitando-se a regular a duração e a suspensão do referido mandato, em termos, aliás, plenamente justificados. Ora, se o Governo tem competência para fixar os critérios de nomeação, há-de tê-la igualmente para definir os que presidem à respectiva cessação;
– A norma constante do artigo 10° é puramente tautológica, destinado-se, apenas a realçar, por um lado, a independência do Defensor do Contribuinte na formulação dos seus juízos, e, por outro, o carácter interno e de parecer dos respectivos actos. Com efeito, esta norma tem que ser interpretada tendo em conta a natureza, as atribuições e a competência do Defensor do Contribuinte, onde não cabe « revogar, modificar, substituir, anular e declarar a nulidade ou a inexistência de quaisquer actos tributários ou actos internos da Administração Tributária». Traduzindo-se, apenas, em recomendações ou pareceres não vinculativos dirigidos à Administração Pública, não podem os seus actos provocar a lesão de direitos, não assim fazendo sentido falar em responsabilidade civil ou criminal deles decorrente;
– A norma do artigo 11° apenas veio alargar o elenco das incompatibilidades constante da Lei nº 64/93, com as alterações resultantes da Lei nº 39-B/94 e da Lei n° 12/96, v. g., ao exercício de funções ou cargos em
órgãos de partidos políticos, associações políticas, patronais ou sindicais, de estudos políticos, sociais ou económicos. 'Ora, estamos perante matérias que não parecem fazer parte do elenco da competência exclusiva da Assembleia, pelo que, tendo esta já legislado, em geral, sobre a matéria, daí resulta que não é lícito ao Governo reduzir o núcleo das incompatibilidades, nada havendo, assim a opor, a que, por Decreto-Lei, se possa alargar, para reforço da independência dos
órgãos públicos, esse mesmo elenco'; aliás, 'com tal alargamento não se está a pôr em causa direitos, liberdades e garantias, porque a pessoa ou pessoas que venham a ser designadas para Defensor do Contribuinte sabe, previamente, qual é o estatuto de independência que lhe é exigido';
– A norma do nº 3 do artigo 16º também não pode ser considerada inconstitucional, porquanto decorre logicamente do dever de colaboração que incide sobre os funcionários e agentes da Administração Tributária e porque não define nenhum tipo criminal. O Defensor do Contribuinte insere-se na estrutura orgânica de um Ministério, o que implica, por um lado, a existência de um dever institucional de colaboração e, por outro, a natural e concomitante consequência da violação de tal dever, já que, mesmo na ausência de disposição legal, «a autoridade ou o funcionário podem estabelecer a cominação para a falta de obediência», nos termos do preceituado no artigo 348°, n°1, alínea b), do Código Penal;
– Nenhum vício de inconstitucionalidade atinge a norma do n° 2 do artigo 16º, segundo a qual os funcionários e agentes da administração tributária devem colaborar com o Defensor do Contribuinte, facultando-lhe todas as informações e documentos que lhes sejam pedidos, «mesmo quando estiverem legalmente protegidos pelo sigilo fiscal». Em primeiro lugar, não está demonstrado que o sigilo fiscal tenha a dignidade constitucional que lhe é atribuída pelo requerente, isto é, que tal sigilo se consubstancie como um direito fundamental ou garantia dos contribuintes; em segundo lugar, é necessário ter em conta que, inserindo-se o Defensor do Contribuinte no âmbito do Ministério das Finanças, as informações, documentos e factos protegidos pelo sigilo fiscal se mantêm no âmbito da Administração Pública. Acresce que o mesmo dever de sigilo obriga, quer o Defensor do Contribuinte, quer os seus serviços;
– Finalmente, também não padece de qualquer vício de inconstitucionalidade a norma do n° 1 do artigo 34°, ao estabelecer que «os actos praticados pelo Defensor do Contribuinte no exercício dos seus poderes são insusceptíveis de recurso contencioso», exceptuando aqueles que são praticados no âmbito da gestão do seu pessoal de apoio. Se, «por absurdo», o Defensor do Contribuinte «extravasar os seus poderes legais e praticar um acto susceptível de lesar um direito ou interesse legalmente protegido», tal acto não foi praticado no exercício dos seus poderes e está fora do âmbito da norma em causa, sendo, portanto, sindicável.
