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Procº nº 111/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Por sentença proferida em 11 de Julho de 2000 pela Juíza do Tribunal do Trabalho do Funchal foi parcialmente julgada procedente a acção que S..., M..., F..., I..., A... e D... intentaram contra C..., S.A., condenando esta a pagar às autoras, durante o período de maternidade, a título de subsídios de refeição, acrescidas dos juros vencidos e vincendos, respectivamente, as quantias de Esc. 99.272$00, Esc. 90.997$00, 90.113$00, 106.540$00, 211.404$00 e
534.413$00.
Tendo dessa sentença recorrido a ré para o Tribunal da Relação de Lisboa, sustentando que a sentença apelada 'violou o disposto no artigo 82º da LCT, o Acordo de Empresa C..., designadamente a Cl[á]usula 148º, correspondente
[à] anterior Cl[á]usula 156º, a Cl[á]usula 195º, o artigo 13º, 59º, 63º, 68º da Constituição da Rep[ú]blica Portuguesa, o artigo 805º do Código Civil' aquele Tribunal, por acórdão de 12 de Dezembro de 2000, negou a apelação.
Pode ler-se nesse aresto para o que ora releva:-
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c)
O subsídio de refeição ou de alimentação tem por escopo a comparticipação na alimentação do trabalhador enquanto tal, seja em espécie, através das cantinas, seja por equivalente, através da atribuição de valor certo ou até do custeio, por compensação, dos montantes efectivamente dispendidos, em regra com determinado tecto; nessa medida, tem carácter retributivo.
Como complemento regular e periódico, já distante do efectivo dispêndio com o custo da refeição do trabalhador, deve ser incluído no conceito de retribuição (cfr. Acs. STJ, de 1998.04.14 e 1996.11.20, respectivamente, in AD, 320/3321, 1151, e CJ-III/255), excepto quanto às situações de falta por doença e outras não equiparáveis a trabalho efectivo (v.g. de prisão efectiva). d) Por via do n° 3 daquele art. 68°, com a revisão de 1997 (seguramente que dando acatamento à Directiva Comunitária n° 92/85/CEE, de 1992.10.19 (que estabeleceu medidas destinadas a promover a melhoria da segurança e da saúde das trabalhadoras, grávidas, puérperas ou lactantes), a todas as mulheres foi atribuído o ‘direito a especial protecção durante a gravidez e após o parto’, tendo-se conferido às ‘mulheres trabalhadoras ainda o direito a dispensa do trabalho por período adequado, sem perda de retribuição ou de quaisquer regalias
(sublinhemos). Como se acentua no bem elaborado Ac. desta Relação, de 1998.12.09, lançado sobre questão idêntica no Proc. 6.473/98, em que foi relator o Dr.R..., cuja jurisprudência merece inteiro acatamento, ‘com essas normas visou o legislador constitucional não só proteger a saúde das mães trabalhadoras num período difícil das suas vidas, em que normalmente são requeridos repouso e maiores cuidados médicos, como ainda proteger a saúde e bem estar dos nascituros ou dos filhos já nascidos, permitindo às mães cuidar destes últimos a tempo inteiro, sem as preocupações e limitações decorrentes da prestação do trabalho. Visou-se ainda incentivar o aumento demográfico, já que no nosso País, como aliás nos países desenvolvidos, a taxa anual dos nascimentos tem vindo a decrescer, ano após ano, com o indesejável e progressivo envelhecimento da população’ . Anote-se que foi pressuposto daquela Directiva a consideração de que ‘as disposições relativas à licença de maternidade não teriam igualmente efeitos
úteis se não fossem acompanhadas da manutenção dos direitos ligados ao contrato de trabalho e de uma remuneração e/ou do beneficio de uma prestação adequada’
