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Processo n.º 206/01
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório Em 9 de Junho de 1999, F... deduziu, junto do tribunal cível da comarca de Lisboa, embargos de executado na acção contra ela instaurada pelo I.... Tendo os embargos sido liminarmente rejeitados, a embargante interpôs recurso de agravo do respectivo despacho, invocando, nomeadamente, que
'(...)
4. Para que seja executivo, o ‘título tem que constituir ou certificar a existência da obrigação, não bastando que preveja a constituição desta. Assim é que o documento particular no qual se fixe a cláusula penal correspondente ao não cumprimento de qualquer obrigação contratual não constitui título executivo em relação à quantia da indemnização ou da cláusula penal estabelecida (...)’.
5. O prémio e os subsídios em causa nos autos não materializam a celebração de um contrato de mútuo. Nos termos da legislação aplicável, há lugar ao seu reembolso verificadas que sejam certas condições.
6. Estas não constam da certidão em referência, nem são alegadas na petição da execução. Não há pois qualquer referência no caso em apreço que permita subsumir a situação às condições que a lei prevê para o reembolso.
6.1. Mas ainda que elas fossem referidas, a sua menção não fornecia prova (para usar a expressão do Prof. Varela) sobre a constituição da respectiva obrigação.
6.2. Esta só se tornará certa pela condenação em acção declarativa.
6.3. A entender-se o contrário, seria permitir que ao próprio credor ficasse concedido o direito de ele próprio certificar a verificação dos fundamentos do incumprimento pelo devedor em situações, como é o caso, que exigem indagação e verificação de factos que a lei prescreve e configura na noção de incumprimento.
6.4. Se se entender em contrário, são materialmente inconstitucionais os seguintes preceitos:
- CPC- artºs 45º, n.º 1 e 46º- alínea d);
- Dec. Reg. N.º 5/91- artº 9º, n.º 1, D. Lei 172-G/86, artº 53º n.º 1, 2 e 3; D. Lei 79-A/87, artº 53º, n.º 1, 2 e 3; D. Lei 81/91, artº 52º n.º 1, 2 e 3 e 53 n.ºs 1 e 2.
6.4.1. Tais preceitos são materialmente inconstitucionais no segmento de interpretação que permita considerar título executivo a certidão emitida por autoridade pública (ou dotada de fé pública) na qual se certifique o incumprimento de alegado devedor ao Estado no caso em que esse incumprimento decorra de se verificarem actos e omissões do devedor, fora da situação material da falta de pagamento como contrapartida de serviço prestado (taxa) ou cujo pagamento decorra de obrigação tributária.
6.4.1.1. Para além destes casos, e como na presente hipótese, se esteja perante a obrigação de reembolso de verbas por alegado incumprimento de certos actos, ao credor está vedado emitir certidão com efeito de título executivo.
6.4.2. E tais preceitos nesse segmento de interpretação são materialmente inconstitucionais por violação do disposto nos artigos da CRP – 2º (princípio da legalidade que tem ínsito o princípio da confiança), 20º, n.º 1 – acesso ao direito e aos tribunais; 202º, n.ºs 1 e 2 (função jurisdicional) e 62º, n.º 1
(propriedade privada).
6.4.2. Com efeito, seria o credor Estado a definir os procedimentos que entendia susceptíveis de enquadrar o incumprimento sem hipótese de reacção pelos particulares (e no caso concreto, o incumprimento em causa nem se acha concretizado na petição da execução).
6.4.2.1. Os tribunais limitar-se-iam a executar bens do devedor para pagar os valores devidos sem que este pudesse defender-se e demonstrar a ausência de culpa no incumprimento ou mesmo a falta de verificação dos requisitos deste.