3. Nos termos do disposto nos nº 1 e 2 do artigo 63º e no nº 2 do artigo 39º da Lei nº 28/82, foi apresentado, discutido e aprovado por maioria, em plenário, o memorando do Vice-Presidente do Tribunal. Cumpre agora decidir.
4. As normas em causa, à data do pedido, eram do seguinte teor:
Artigo 8º Duração do mandato
1 - O mandato do Defensor do Contribuinte durará sete anos e não será renovável, podendo cessar a seu pedido, por causa natural ou em caso de condenação pela prática de qualquer crime.
2 - A pronúncia do Defensor do Contribuinte pela prática de qualquer crime suspende o exercício das suas funções.
Artigo 10º Imunidades
O Defensor do Contribuinte não responde civil e criminalmente pelas recomendações ou pareceres que emita nem por quaisquer actos que pratique no
âmbito das suas funções, de harmonia com o preceituado no presente diploma legal.
Artigo 11º Incompatibilidades
As funções de Defensor do Contribuinte são incompatíveis com:
a) O exercício de funções ou cargos em órgãos de partidos políticos, associações políticas, associações patronais ou sindicais, associações de representação e defesa de classes profissionais, associações de estudos políticos, sociais ou económicos e de confederações, federações ou uniões dessas associações;
b) O exercício de funções na Administração Pública;
c) A prestação de quaisquer serviços à Administração Pública;
d) O exercício da advocacia ou da consultoria fiscal;
e) O exercício da actividade de técnico de contas ou de revisor oficial de contas;
f) O exercício de funções em órgãos de administração, gerência ou fiscalização de sociedades e outras pessoas colectivas de direito privado e, bem assim, em mesas de assembleias gerais dessas sociedades;
g) O exercício das funções de magistrado do Ministério Público, de magistrado judicial ou de representante da Fazenda Nacional junto de qualquer tribunal.
Artigo 16º Dever de colaboração
1 – (...)
2 - O dever de colaboração obriga à prestação de informações e à entrega de documentos solicitados pelo Defensor do Contribuinte mesmo quando estiverem legalmente protegidos pelo sigilo fiscal, independentemente da fase em que se encontrem os processos a que o caso diga respeito;
3 - O incumprimento do dever de colaboração constitui desobediência qualificada, com as inerentes consequências penais e disciplinares para os infractores.
Artigo 18º Competência
No âmbito das suas atribuições, o Defensor do Contribuinte tem competência para: a. (...) b. Proceder a investigações e inquéritos que considere convenientes para a tomada das suas decisões, podendo adoptar, em matéria de recolha e de tratamento de prova, os procedimentos razoáveis que entenda, desde que não colida com direitos e garantias legalmente tutelados, ainda que tais diligências se relacionem com factos, documentos e informações protegidos pelo sigilo fiscal; c. (...)
d) (...)
Artigo 34º Irrecorribilidade dos actos do Defensor do Contribuinte
1 - Salvo quanto ao exercício das suas competências no âmbito da gestão do seu pessoal de apoio, os actos praticados pelo Defensor do Contribuinte no exercício dos seus poderes são insusceptíveis de recurso contencioso, deles cabendo apenas reclamação para o próprio Defensor do Contribuinte.
2 – (...)
Já depois de ter dado entrada no Tribunal Constitucional este pedido de fiscalização abstracta, foram alterados, no que agora releva, os artigos 34º e 35º do Decreto-Lei n° 205/97, pelo artigo 58º da Lei n° 87-B/98, de 31 de Dezembro (Orçamento do Estado para 1999).
Em consequência desta alteração, o regime anteriormente constante do nº 1 do artigo 34º passou a figurar em dois preceitos, os (novos) artigos 34º e
35º:
Artigo 34º Recurso contencioso
Das decisões do Defensor do Contribuinte praticadas no âmbito da sua competência de gestão do seu pessoal de apoio cabe recurso contencioso nos termos gerais.