(cfr. os arts. 11° quanto ao asseguramento da manutenção da remuneração/beneficio e a consequente defesa judicial do direito). Sem que deva negar-se a característica fortemente programática dessa norma fundamental, importa acentuar que não carece de todo de exequibilidade através do processo legislativo de grau inferior (a feitura de lei específica; na verdade, as suas regras impositivas não deixam de ser ‘repositórios dos valores mais característicos na sociedade e que exercem uma influência marcante em todas as operações tendentes à solução de casos concretos’ (Meneses Cordeiro, Manual do Direito do Trabalho, 154), imiscuindo-se decisivamente no processo da realização jurídica. É essa mensagem constitucional da manutenção de todos os direitos retributivos e regalias que deve presidir à adequada interpretação daqueles diplomas regulamentadores, como até à própria compreensão das relações laborais concretas. Daí que o regime do art. 18°, reportado ao 9° do DL n° 136/85,de 3 de Maio, reportado ao art. 23° da Lei n° 4/84, que fixa a não perda de ‘retribuição, como prestação efectiva de serviço’, tem de ser entendida como generalizada a todos os trabalhadores, para além dos abrangidos pelo regime da função pública (cfr. art. 8°-nº 1 do DL194/96, de 16 de Outubro), assumindo foros de evidente desconformidade constitucional a excepção ‘salvo quanto à retribuição’, por claro desatendimento do ‘valor social assumindo foros de evidente desconformidade constitucional a excepção ‘salvo quanto à retribuição’, por claro desatendimento do ‘valor social eminente da maternidade’ (cfr. art. 1°), senão do estabelecimento de desigualdade real por via do sexo (art. 13°- nº2). Nesse mesmo sentido - que a apelante conhece já, tantas vezes tem sido confrontada com decisões desfavoráveis, sobretudo nesta Relação, de vem desmerecendo - se pronunciou especificamente a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, pelos Pareceres nsº 7/CITE/91, de 1991.07.02, 8/CITE/91, da mesma data, e 12/CITE/91, de 5 de Outubro, quanto ao subsídio de refeição e ao prémio mensal de assiduidade. E, conquanto o não conhecesse, mais cuidada interpretação das normas, melhor ponderação dos interesses em conflito e justa conduta que pudesse servir como modelo aos empregadores privados - recusando o máximo e desmerecido lucro versus a protecção devida à mulher-mãe - sobretudo tratando-se de empresa titulada pelo mesmo Estado que é regido por aquela lei fundamental e deve conformar a ela as restantes. E é claro que, desrespeitando as leis ordinárias as normas prevalentes inscritas na Constituição, padecerão aquelas de nulidade, por vício desconformidade material em relação a esta, não podendo ser aceites e antes declaradas inaplicáveis.
e)
Efectivamente, a expressão constitucional ‘ ... sem perda de retribuição ou de quaisquer regalias...’, configurando um acentuado majus quanto
à situação das trabalhadoras, à face da lei ordinária, não pode deixar ‘margem para dúvidas de que da [ ] dispensa do trabalho não pode resultar perda para as mulheres-trabalhadoras, quer ao nível da retribuição, quer ao de outros benefícios concedidos pelo empregador, relacionados com a prestação de trabalho’
(cfr. Ac. citado), e mesmo que estes não possam qualificar-se como retribuição. Em tal conformidade, para além de justificadas (o que aqui nem sequer se discute), essas mesmas faltas são remuneradas como se de serviço efectivo se tratasse, inclusive com o correspondente subsídio de refeição, tudo se passando como se cumprissem normalmente a jornada laboral.