6.4.2.2 Inexistiria assim uma separação entre os poderes da Adminsitração Pública e os poderes jurisdicionais.
6.4.2.3. A propriedade privada seria sujeita a processo executivo e não estaria em segurança; bastava que o Estado emitisse uma certidão ‘certificando’ o incumprimento para que no Tribunal se desencadeasse o processo executivo culminando eventualmente com a venda forçada de bens com vista ao pagamento. Assim resultaria se se entendesse em sentido contrário.' Por Acórdão de 5 de Julho de 2000, o Tribunal da Relação de Lisboa negou provimento ao recurso, com os seguintes fundamentos, quanto à questão de inconstitucionalidade suscitada:
'(...) Concretamente coloca-se o problema de saber se a norma em causa (al. d) do artº
46º do C.P.C.) é ou não inconstitucional. A questão já foi levantada a respeito das certidões hospitalares supra referidas e com os mesmos argumentos. O Tribunal Constitucional sempre considerou improcedentes os argumentos apresentados por não haver qualquer violação da Constituição, quer do princípio da chamada reserva do juiz, quer o princípio da igualdade, quer ainda os princípios da proporcionalidade da justiça ou da segurança jurídica (vide, neste sentido o Ac. n.º 282/99, de 5 de Maio de 1999, in D.R., II série, de 14 de Julho de 1999, bem como toda a jurisprudência aí citada) (...)'. Deste aresto, inconformada, a apelante recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
'a) o título executivo dos autos não pode servir de base à execução; b) falta-lhe nomeadamente a indicação do fundamento do incumprimento da executada, na decorrência do qual esta fica investida no dever de reembolsar as ajudas e subsídios recebidos, nos termos da legislação que regula a sua atribuição e referida na petição de execução, título executivo junto com esta e contrato (...). c) Dada essa falta, e por muito amplas que sejam as possibilidades de defesa da executada nos embargos, ela não a pode exercer (não se pode defender do que não se conhece); d) Nem na dita petição nem no dito título se refere tão pouco que a obrigação de reembolso e juros decorre de incumprimento; e) Qualifica-se no título executivo (como se se tratasse de sentença, passe a expressão) que a executada é ‘devedora ao I...’ (...); f) No caso dos autos não estamos perante mútuo à executada, mas sim perante a concessão de ajudas e subsídios, cujo reembolso e juros tem lugar sempre e só se verificarem certas condições (maxime incumprimento pela executada da execução de certos procedimentos; g) Se se entender que no título executivo previsto na alínea d) do artº 46º do C.P.C. e no artº 45º, n.º 1 do mesmo Código, se dispensa a menção do fundamento da exigência do reembolso e juros que é formulada na execução a que serve de base, assim se impedindo a sindicância desse fundamento no processo de embargos, tais disposições são materialmente inconstitucionais nesse segmento de interpretação, conforme se expôs acima e para onde se remete- cfron digo confrontar artºs da CRP: 2º, 20º, n.º 1, 202º, n.ºs 1 e 2; h) Pede-se que se dê provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra em que se decida revogar a decisão da primeira instância na qual se decidiu indeferir liminarmente a petição inicial dos embargos deduzidos pela executada.
(...) Em tempo: acrescenta-se às conclusões a alínea i) do seguinte teor: por erro de interpretação a decisão recorrida violou o disposto nos artºs do C.P.C.
45, n.º 1 e 46º, alínea d).' O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 1 de Março de 2001, negou provimento ao recurso nos seguintes termos:
'(...)
2. A recorrente não tem razão. Com efeito, o n.º 1 do artigo 53º do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, considera títulos executivos as certidões de dívida emitidas pelo organismo pagador da ajuda, neste caso o I.... A interpretação restritiva deste preceito no sentido de apenas abranger aqueles documentos que assentam em prova da obrigação, como parece sugerir a Recorrente, carece de fundamento. Se tal requisito está ínsito nos documentos particulares que constituem títulos executivos nos termos do artº 46º, b) e c) do Código de Processo Civil, não é exigível quanto aos documentos a que se refere na alínea d). São vários os exemplos de títulos executivos que, como os dos autos, se alheiam da obrigação subjacente, como as certidões de dívidas às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde, por serviços ou tratamentos prestados, a que se referia o Decreto-Lei n.º 194/92. A execução pode, neste caso, ser dirigida, p. ex., contra o pretenso causador de acidente ou respectiva seguradora, sem que a responsabilidade de um e de outro se encontre estabelecida ou de qualquer modo reflectida no título executivo. A argumentação da recorrente segundo a qual, assim interpretado, o referido artº46º seria inconstitucional, carece também de fundamento. Sobre a matéria pronunciou-se já o Tribunal Constitucional, relativamente às certidões a que se referia o mencionado Decreto-Lei n. 194/92 (revogado pelo Decreto-Lei n.º 218/99, de 15 de Junho), no Acórdão n.º 282/99, proc. N.º
