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Proc. nº 283/02 Acórdão nº 204/02
1ª Secção Relatora: Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. J..., identificado nos autos, recorreu jurisdicionalmente do acórdão do Tribunal Central Administrativo, de 10 de Maio de 2001, que negou provimento ao recurso contencioso por si interposto do despacho do Ministro da Justiça de 9 de Junho de 1998 que lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.
O recorrente impugnou o acórdão do Tribunal Central Administrativo a partir de três questões fundamentais:
– a relevância da prova do processo crime no procedimento disciplinar;
– o ilegal exercício da discricionaridade no indeferimento da prorrogação do prazo da defesa;
– o erro na apreciação da prova feita no processo disciplinar.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 24 de Janeiro de
2002 (fls. 59 e seguintes), julgou improcedentes todas as conclusões da alegação do recorrente e, consequentemente, negou provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
Lê-se no texto desse acórdão, quanto à primeira questão suscitada pelo recorrente:
'Relativamente à primeira questão é sabido que a responsabilidade disciplinar e a responsabilidade criminal são distintas e acumuláveis, visando tutelar bens jurídicos diversos: no primeiro caso, a preservação da capacidade funcional do serviço público em causa e no outro a defesa dos valores
ético-sociais ou interesses fundamentais de vida em sociedade [...].
Daí que o procedimento disciplinar seja independente e autónomo do procedimento criminal instaurado pelos mesmos factos, tal como são independentes as respectivas decisões [...].
O mesmo facto pode não ser provado em processo criminal com o grau de certeza necessário para ser punido por sentença penal, onde o rigor da prova terá de ser maior, e todavia aparecer em processo disciplinar com suficiente consistência para demonstrar a responsabilidade do agente.
[...]
[...] É, pois, irrelevante para o presente processo disciplinar a invocação pelo recorrente da materialidade fáctica que se terá fixado no processo crime, não demonstrando, por si só, a invalidade da decisão punitiva, por erro sobre os pressupostos de facto.'
Quanto à segunda questão invocada pelo recorrente, disse o Supremo Tribunal Administrativo:
'Alega também o recorrente que o direito de prorrogação do prazo de defesa negado ao arguido, que o acórdão recorrido julgou improcedente, violou os arts. 42º, nº 1 e 59º, nº 5 do Estatuto Disciplinar mas também as garantias de defesa constitucionalmente consagradas e que vinculam a entidade sancionatória
(arts. 32º, nº 10 e 18º, nº 1 da CRP), com referência ao art. 6º, nº 3, b) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ainda art. 17º da CRP). De acordo com o disposto no artº 59º, nº 1 do ED, o prazo para o arguido apresentar a sua defesa é variável e a fixar entre 10 e 20 dias. No presente caso esse prazo foi fixado no máximo de 20 dias, ponderada que foi, certamente, a complexidade relativa do processo disciplinar em causa.
[...] Assim, tendo o ora recorrente beneficiado do prazo normal mais longo, nos termos do artº 59º, nº 1 do ED, de 20 dias, nem este se apresenta insuficiente para assegurar uma defesa cabal do arguido, nem o indeferimento do pedido de prorrogação do prazo se afigura inadequado, injusto, motivado por fim não coincidente com o visado pela lei ou assente em pressupostos errados.
Deste modo, não ficou demonstrado que o acto impugnado tenha excedido os limites internos e/ou externos do poder discricionário concretamente exercido, não se mostrando violadas as regras ou princípios inerentes à defesa do arguido, que foram indicados pelo recorrente.'
No que se refere ao alegado erro na valoração da prova, entendeu o Supremo Tribunal Administrativo:
'Desde logo, não se vislumbra a invocada sobrevalorização das circunstâncias agravantes. Com efeito, o recorrente não logrou demonstrar que da prova autonomamente colhida no processo disciplinar resulte a inexactidão material dos factos constitutivos das infracções disciplinares e das circunstâncias em que as mesmas foram praticadas, tudo de acordo com a acusação formulada. E, uma vez provada essa materialidade, estão provadas as circunstâncias agravantes que dela decorrem. Por outro lado, não colhe a alegada desvalorização do depoimento da Senhora Notária do 2º Cartório Notarial de Setúbal, na medida em que a mesma não revelou conhecimento directo dos factos, tendo-se limitado a emitir opinião acerca do enquadramento disciplinar da conduta do arguido e do carácter deste. Alega também o recorrente que foi ignorada, de forma sistemática, a sua inegável competência técnica. Quanto a este aspecto, há que referir que a competência técnica não constitui, por si mesma, uma circunstância atenuante da infracção disciplinar.