Pelo que, ainda que se recusasse o carácter imediatamente retributivo do subsídio em causa, sempre bastaria a consideração de que se trata de regalia normalmente atribuída a todos os trabalhadores que prestem serviço diário por mais de três horas (cfr. clª 148° do AE/CTT). Tão acentuada protecção ao nível regulamentar e até contraordenacional têm de nos convencer da impossibilidade legal da prestação de trabalho no período da maternidade (cfr. DL n° 186/73, de 13 de Março, e 10°- nº6 da Lei n° 4/84, de 5 de Abril); não só está extremamente condicionado o trabalho no período de protecção ao parto, como ainda se impõe o gozo, ‘de, pelo menos, seis semanas de licença por maternidade a seguir ao parto’. Assim sendo, mais facilmente se há-de concluir que, não podendo a protecção da maternidade redundar em prejuízo das mulheres, até pelo correspondente ‘valor social eminente’, se há-de manter, claro que à custa do empregador - tarefa de que o Estado foi incumbido (art. 8° da Lei n° 4/84) e que, por evidente desleixo não c[l]arificou ainda. De resto, até pelo princípio constitucional da igualdade (convindo postergar a interpretação que dele faz a apelante na conclusão 13ª) se atingiria o mesmo resultado; pois se o Estado atribui, naquelas idênticas situações de licença de maternidade, o subsídio de alimentação aos trabalhadores que de si directamente dependem (funcionários públicos), porque não deveria ser coagido à mesma postura em relação aos restantes dele dependendo pela via da empresa Pública, recentemente transformada em sociedade anónima. Se tivesse havido a indispensável coerência da apelante, bastaria que, na execução daquele art. 10° do DL n° 154/88, acatasse em toda a sua extensão o próprio Despacho 83/SESS/89, de 14 de Julho, que mandou considerar ‘as importâncias relativas aos subsídios de Natal, férias e outros de natureza análoga’; é que, em boa verdade, nenhum argumento esgrime - nem ele seria sustentável - no sentido da não identidade do subsídio de alimentação.
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2. O Representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, notificado do acórdão de que grande parte se encontra transcrita, fez juntar aos autos requerimento com o seguinte teor:-
'O Mº Pº junto deste tribunal, vem interp[ô]r recurso do douto Ac[ó]rdão constante de fls 316 e seguintes dos autos para o Tribunal Constitucional nos termos e com os fundamentos seguintes:
A fls 325 do Ac[ó]rdão em causa vem referido ‘assumir foros de evidente desconformidade constitucional’ a excepção consubstanciada no segmento da frase aí transcrita, com referência aos normativos legais aí também identificados.
A esta mesma ‘desconformidade constitucional’ se reporta o o nº 2 do ponto III-4, a fls. 328 do mesmo Ac[ó]rdão, na sequência do que foi referido no ponto III-4, nº 1.
Sendo certo que as referências feitas a fls. 325 e 328 atrás mencionadas, se traduzem na recusa implícita da aplicação dos normativos atrás descritos pelo Ac[ó]dão em causa, se aos mesmos f [o]r atribuído ‘entendimento oposto’ ao que por este foi seguido, por alegada inconstitucionalidade, dada a violação do Art. 68(3) da C.P.P.,
impõe-se nos termos das disposições conjugadas dos Arts 70º (1) al. a),
72(3) e 75A todos da Lei 28/82 de 15/11 a interposição de recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional pelo Mº Pº.
Termos em que requer seja admitido o presente recurso'.
O recurso foi, sem mais, admitido por despacho lavrado em 16 de Janeiro de 2002 pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Lisboa.
Porque o transcrito requerimento não obedecia ao prescrito no nº 1 do artº 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, o ora relator, por força do estatuído no nº 6 do mesmo artigo, convidou a entidade recorrente a prestar as necessárias indicações, 'designadamente tendo em conta qual seria a dimensão normativa ou interpretativa ‘desaplicada’ na decisão intentada recorrer, não se olvidando que a então impugnante C....., fundou o recurso interposto para a Relação de Lisboa esgrimindo que a sentença então apelada violou o artº 82º da Lei do Contrato Individual de Trabalho, as cláusulas 148º e 195º do Acordo de Empresa, os artigos 13º, 59º, 63º e 68º da Constituição e o artº 805º do Código Civil, normas de que não dá conta a fundamentação do aresto ora desejado colocar sob a censura deste Tribunal'.