105/99, in DR, II Série, de 14.7.99, p. 10.213), certidões que, como vimos, apresentam essencialmente as mesmas características daquelas em causa nos presentes autos. Concluiu-se aí por que tal regulamentação não viola o princípio da igualdade de tratamento, consagrado no artº 13º da Constituição. Funda-se agora a Recorrente nos artºs 2º, 20º, n.º 1 e 202º, n.ºs 1 e 2 da Constituição para impugnar a constitucionalidade da disposição em causa. Permitir uma execução assente nos títulos aí referidos é permitir à Administração dirimir ela própria o conflito com o particular, sendo directamente interessada, permitir-lhe que decida se este ou aquele procedimento
(ou omissão) constitui fundamento do incumprimento, sem ao menos caracterizar os factos em que este assenta. Estaria, pois, violado, o princípio da separação de poderes. A esta argumentação já respondeu o Acórdão recorrido. Com efeito, o processo executivo não altera as regras materiais aplicáveis à relação controvertida e, designadamente, as que se prendem com o ónus da prova. Assim, na acção executiva pode a Recorrente contestar a obrigação de repor as ajudas recebidas, cabendo então ao I... alegar e provar as condições a que, nos termos da lei, o pedido de reembolso está sujeito.' Desta decisão foi interposto o presente recurso de constitucionalidade ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70º, da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da conformidade com a Lei Fundamental dos artigos 45º, n.º 1 e 46º, alínea d) do Código de Processo Civil,
'no segmento de interpretação que entenda que os documentos a que se refere o disposto na alínea d) do artigo 46º do Código de Processo Civil constituem título executivo sem necessidade de menção do motivo da exigência do pedido de reembolso ou do pagamento e também o serão se se entender que, para além dos casos de reembolso ou pagamento, respectivamente decorrentes de mútuo ou obrigação tributária, dispensam a menção do fundamento da obrigação de reembolsar qualquer quantia em dinheiro. Se se entender que no título executivo previsto na alínea d) do artigo 46º e artigo 45º do Código de Processo Civil, se dispensa a menção do fundamento da exigência do reembolso e juros que é formulada na execução a que serve de base, assim se impedindo a sindicância desse fundamento no processo de embargos, tais preceitos são materialmente inconstitucionais nesse segmento de interpretação.' Admitido o recurso, a recorrente encerrou assim as alegações produzidas neste Tribunal:
'Concluindo: a. os artigos do C.P.C. referidos a seguir são materialmente inconstitucionais: 45º n.º 1 e 46º- alínea d) ; b. e são materialmente inconstitucionais no segmento de interpretação em que se entenda:
- os documentos a que se refere o disposto na alínea d) do art. 46º do C.P.C. constituem título executivo sem necessidade da menção do fundamento do incumprimento que determina a exigência do pedido de reembolso ou do pagamento; e também o serão, se se entender que basta a menção de ‘incumprimento’ para que a certidão emitida por organismo integrado da Administração Pública possa valer como título executivo.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
É a seguinte a redacção do n.º 1 do artigo 45º e da alínea d) do artigo 46º do Código de Processo Civil:
'Artigo 45º
(Função do título executivo)
1. Toda a execução tem por base um título, no qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.
(...) Artigo 46º
(Espécies de títulos executivos)
À execução apenas podem servir de base:
(...) d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.' Confrontando o teor destas normas com o (único) sentido que, por último, a recorrente delas impugnou, nas alegações perante este Tribunal – cfr. Acórdãos n.ºs 20/97 e 243/97, publicados, respectivamente, no Diário da República [DR], II Série, de 1 de Março de 1997 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36º vol. (1997), pp. 609-614, no último dos quais se escreve que 'o objecto do recurso de constitucionalidade define-se no respectivo requerimento de interposição' e que embora 'assim definida inicialmente, pode, depois, ser pela recorrente restringido nas conclusões da alegação (cfr. o n.º 3 do citado artigo
684º’ [do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 69º da Lei do tribunal Constitucional]) – logo se vê que o n.º 1 do artigo 45º não tem ligação directa à questão de constitucionalidade suscitada: a determinação do 'fim' e dos 'limites' da acção executiva tem a ver com 'o tipo de acção e o seu objecto'
(José Lebre de Freitas et alii, Código de Processo Civil Anotado, volume 1º, Coimbra, 1999, p. 87, anotação 2 ao artigo 45º), correspondendo o objecto da execução 'ao objecto da situação jurídica acertada no título' (idem) e o seu tipo a um dos três previstos na lei: execuções para pagamento de quantia certa