Artigo 35° Irrecorribilidade dos actos do Defensor do Contribuinte
Salvo o disposto no artigo 34°, os actos praticados pelo Defensor do Contribuinte no exercício das suas competências não são susceptíveis de recurso contencioso, podendo apenas ser objecto de reclamação para o próprio Defensor.
5. Coloca-se, assim, a questão prévia do conhecimento do pedido, no que respeita à norma do nº 1 do artigo 34º.
Ora verifica-se que o novo artigo 34º corresponde à excepção que constava da primeira parte do antigo 34º, nº 1 – ou seja, à parte que não fora questionada pelo requerente no presente processo – e que o novo artigo 35º corresponde à parte do antigo artigo 34º, nº 1, cuja declaração de inconstitucionalidade fora requerida; e que, para além da autonomização em novo preceito, há uma alteração de redacção.
Assim, onde anteriormente se falava em «actos praticados [...] no exercício dos seus poderes», fala-se agora em «actos praticados [...] no exercício das suas competências»; e onde anteriormente se dizia que «são insusceptíveis» passou a dizer-se que «não são susceptíveis». Se esta última modificação parece carecer absolutamente de qualquer relevo, já se afigura discutível, quanto à primeira, que se possa afirmar com segurança que entre as duas expressões, do ponto de vista jurídico, exista uma completa sinonímia.
Relativamente significativa pode também revelar-se, de um ponto de vista sistemático, a eliminação do nº 2 do antigo artigo 34º, que excluía o recurso hierárquico para o Ministro das Finanças dos actos praticados pelo Defensor do Contribuinte, seja qual for o sentido que se lhe deva conferir.
De acordo com a jurisprudência deste Tribunal, carece manifestamente de interesse jurídico relevante a apreciação da norma questionada na sua primitiva formulação. É que, embora a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de normas revogadas se possa revestir de utilidade em certas circunstâncias, no caso vertente tal não acontece. Com efeito, ainda que o Tribunal viesse a pronunciar-se no sentido da inconstitucionalidade, a correspondente declaração só se projectaria sobre actos anteriores à entrada em vigor da nova redacção, sendo certo que, relativamente a eles, ou já caducou o direito ao recurso contencioso, ou tal recurso foi tempestivamente interposto e a questão se encontra ainda pendente, sendo então suficientes os meios ordinários, maxime o da fiscalização concreta da constitucionalidade (sobre o não conhecimento do pedido por falta de interesse jurídico relevante, cfr., por
último, o Acórdão nº 32/02, Diário da República, II Série, de 18 de Fevereiro de
2002).
Mas também não é possível conhecer do pedido, referindo-o à nova redacção – ou seja, ao novo artigo 35º.
Com efeito, o Tribunal Constitucional tem rejeitado a possibilidade de apreciar a constitucionalidade de uma norma de conteúdo idêntico à que constituía objecto do pedido, entretanto revogada pelo diploma donde consta a nova norma (cfr., por exemplo, os acórdãos nºs 31/99, Acórdãos do Tribunal Constitucional , 42º vol., pág. 7 e segs. e 376/01, Diário da República, II Série, de 19 de Outubro de 2001). E ao mesmo resultado tem chegado quando, como agora sucede, se trata antes de uma nova redacção resultante de modificações introduzidas ao próprio diploma em que se inseria a norma impugnada, nomeadamente quando 'as alterações, substanciais ou não, conduzem a que as normas passem a constar de outro preceito legal', por entender que 'o não conhecimento da questão de inconstitucionalidade das normas (...) na sua versão actual é justificado pela necessidade de observância do princípio do pedido
(cfr. o artigo 51º, nºs 1 e 5 , da Lei do Tribunal Constitucional' (Acórdão nº
57/95 Acórdãos do Tribunal Constitucional, 26º vol., pág. 95 e segs., aprovado, todavia, com votos de vencido).