Na sequência desse convite, o Representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional veio indicar que o recurso era fundado na alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82 , tendo 'como base a recusa de aplicação da norma constante dos artigos 9º e 18º do Decreto-Lei nº 136/85, de 3 de Maio - reportado ao artigo 23º da Lei nº 4/84, de 5 de Abril - na interpretação segundo a qual a licença de maternidade não determina a perda de quaisquer direitos da trabalhadora em regime de contrato individual de trabalho, salvo quanto a retribuição - implicando tal restrição que não seja exigível da entidade patronal da trabalhadora o pagamento do subsídio de refeição durante o período de tal licença'.
Tendo em conta que na acção interposta pelas autoras relativamente à ré se pedia unicamente a condenação desta no pagamento dos subsídios de refeição correspondentes aos períodos de licença por maternidade gozadas pelas referidas autoras, e não os correspondentes a períodos de faltas ao trabalho por outros casos de assistência à família (cfr. artigos 23º da Lei nº 4/84, de 5 de Abril, na redacção anterior à conferida pela Lei nº 142/99, de 31 de Agosto, e 18º do Decreto-Lei nº 136/85, de 3 de Maio), o objecto do recurso foi delimitado por forma a incidir tão somente sobre a norma ínsita no artº 9º do aludido Decreto-Lei nº 136/85, na parte em que exceptua a remuneração da não perda de quaisquer direitos decorrentes do gozo da licença de maternidade prevista no artº 9º da Lei nº 4/84, na redacção anterior à conferida pelas Leis números
17/95, de 9 de Junho, e 18/98, de 28 de Abril, implicando aquela excepção que não seja exigível da entidade patronal da trabalhadora o pagamento do subsídio de refeição durante o período de tal licença.
3. Determinada a feitura de alegações, concluiu o recorrente a por si formulada com as seguintes «conclusões»:-
'1 - A norma constante do artigo 9º do Decreto-Lei nº 136/85, na parte em que exceptua a remuneração do princípio da não perda de quaisquer direitos decorrentes do gozo da licença de maternidade - implicando que não seja exigível da entidade patronal o pagamento do subsídio de refeição durante o período de tal licença, não afronta o disposto nos artigos 65º e 13º da Constituição da república Portuguesa.
2 - Na verdade, a protecção outorgada pela Lei Fundamental à maternidade - implicando que, durante o período de dispensa de trabalho, não possa ocorrer perda da retribuição ou de quaisquer regalias - apenas implica que tal direito ou pretensão tenha de ser satisfeito integralmente pelas entidades a que estão cometidas funções de segurança social - e não pela entidade patronal, no âmbito de um contrato individual de trabalho, já que tal entidade não beneficiou, como contrapartida de tais ‘remunerações’, da efectiva prestação de trabalho pela interessada.
3 - Estando cometido ao Estado a protecção social dos funcionários e agentes ao seu serviço, em consequência de uma relação de emprego na Administração Pública, recai naturalmente sobre esta mesma Administração o encargo de custear as prestações típicas dos regimes de protecção social, não representando - perante tal situação - qualquer discriminação ou favor das trabalhadoras da função pública a circunstância de a lei - o Decreto-Lei nº 135/85 - lhes outorgar, no confronto do Estado, direito à remuneração por inteiro, durante o período de licença de maternidade.
4 - Termos em que deverá proceder o presente recurso'.
Por seu turno, as autoras da acção remataram a sua alegação sustentando a improcedência do recurso.
Cumpre decidir.
4. O artº 9º do Decreto-Lei nº 136/85 estipula que as licenças, dispensas e faltas previstas nos artigos 9.º, 10.º, 11.º, 13.º e 23.º da Lei n.º
4/84, de 5 de Abril, não determinam perda de quaisquer direitos, sendo consideradas, para todos os efeitos, como prestação efectiva de trabalho, salvo quanto à remuneração.
Este preceito, aliás, vem na decorrência da redacção inicial do artº
18º da Lei nº 4/84, de 5 de Abril, onde se prescrevia que as faltas ao trabalho previstas nos artigos 9º, 10º, 11º e 13º não determinam perda de quaisquer direitos, sendo consideradas, para todos os efeitos, como prestação efectiva do trabalho, salvo quanto a remuneração (cfr., hoje, artº 23).