(arigo 811º a 927º), para entrega de coisa certa (artigos 928º a 932º) e para prestação de facto, positivo ou negativo (artigos 933º a 943º). Não faltam, assim, à certidão de dívida junta à petição de execução 'os requisitos que permitam qualificá-la como título executivo – vd. a noção de título executivo fornecida pelo artigo 45º, n.º 1 do CPC.', como se escreveu nos embargos – e mesmo que faltassem, não caberia a este Tribunal censurar entendimento diverso do tribunal a quo (aliás, mesmo que faltassem, e mesmo que coubesse a este Tribunal um juízo sobre isso, daí só resultaria desconformidade do título com a lei – tal como, aliás, alegado na alínea i) das conclusões apresentadas ao Supremo Tribunal de Justiça –, e não inconstitucionalidade, de nenhum aval servindo, então, o recurso de constitucionalidade interposto). Uma vez que a recorrente também não arguiu, perante este Tribunal, a inconstitucionalidade das normas que consideram como títulos executivos certidões de dívida emitidas pelo organismo pagador de ajudas (no caso o n.º 1 do artigo 53º do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro), nem das que fixam as suas menções (n.º 2 do artigo 6º do Decreto-lei n.º 260/97, de 30 de Setembro), nem das que regulam as competências do I... enquanto responsável pelo acompanhamento e confirmação da execução dos investimentos financiados e pela cobrança dos montantes devidos pelos beneficiários em caso de não cumprimento
(Decreto Regulamentar n.º 5/91, artigo 9º n.º 1; Decreto-Lei n.º 172-G/86, artigo 53º n.ºs 1, 2 e 3; Decreto-Lei n.º 81/91, artigos 52º n.ºs 1, 2 e 3 e 53º n.º 2), o que pode unicamente estar em causa é a inconstitucionalidade da possibilidade de o legislador criar títulos executivos por legislação especial, sejam esses títulos particulares (como os já previstos nas alíneas b) e c) do mesmo artigo 46º do Código de Processo Civil), judiciais (como os já previstos na alínea a) do mesmo artigo – e, como para os antes referidos, não subsumíveis
à sua previsão), judiciais impróprios (como o do requerimento de injunção após nele ser aposta a fórmula executória prevista no artigo 14º do seu regime, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro), ou administrativos
(como as certidões de dívida às instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde, por serviços ou tratamentos prestados, nos termos do artigo
2º do Decreto-Lei n.º 194/92, de 8 de Setembro – títulos, estes, por diversas vezes apreciados por este Tribunal antes da sua revogação pelo Decreto-Lei n.º
218/99, de 15 de Junho: cfr. Acórdãos n.ºs 760/95, 761/95 e 282/99, publicados no DR, II Série, de 2 de Fevereiro de 1996, os dois primeiros, e de 14 de Julho de 1999, o último). Porém, uma vez que a norma da alínea d) do artigo 46º do Código de Processo Civil não é norma habilitante para essa possível proliferação de títulos executivos, confrontá-la com a Constituição como se fosse uma norma de autorização é irrelevante para o caso dos autos: não é por tal norma não delimitar 'o objecto, o sentido, a extensão' – quiçá, 'a duração da autorização'
(à maneira das leis de autorização legislativa) – que sofrerá de desconformidade com a Lei Fundamental: é que nem a matéria em causa é da competência reservada, nem a alínea d) do artigo 46º do Código de Processo Civil é 'padrão de validade das normas', como se escreveu, a propósito de situação paralela, no já citado Acórdão n.º 282/99, acrescentando-se (para uma situação em que o juiz da 1ª instância considera inadmissível 'a possibilidade legal de criação de um título executivo por via administrativa'):
'em direitas contas, nem sequer pode dizer-se que a norma que aqui se aprecia inova (ao menos inteiramente) em relação aos critérios sobre responsabilidade civil extra-contratual, constantes daquele Código. [Civil] Aliás, se o fizesse (isto é, se inovasse inteiramente, fixando pressupostos em tudo diferentes dos fixados no Código Civil), isso não constituía, de per si, motivo de inconstitucionalidade.' Posta, assim, de lado a questão da possibilidade de o título executivo não obedecer aos requisitos do n.º 1 do artigo 45º do Código de Processo Civil
(porque esse juízo não cabe a este Tribunal e porque tal juízo revelaria, quando muito, ilegalidade do título), e igualmente afastada a possibilidade de imputar
à norma da alínea d) do artigo 46º do Código de Processo Civil qualquer insuficiente densificação enquanto norma geradora de títulos executivos, resta tratar da interpretação posta em causa pela recorrente. Esta, porém, haveria de ser referida a cada uma das disposições especiais que atribuem força executiva a documentos e (ou) à norma do artigo 6º do Decreto-Lei
260/97, de 30 de Setembro, expressamente invocada na decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, que (apenas) exige que as certidões de dívida mencionem a data de emissão, a identificação e o domicílio do devedor, a proveniência da dívida, o seu montante (por extenso), a data a partir da qual são devidos juros e a importância sobre que incidem.