O Tribunal Constitucional não vai, pois, conhecer do pedido, nem quanto à versão originária da parte final do nº 1 do artigo 34º, por inutilidade superveniente, nem quanto ao actual artigo 35º, nos termos do disposto no nº 5 do artigo 51º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
6. Cumpre, então, conhecer das restantes normas cuja declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, é requerida, começando pelas que constam da parte final do n° 1 e do n° 2 do artigo 8° (cessação do mandato e suspensão do exercício de funções em caso de condenação pela prática de qualquer crime e de pronúncia, respectivamente).
Mesmo que se entenda que a regulação desta matéria não se integra na reserva de competência legislativa relativa da Assembleia da República atinente a definição das penas, ainda que meramente acessórias, e dos seus efeitos, nem ao processo criminal (artigo 168º, nº 1, alínea c) da Constituição, na redacção aplicável, correspondente à alínea c) do nº 1 do actual artigo 165º), nem por isso deixam as normas em apreço de padecer de inconstitucionalidade orgânica.
Com efeito, o Defensor do Contribuinte, caracterizado no diploma em discussão como «um órgão administrativo independente», tem de ser considerado como integrando a Administração Pública; a competência do Governo para definir os contornos do seu estatuto há-de necessariamente mover-se dentro do quadro da sua competência legislativa relativamente aos funcionários e agentes da Administração.
Ora, a Lei nº 49/99, de 22 de Junho, que regula o estatuto do pessoal dirigente dos serviços e organismos da administração central do Estado – e se aplica, nos termos do seu artigo 2º, nº 2, ao pessoal que exerce cargos legalmente equiparados ao de director-geral –, não prevê nos seus artigos 19º e
20º a suspensão e cessação da comissão de serviço nos casos a que se reportam as normas em apreço.
Na verdade, a suspensão de funções como efeito da pronúncia, bem como os efeitos da condenação em processo penal estão regulados, em termos substancialmente diferentes daqueles que encontramos nessas normas, nos artigos
6º, 7º e 9º do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro, emitido ao abrigo da autorização legislativa concedida pela Lei nº 10/83, de 13 de Agosto.
Ora, nos termos do preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea v) da Constituição, na redacção aplicável, cabia na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, legislar sobre 'bases do regime e âmbito da função pública'.
Como recentemente se afirmou no acórdão nº 208/02, ainda não publicado, seguindo a orientação da jurisprudência nele referida, 'a criação de excepções ou o estabelecimento de princípios contrários em matéria de bases do regime e âmbito da função pública não podem ser consideradas como constituindo o desenvolvimento de tais bases. Isto significa necessariamente que a criação de tais excepções ou princípios contrários aos contidos nas bases da função pública consubstancia uma invasão da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, prevista no artigo 165º, nº 1, alínea t), da Constituição (...) sob pena de se abrir a porta a um esvaziamento da reserva pela via da multiplicação de regimes excepcionais'.
Nestes termos, as normas em causa sofrem de inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva contida na alínea v) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, na redacção aplicável (actual alínea t) do nº 1 do artigo 165º).
7. Ao dispor que o Defensor do Contribuinte «não responde civil e criminalmente pelas recomendações ou pareceres que emita nem por quaisquer actos que pratique no âmbito das suas funções, de harmonia com o preceituado» no diploma legal a que pertence, o artigo 10º define um regime especial de irresponsabilidade, que o subtrai às regras gerais sobre responsabilidade civil, criminal ou disciplinar dos funcionários e agentes da Administração Pública por actos praticados no exercício das respectivas funções, previstas nos artigos 22º e 271º, nº 1, da Constituição.
Ora, o (anterior) artigo 168°, nº 1, da Constituição reservava à Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, a competência para legislar sobre responsabilidade civil da Administração (alínea u)) e sobre definição dos crimes (alínea c)) – actuais alíneas s) e c) do nº 1 do artigo
165º.
Assim sendo, tem de se considerar, por um lado, que a norma em apreciação viola a reserva de competência legislativa parlamentar constante da referida alínea u) do nº 1 do artigo 168º, pois que não se pode deixar de entender que nelas se pretende abranger o desenvolvimento legislativo das prescrições constitucionais contidas nos artigos 22º e 271º da Lei Fundamental. E, por outro lado, que a norma impugnada também afronta a reserva de competência legislativa parlamentar constante da alínea c) do mesmo artigo 168º, nº 1, na medida em que a «definição dos crimes» necessariamente inclui o estabelecimento de cláusulas especiais de irresponsabilidade criminal.