Por outro lado, o artº 9º da Lei nº 4/84 (na indicada redacção), regula os períodos em que as mulheres têm direito a uma licença por maternidade, períodos esses que variam consoante as situações aí descritas.
Por outro lado, ainda, deve anotar-se que o Decreto-Lei nº 135/85, de 3 de Maio, que regulamentou, no âmbito da Administração Pública, aquela Lei nº 4/84, prescreve que as licenças a que se referem os artigos 9.º, 10.º e 11.º da Lei n.º 4/84, de 5 de Abril, e os artigos 2º e 3º do presente diploma são consideradas, para todos os efeitos legais, como prestação efectiva de trabalho, designadamente para efeitos de antiguidade e abono do subsídio de refeição.
5. Surpreende-se, assim, uma diferença de regimes entre o estabelecido no Decreto-Lei nº 136/85, para as trabalhadoras a que é aplicável o Decreto-Lei nº 135/85, e para aquelas a que é aplicável o Decreto-Lei nº 136/85.
Iniciando a análise da questão pela de saber se, tocantemente à surpreendida diferença de regimes, se posta uma eventual violação do princípio da igualdade postulado pelo artº 13º da Constituição, dir-se-á que o ponto foi já objecto de análise por banda destes Tribunal e Secção.
Ocorreu essa análise no Acórdão nº 663/99 (publicado na 2ª Série do Diário da República de 24 de Fevereiro de 2000), onde se concluiu pela não enfermidade com a Lei Fundamental por violação do princípio da igualdade.
Na verdade, pode ler-se nesse aresto:-
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9. A decisão recorrida afastou, com boas razões, qualquer violação do princípio da igualdade em razão do sexo, mas concluiu ‘que o regime laboral da Autora – para quem vigora o regime individual de trabalho – não é igual ao das trabalhadoras às quais se destina o DL n.º 135/85’, enquanto que ‘a situação de maternidade que a Constituição visou proteger é igual para todas as mulheres qualquer que seja o seu regime laboral.’
Todavia, este argumento prova demais: se a situação de maternidade é igual para todas as mulheres, então o tratamento conferido a todas devia ser igual, incluindo os quantitativos percebidos nessa situação.
Como, evidentemente, não é uma igualdade formal que está em causa, há que atender a índices de diferenciação material. Um desses índices é a situação laboral da parturiente: ter ou não ter actividade profissional determina uma primeira diferenciação, e ter ou não ter uma actividade por conta de outrem determina outra diferenciação. Para quem exerce uma actividade laboral por conta de outrem, fazê-lo para a administração pública (em sentido lato) ou para o sector privado introduz outra diferenciação, traduzida em dois regimes diferentes – o da função pública e o do contrato individual de trabalho –, com todas as diferenças inerentes a esses regimes, globalmente considerados: diferentes jurisdições, diferentes regras quanto à constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego, diferentes regras contributivas e regimes de assistência na doença e reforma, diferentes entidades responsáveis pelo pagamento dessas prestações.
Por outro lado, a regulamentação legislativa das relações laborais de direito privado através de normas imperativas, destinadas a proteger a trabalhadora durante o período da maternidade, reveste-se de um sentido evidentemente distinto do da regulamentação da situação das trabalhadoras da administração pública central, regional e local (e, mesmo, dos institutos públicos, serviços públicos, serviços públicos com autonomia administrativa e financeira e demais pessoas colectivas de direito público).
Neste último caso, o Estado não se limita a impor um determinado nível de protecção, mas, além disso, compromete-se (ou compromete os seus serviços ou entes personalizados aos quais reconhece poderes públicos) a assegurar um determinado nível de protecção, que não se vê porque não há-de poder ser mais elevado do que aquele que se impõe aos particulares assegurar.