[...].'
2. Inconformado, J... interpôs recurso para o Tribunal Constitucional
(requerimento de fls. 76-78), ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, nos seguintes termos:
'[...] Pelo exposto e uma vez que o douto acórdão do Supremo Tribunal Administrativo vem confirmar uma punição baseada em factos ilícitos inexistentes de natureza disciplinar e com violação das garantias de defesa que assistem ao arguido, consagradas nos artigos nºs 32º nº 10, 18º nº 1 e 17º da Constituição da República Portuguesa, «maxime» nº 1 e nº 3 alínea b) do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, enfermando de violação por omissão da observância dos imperativos constitucionais ora invocados, e a que este Tribunal superior está vinculado como órgão de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (artigos 1º e 2º alínea c) do Dec. Lei nº 129/84, de 27 de Abril) e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem de que o Estado Português é Alta Parte Contraente, aplicou em concreto a norma 59º nº 1 do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central Regional e Local, que é materialmente inconstitucional na medida em que, permitindo a concessão «in casu» de escassos
20 dias para o arguido apresentar a sua defesa escrita num processo de milhares de páginas e promoção da pena de demissão.
[...].'
O Conselheiro Relator, no Supremo Tribunal Administrativo, por despacho de 20 de Fevereiro de 2002 (fls. 79-79 vº), não admitiu o recurso, invocando as seguintes razões:
'[...] Constitui requisito de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da al. b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/82, de 15/11, que a decisão recorrida tenha feito aplicação de norma cuja inconstitucionalidade fora arguida pelo recorrente durante o processo. No caso sub judice, o acórdão de fls. 269 e sgs. [o acórdão que consta de fls.
59 e seguintes] que nega provimento ao recurso jurisdicional, limitou-se a considerar que a fixação do prazo de defesa em 20 dias pelo instrutor do processo disciplinar não violou as normas dos «arts. 32º, nº 10 e 18º, nº 1 da CRP, com referência ao art. 6º, nº 3 b) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ainda art. 17º da CRP», tal como foi alegado pelo recorrente na conclusão XXIV, não conhecendo da inconstitucionalidade da norma do art. 59º, nº
2 do E.D., questão que não foi suscitada pelo recorrente. Nestes termos, não se admite o recurso para o Tribunal Constitucional.
[...].'
3. J... reclamou do despacho que não admitiu o recurso (requerimento de fls. 2-4), ao abrigo ao disposto no artigo 76º, nº 4, da Lei do Tribunal Constitucional, com os seguintes fundamentos:
'[...]
2º. Materialmente, o recorrente invocou que, do confronto da prova produzida em sede criminal com a prova produzida em sede disciplinar, resultou que o Instrutor Disciplinar errou de forma grosseira e manifesta (vide conclusão XXI das Alegações do Recorrente).
3º. Porém, o que é incontornável nos presentes autos é o facto de não terem sido concedidas ao arguido, ora reclamante, cabais garantias de defesa.
4º. Independentemente daquilo que se pode considerar como margem de manobra do Instrutor Disciplinar em termos de poder discricionário.
5º. Tendo o ora reclamante revelado na conclusão XXIV das suas Alegações de Recurso que algo está errado quando o poder discricionário é inatacável ao ponto de poder colidir com a Lei Fundamental (artigo 32º, nº 10 e artigo 18º, nº 1 da C.R.P. com referência ao artigo 6º, nº 3 al. b) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ainda art. 17º da C.R.P.).
6º. Colidindo, a norma do artigo 59º, nº 2 do Estatuto Disciplinar aplicada pela entidade sancionatória e que não mereceu reparo por parte do Venerando Supremo Tribunal Administrativo, é materialmente inconstitucional.
7º. Questão obviamente levantada pelo recorrente, ao impugnar materialmente o conteúdo da decisão, ela própria inconstitucional porque estribada em norma disciplinar cujo sentido e alcance interpretado como o foi pela entidade sancionatória a torna inconstitucional.'
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público emitiu parecer, pronunciando-se no sentido do indeferimento da presente reclamação, por considerar que o ora reclamante não suscitou uma questão de inconstitucionalidade em termos procedimentalmente adequados e por entender que a questão enunciada no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade é manifestamente infundada.