É que, justamente porque a norma impugnada apenas incorpora no sistema do Código a (livre, para o legislador) criação de outros títulos executivos por
'disposição especial', é a cada uma destas (ou a uma disposição especial geral) que cabe definir-lhe os contornos. O que permite concluir, preliminarmente, que, por um lado, as normas impugnadas não são constitucionalmente censuráveis no entendimento que subjaz
(implicitamente) à sua impugnação, e que, por outro, o sentido explicitamente sujeito à apreciação deste Tribunal não é um sentido apropriado para elas, tendo antes a ver com 'as disposições especiais' configuradoras de títulos executivos. Ainda assim, não deixará de se realçar que a solução legal em causa – a atribuição, por disposição especial não impugnada perante o tribunal recorrido e, como tal, não incluída no objecto do recurso – não viola 'o princípio da confiança insíto ao princípio da legalidade', que a recorrente faz remontar ao artigo 2º da Constituição (sendo certo que, como reiteradamente se escreveu neste Tribunal, citando Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª Ed., Coimbra, p. 63, anotação V ao artigo 2º, a regra aí consagrada 'em princípio, não produz normas de per si, ou seja, normas que não encontrem tradução em outras disposições constitucionais'), porque se não pode dizer que 'o particular fica sujeito a ter de incorrer nas consequências do seu incumprimento, sem que lhe seja dado a conhecer o seu fundamento.' Equacionando a questão de saber 'se ficam patentemente diminuídos os direitos de defesa do que, no título, figura como devedor', escreveu-se no já citado Acórdão n.º 761/95, a propósito das normas que atribuíam força executiva às certidões de dívida às instituições e serviços públicos integrados no Serviço Nacional de Saúde e lhe fixavam as 'condições de exequibilidade':
'A norma (...) representa, desta arte, apenas a atribuição de uma especial fé a uma declaração de crédito (e correspondente débito), sem minimamente pôr em causa a possibilidade de questionar, quer a obrigação exequenda (aí se compreendendo o respectivo montante), quer o responsável pelo seu incumprimento, caso se poste, nestes campos, um verdadeiro litígio.' Note-se, aliás, que enquanto no caso que aí se discutia quem exercia os direitos de defesa era um terceiro (legal ou contratualmente responsável), aqui é a directa interveniente na relação com a exequente, que, naturalmente, terá a exacta noção do que originou o litígio. E continuava-se no citado aresto, afastando também as, igualmente invocadas, violações do 'princípio do acesso aos tribunais' e do 'princípio da separação de poderes' (aí na veste de intromissão, pela Administração, na função jurisdicional):
'Sequentemente, haverá que concluir que um tal normativo não só não intenta dirimir qualquer conflito (...), como ainda não preclude os meios de defesa dos executados (...) que apenas, para os exercitarem, haverão de seguir um formalismo processual diferente (os embargos de executado) daquele que, normalmente, é usado (a contestação da acção declaratória).' De resto, resulta claro dos autos que nenhuma limitação impendeu sobre a recorrente no acesso aos tribunais. E quanto à invocada (pela recorrente) possibilidade de a 'Administração ela própria dirimir o conflito com o particular, sendo directamente interessada', escreveu-se no também já citado Acórdão n.º 760/95, a propósito, mais uma vez, das normas atributivas de força executiva às certidões de dívida às instituições e serviços do Serviço Nacional de Saúde:
'Esta actividade de certificação de um crédito por parte da entidade pública que dele é titular não representa, contudo, o exercício de poderes característicos da função judicial, pois que o hospital, ao emitir a certidão de dívida, não resolve ou compõe qualquer conflito que, acaso, oponha o credor (ou outrem)
àquele que, no título, é indicado como devedor. Na execução, pode, de facto, o executado lançar mão dos meios de defesa que podia ter usado na acção declarativa, se esta tivesse tido lugar. Ele pode opor-se à execução mediante embargos de executado. E, se o fizer, então sim, haverá lugar à resolução de um conflito por um órgão independente e imparcial, de harmonia com normas ou critérios legais pré-existentes – e tudo com vista à realização do direito e da justiça.' Em suma: as normas impugnadas foram-no como se fossem normas paramétricas
(imperfeitas) da criação de títulos executivos, e foi enquanto tais que foram impugnadas. Porque não o são, nem constitucionalmente se lhes podia impor que fossem, claudica o recurso nesse sentido. Por outro lado, a invocação de uma alegada incompletude do título executivo também lhes não podia ser imputada, desde logo porque as 'disposições especiais' que o criaram e conformaram não foram impugnadas. Ex abundanti, acrescenta-se que, ainda que o tivessem sido, e pelas razões que já foram invocadas em decisões anteriores deste Tribunal, não seriam de considerar inconstitucionais. III. Decisão Pelos fundamentos expostos decide-se negar provimento ao recurso e condenar a recorrente em custas, com 15 ( quinze ) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 4 de Junho de
2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca José Manuel Cardoso da Costa