Ora, nada impede que o Estado, ali onde entenda que o pode e deve fazer, preveja para os seus trabalhadores regalias suplementares, que não impõe que os particulares assegurem, como pode ser o caso do pagamento de subsídio de refeição durante o período de licença de maternidade, incluído no respectivo subsídio (isto, independentemente de saber se a solução preferível, mesmo de iure condito, é a de considerar que se mantém o direito ao subsídio de refeição).
Na verdade, o Estado não está, no caso do Decreto-Lei n.º 135/85, a actuar apenas como regulamentador de relações de trabalho alheias, estabelecidas entre particulares aos quais impõe a garantia de determinadas prestações. Está a prever o regime jurídico das relações de trabalho na própria Administração Pública, bem podendo visar, com a concessão de regalias suplementares que não impõe aos particulares, por exemplo, finalidades de incentivo acrescido dos seus trabalhadores, ou de protecção social acrescida associada à prestação de trabalho para o Estado (ou, ainda, de protecção, ainda que mediata, da dignidade das respectivas funções e do estatuto de trabalhador da função pública – embora tal interesse pareça menos próximo do ponto de regulamentação em causa nos presentes autos).
10. Pretender fazer valer uma igualdade formal em matéria de uma regalia específica ou norma específica, desconsiderando todo o universo de diferenças que a justifica, bem como o sentido da própria regulamentação globalmente considerada que a impõe (diverso, como se disse, perante relações de direito privado e no domínio público), seria desconsiderar o próprio sentido do princípio da igualdade, que exige o tratamento diferenciado do que é diferenciado tanto quanto exige o tratamento igual do que é igual. Sendo certo, aliás, que a igualação de uma circunstância pode, no conjunto, agravar a desigualdade – basta que tal igualização se faça a favor da parte mais favorecida em todas as outras circunstâncias, menos naquela.
E, evidentemente, não é possível uma comparação exaustiva de todos os pontos de desigual tratamento entre trabalhadoras do sector público e trabalhadoras do sector privado, sendo da mesma forma inadequado escamotear essas diferenças por convocação de uma igualdade específica de circunstâncias. Até porque, então, mais razões haveria para pretender operar uma igualização de todos os distintos regimes privados e de todas as especificidades dos regimes públicos, bem como entre aqueles e estes.
Em suma: recusa-se que o contraste entre a redacção do artigo 7º, n.º
1, do Decreto-Lei n.º 135/85 e a do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 136/85 seja censurável por se dever reivindicar, a propósito da licença de maternidade, uma paridade de toda e qualquer solução imposta nas relações de trabalho privadas e asseguradas pelos empregadores públicos. A situação das parturientes vinculadas ao regime da função pública e a das vinculadas ao regime do contrato individual de trabalho é diferente, tal como diverso é o sentido da regulamentação e garantia dos seus direitos nas relações de direito privado e perante empregadores públicos (v., sobre estas diferenças, recentemente, A ..., Relação jurídica de emprego público. Movimentos fractais. Diferença e repetição , Coimbra, 1999, esp. págs. 49 e segs.).
Ora, sendo as situações laborais em causa diversas, evidente se torna a inadequação da invocação do princípio da igualdade – que, aliás, levaria, no limite, à uniformidade de regime.
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As considerações supra transcritas, de que o Tribunal se não afasta agora, são de aplicar à situação ora sub iudicio, pelo que também se concluirá pela não violação do princípio de que se cura.
5. Essa conclusão, contudo, não chega para a resolução do problema.
Na verdade, a «recusa» de aplicação operada pelo acórdão recorrido fundou-se, e até essencialmente, na violação do disposto no nº 3 do artigo 68º da Constituição por parte do normativo em apreço, pelo que é mister enfrentar-se este posicionamento.