Para além disso, assinale-se que se não pode aceitar a tese de que o artigo 10° é meramente tautológico ou redundante. Na verdade, não é impossível conceber hipóteses em que nas recomendações ou pareceres do Defensor do Contribuinte se produzam afirmações que, segundo as regras gerais, possam ser qualificadas como actos ilícitos, conferindo ao lesado um direito a reparação ou sendo susceptíveis de punição criminal.
8. No artigo 11º fixam-se as incompatibilidades a que se encontra sujeito o Defensor do Contribuinte.
Trata-se, no caso da alínea a), de restrições ao exercício da liberdade de associação (artigo 46º da Constituição), da liberdade de associação política (artigo 51º) e da liberdade sindical (artigo 55º), as quais envolvem necessariamente o direito de eleger e ser eleito para os órgãos das correspondentes estruturas associativas. Sem curar de saber agora se tais restrições são proporcionadas, afigura-se evidente a violação da reserva legislativa parlamentar consignada no artigo 168°, n° 1, alínea b), atinente à matéria de direitos, liberdades e garantias (actual alínea b) do nº 1 do artigo
165º).
As restantes incompatibilidades nada acrescentam ao princípio da exclusividade a que se encontram sujeitos os «equiparados» a director-geral
(cfr. artigo 23º da citada Lei nº 49/99).
Assim, conclui-se pela inconstitucionalidade da norma do artigo 11°, alínea a), por violação do preceituado no artigo 168º, nº 1, alínea b) da Constituição, na versão aplicável, correspondente à alínea b) do nº 1 do artigo
165º actual, e pela não inconstitucionalidade das normas constantes das restantes alíneas.
9. O artigo 16°, nº 3 pune como desobediência qualificada o incumprimento do dever de colaboração com o Defensor do Contribuinte a que se encontram adstritos os funcionários e agentes da administração tributária, em norma que o requerente considera manifestamente inconstitucional, pois «a definição dos tipos criminais é matéria obviamente situada no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia da República, insusceptível de ser regulada em Decreto-Lei não credenciado pela indispensável autorização parlamentar».
O crime de desobediência encontra-se definido no artigo 348° do Código Penal pela forma seguinte:
1. Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2. A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada.
A questão que agora se coloca consiste apenas em saber se, quanto ao crime de desobediência qualificada, a disposição legal a que se refere o n° 2 do artigo 348° pode ser uma norma contida em qualquer tipo de diploma legislativo ou apenas uma norma penal, o que implicaria desde logo que constasse de lei parlamentar ou de decreto-lei parlamentarmente autorizado, por força do preceituado no artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição actual, ou do artigo 168º, nº 1, c) da redacção anterior.
Ora, independentemente de saber se é ou não possível considerar que a desobediência simples se encontra tipificada no citado artigo 348º, quanto ao critério da infracção e quanto aos seus destinatários no tocante às condutas realmente proibidas, já se afigura indiscutível que a desobediência qualificada não encontra ali qualquer critério distintivo relativamente à desobediência simples, pelo que a disposição legal que «cominar a punição da desobediência qualificada» procede necessariamente, ela própria, à definição do tipo de crime.
Nesta conformidade, a disposição legal prevista no artigo 348º, nº
2, do Código Penal tem de ser uma norma penal e, consequentemente, deve constar de lei parlamentar ou de decreto-lei autorizado.
A norma constante do artigo 16°, n° 3, é, pois, organicamente inconstitucional, por violação do disposto no artigo 168º, nº 1, alínea c), na versão aplicável, correspondente à actual alínea c) do nº 1 do artigo 165º da Constituição.
10. Segundo as normas constantes dos artigo 16º, nº 2, e 18º, al. b), parte final, o Defensor do Contribuinte tem acesso a factos, documentos e informações protegidos pelo sigilo fiscal, encontrando-se os funcionários e agentes da administração tributária obrigados a prestar-lhe informações e a entregar-lhe documentos legalmente protegidos por esse sigilo.
O direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar inclui o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem. Um instrumento jurídico privilegiado de garantia deste direito é o sigilo profissional, que integra o sigilo fiscal; assim, por esta via, o sigilo fiscal assume também um carácter instrumental de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada.
Para além disso, a proibição de acesso de terceiros a dados pessoais
(artigo 35° da Constituição), implica que quem a eles tenha acesso no exercício das suas funções esteja sujeito a sigilo profissional.
Todavia, no caso vertente, não se descortina em que medida possa existir violação do sigilo fiscal, porquanto o Defensor do Contribuinte integra, ele próprio, a Administração e se encontra expressamente adstrito ao respeito do mesmo sigilo fiscal, como resulta desde a sua versão originária, do artigo 12º do diploma em causa, que estabelece, nos seus nºs 1 e 2, o seguinte:
1 - O Defensor do Contribuinte está sujeito ao dever geral de sigilo fiscal, nomeadamente quanto às informações ou documentos que: a. Cheguem ao seu conhecimento em razão do exercício das funções e que tenham sido fornecidos pelos contribuintes que a ele tenham recorrido; b. Lhe tenham sido fornecidos pelos órgãos, serviços e agentes da administração tributária; c. Tenham resultado das suas próprias diligências de inspecção e de investigação.
2 - O dever de sigilo a que se refere o número anterior é extensivo aos serviços de apoio do Defensor do Contribuinte e aos órgãos, serviços e agentes da administração tributária que colaborem nas diligências por ele efectuadas.
Acresce, porém, que a este artigo foi posteriormente adicionado um novo número – o nº 3 – do seguinte teor:
O incumprimento do dever de sigilo constitui infracção para efeitos de aplicação da correspondente sanção penal ou contra-ordenacional.
Ora, assim sendo, não parece que se possa concluir pela violação do sigilo fiscal, quando o certo é que os documentos e informações por ele abrangidos não saem do âmbito da própria Administração fiscal, sendo transmitidos apenas a órgãos e agentes que se encontram sujeitos ao mesmo dever de sigilo.
Não ocorre, pois, a invocada inconstitucionalidade da norma impugnada.
Nestes termos, decide-se: a. Não tomar conhecimento do pedido, quanto à norma constante do nº 1 do artigo 34º do Decreto-Lei nº 205/97, de 12 de Agosto (versão originária), por inutilidade superveniente; b. Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas da parte final do nº 1 e do nº 2 do artigo 8º do Decreto-Lei nº 205/97, de 12 de Agosto por violação do disposto no artigo 168º, nº1, alínea v) da Constituição, na redacção resultante da revisão de 1989; c. Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 10º do Decreto-Lei nº 205/97, de 12 de Agosto por violação do disposto no artigo 168º, nº1, alíneas c) e u) da Constituição, na redacção resultante da revisão de 1989; d. Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma da alínea a) do artigo 11° do Decreto-Lei nº 205/97, de 12 de Agosto, por violação do disposto no artigo 168º, nº1, alínea b) da Constituição, na redacção resultante da revisão de 1989; e. Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do nº 3 do artigo 16º do Decreto-Lei nº 205/97, de 12 de Agosto por violação do disposto no artigo 168º, nº1, alínea c) da Constituição, na redacção resultante da revisão de 1989; f. Não declarar a inconstitucionalidade das restantes normas impugnadas. Lisboa,12 de Junho de 2002 Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Maria Helena Brito Alberto Tavares da Costa Paulo Mota Pinto Bravo Serra Artur Maurício Maria Fernanda Palma (votei vencida quanto à questão prévia de não conhecimento da norma constante do artigo 35º, na versão actual, pelas razões que indiquei na minha declaração de voto aposta ao Acórdão nº 57/95). Guilherme da Fonseca (votei vencido quanto à questão prévia, pelas razões adiantadas na minha declaração de voto aposta no Acórdão nº 57/95) Luís Nunes de Almeida