Naquele preceito do Diploma Básico - que foi introduzido pela Revisão Constitucional de 1982, ao tempo do qual foi editada a norma sub iudicio
(que estabelecia que as mulheres trabalhadoras têm direito a um período de dispensa do trabalho, antes e depois do parto, sem perda de retribuição e de quaisquer regalias) - prescreve-se agora, após a Revisão Constitucional operada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro, que as mulheres têm direito a especial protecção durante a gravidez e após parto, tendo as mulheres trabalhadoras ainda direito a dispensa do trabalho por período adequado, sem perda da retribuição ou de quaisquer regalias.
Partindo do princípio, de que o acórdão impugnado partiu, fundado na jurisprudência dos tribunais da ordem dos tribunais judiciais e em alguma doutrina, de que no conceito de remuneração se inclui a percepção do subsídio de refeição, e partindo também do entendimento seguido naquele aresto, segundo o qual à situação das recorridas era aplicável o regime do contrato individual de trabalho, por isso se convocando a norma ora em apreço, segue-se a questão de saber se o segmento da norma do artº 9º do Decreto-Lei nº 136/85, agora sub specie, é ofensiva do citado preceito constitucional.
Não se pode olvidar que a referida Lei nº 4/84 (redacção originária), no seu artº 19º (para o que ora releva), comandava [cfr., hoje, artº 26º, nº 1, alínea a)] que as trabalhadoras, durante o período correspondente ao gozo de licença por maternidade, têm direito, quando abrangidas pelo sistema de Segurança Social, a um subsídio igual à remuneração média considerada para efeitos de cálculo de subsídio de doença.
5.1. Já no citado Acórdão nº 663/99 se anotava que, '[q]uanto à entidade responsável pelo pagamento da ‘remuneração’, cessando a prestação de trabalho à entidade empregadora, a manutenção dos direitos do trabalhador decorrentes dessa prestação de trabalho constitui uma imposição que, em sede de direito privado, não terá de estender-se ao pagamento, pela entidade patronal, da remuneração do trabalhador'.
E, acrescentava-se:-
'Quanto à natureza da prestação, com a cessação da prestação do trabalho, o subsídio de maternidade é concedido ‘na presunção da perda de remuneração decorrente da prestação de trabalho’, destinando-se, justamente, ‘a compensar essa perda’ (Artigo 4º do Decreto-Lei n.º 154/88, de 29 de Abril, que revogou o Capítulo III do Decreto-Lei n.º 136/85, de 3 de Maio).
Ou seja: tendo em conta que, durante a licença de maternidade, as trabalhadoras abrangidas pelo sistema de segurança social perdem a contraprestação retributiva do seu trabalho por parte da entidade empregadora, passando a auferir um subsídio de maternidade pago pelo sistema de segurança social, dúvidas não restam de que as faltas ao trabalho por motivo de licença por maternidade, não determinando perda de outros direitos, podem levar à mudança da entidade responsável pelo pagamento à trabalhadora e a uma alteração na natureza da prestação monetária recebida por esta, que passa a visar compensar a perda de remuneração decorrente da prestação de trabalho'.
E, na realidade, assim é.
5.2. Da norma em apreciação não resulta que as trabalhadoras, em período de «baixa» por «licença de maternidade», fiquem desprovidas do direito a perceberem a «remuneração» que lhes seria devida pelo trabalho que não prestam face àquela «baixa».
O que se passa é que, em vez do montante equivalente à remuneração ser pago pela entidade patronal, é ele prestado por aquelas entidades a quem é cometida a prossecução das prestações devidas a título de Segurança Social. Equivale isso a dizer que o que a norma em apreciação faz é impor que o direito
à «remuneração» é exigível, não da entidade patronal - que não vai receber, durante o período de licença, o labor das trabalhadoras, cuja contrapartida seria, justamente, o pagamento da devido por esse labor -, mas sim das entidades que exercem funções de Segurança Social. E daí que dessa norma não decorra o direito das trabalhadoras a exigirem da sua entidade patronal o pagamento da
«remuneração» durante o período de «licença por maternidade».
Ora, tendo presente estas considerações, fácil é de ver que nos vertentes autos, o que está em causa é a questão de saber se é, ou não, conforme com o instituído pelo nº 3 do artº 68º da Constituição, o preceituado no artº 9º do Decreto-Lei nº 136/85, numa interpretação segundo a qual não é exigível da entidade patronal o pagamento do subsídio de refeição correspondente ao período de tempo a que respeita o gozo da licença de maternidade prevista no artº 9º da Lei nº 4/84.
Na verdade, foi esse o escopo da acção intentada pelas recorridas contra a empresa C...l, S.A., e foi com essa dimensão interpretativa que foi recusada a aplicação do normativo em causa.
Nesta postura, a resposta à questão sobre que nos debruçamos terá de ser no sentido de aquele sentido interpretativo não afrontar o direito que deflui do citado nº 3 do artº 68º do Diploma Básico.
Este preceito, efectivamente, impõe, na sua parte final, uma especial garantia às mulheres trabalhadoras após o parto, qual seja o de terem elas direito a um período adequado de dispensa de trabalho, sem que daí resultem a perda de retribuição ou de quaisquer regalias.
Não se impõe, todavia, que o pagamento da «retribuição» (e para o caso que agora interessa, tendo em conta o que foi decidido no acórdão impugnado, incluindo-se neste conceito o pagamento do subsídio de refeição, se este vinha a ser pago com regularidade) tenha de ficar a cargo do empregador. O que releva é que se desenhem no ordenamento jurídico formas que permitam que aquela garantia constitucional se efectiva.
E, de entre as várias possíveis formas de atingir a efectividade da garantia, optou o legislador ordinário por uma que consiste, justamente, em deverem as entidades de Segurança Social proporcionar à mulher trabalhadora em gozo de «licença de maternidade» e que estejam abrangidas pelo sistema de Segurança Social, um subsídio igual à remuneração média considerada para efeitos de cálculo de subsídio de doença.
Significa isso que, para alcançar a efectivação do direito especial consagrado na falada norma constitucional, o legislador entendeu por bem não fazer recair sobre a entidade patronal o encargo de proceder ao pagamento da
«retribuição» das trabalhadoras em período de licença após parto, certamente porque foi sensível à consideração de que, em tal período, aquela entidade não recebia a contrapartida do trabalho.
Esta opção do legislador nada tem de censurável, até porque por seu intermédio se não lobriga que as trabalhadoras em tais condições fiquem despojadas da garantia que constitucionalmente lhes é concedida.
Aliás, dos autos a única questão que resulta com suficiência é que a entidade patronal das recorridas – C..., S.A.- não procedeu ao pagamento do subsídio de refeição correspondente ao período em que estiveram de «licença por maternidade». Se, a terem elas, nesse período, recebido das entidades da Segurança Social, o subsídio a que se reporta o artº 19º da Lei nº 4/84, e se nele se incluía qualquer quantitativo referente ao subsídio de refeição, isso são dados que o vertente processo não traz a lume.
Sendo isto assim, estando em causa, como está, e tão só, a questão de saber se deve ser considerado como conflituante com a Constituição uma interpretação do artº 9º do Decreto-Lei nº 136/85 segundo a qual a cargo da entidade patronal não deve recair a obrigação do pagamento da «remuneração» correspondente ao período em que as mulheres trabalhadoras abrangidas pelo sistema de Segurança Social (naquela «remuneração» se incluindo pagamento do subsídio de refeição), então há-de concluir-se não assistir razão ao aresto recorrido, já que tal interpretação se não mostra feridente da Lei Fundamental.
6. Em face do exposto, concede-se provimento ao recurso, determinando-se a reforma do acórdão impugnado em consonância com o juízo de não inconstitucionalidade que acima se deixou feito. Lisboa, 18 de Junho de 2002- Bravo Serra Guilherme da Fonseca Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma (voto vencida por violação do princípio da igualdade, remetendo para a declaração de voto aposta ao Acórdão nº 663/99, rectificado pelo Acórdão nº 693/99, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 45º vol.,p. 557) José Manuel Cardoso da Costa