II
4. O Supremo Tribunal Administrativo não admitiu o recurso interposto pelo ora reclamante, por considerar que o recorrente não tinha suscitado no processo a questão de inconstitucionalidade que agora pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
O recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional – a alínea invocada no requerimento de interposição do recurso – é o recurso que cabe das decisões dos tribunais 'que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo'.
Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso fundado nessa disposição, exige-se que o recorrente suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma (ou de uma determinada interpretação da norma) que pretende que este Tribunal aprecie e que tal norma (ou essa interpretação da norma) seja aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, não obstante a acusação de inconstitucionalidade.
Nos termos do artigo 72º, nº 2, da mesma Lei, o recurso previsto na mencionada alínea b) só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
O sentido funcional que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem atribuído à exigência constitucional e legal de que a inconstitucionalidade seja invocada durante o processo tem em vista dar ao tribunal recorrido a oportunidade de se pronunciar sobre tal questão, de modo que o Tribunal Constitucional venha a decidir em recurso. Deve portanto em princípio a questão de inconstitucionalidade ser suscitada antes de esgotado o poder jurisdicional do tribunal recorrido.
5. No caso em apreciação, o ora reclamante não suscitou durante o processo, de modo procedimentalmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade normativa a propósito da norma legal, aplicada nos autos, que fixa o prazo em que o arguido deve apresentar a sua defesa em processo disciplinar.
Na verdade, nas alegações de recurso apresentadas perante o tribunal recorrido (o Supremo Tribunal Administrativo) – a peça processual em que o ora reclamante afirma ter suscitado a questão de inconstitucionalidade –, o então recorrente exprimiu-se do seguinte modo (nas conclusões por ele próprio mencionadas no requerimento em que deduziu a reclamação para o Tribunal Constitucional):
'[...]
XXI – E provou-se, à saciedade, que o Sr. instrutor do processo disciplinar errou, de forma grosseira e manifesta, bastando confrontar a prova produzida em sede criminal com a prova produzida em sede disciplinar.
[...] XXIV – O direito de prorrogação do prazo de defesa negado ao arguido e de cujo recurso o tribunal a quo julgou improcedente, violou não só os citados artigos
42º nº 1 e 59º nº 5 do Estatuto Disciplinar mas também as garantias de defesa constitucionalmente consagradas e que vinculam a entidade sancionatória (vide arts. 32º nº 10 e art. 18º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, com referência ao art. 6º nº 3 b) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e ainda art. 17º da CRP).
[...].'
Nas expressões utilizadas não pode ver-se a invocação de qualquer questão de inconstitucionalidade reportada à norma legal que o ora reclamante pretende submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional – a norma do artigo
59º, nº 1, do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro
(ou do artigo 59º, nº 2, do mesmo Estatuto, conforme consta do requerimento através do qual o reclamante deduziu a reclamação do despacho de não admissão de recurso de constitucionalidade).
Aliás, a desconformidade constitucional assinalada pelo ora reclamante nessas alegações dirige-se não a normas aplicadas nos autos, mas à própria decisão judicial então recorrida (o acórdão do Tribunal Central Administrativo). A mesma observação pode de resto fazer-se quanto às formulações utilizadas pelo reclamante para impugnar a decisão de que agora pretende recorrer (o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo), quer no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, quer no requerimento em que deduziu a reclamação de não admissão daquele recurso.
Disse o ora reclamante no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 77):
'[...] o douto acórdão do Supremo Tribunal Administrativo vem confirmar uma punição baseada em factos ilícitos inexistentes de natureza disciplinar e com violação das garantias de defesa que assistem ao arguido, consagradas nos artigos nºs 32º nº 10, 18º nº 1 e 17º da Constituição da República Portuguesa, «maxime» nº 1 e nº 3 alínea b) do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.'
E, no requerimento em que deduziu a reclamação de não admissão do recurso de constitucionalidade (fls. 4), afirmou:
'[...]
Questão obviamente levantada pelo recorrente, ao impugnar materialmente o conteúdo da decisão, ela própria inconstitucional porque estribada em norma disciplinar cujo sentido e alcance interpretado como o foi pela entidade sancionatória a torna inconstitucional'.
6. Assim, não tendo sido suscitada pelo ora reclamante, de modo processualmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade normativa relativamente à disposição legal que pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, conclui-se que não se encontram verificados, no caso em apreço, os pressupostos de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. III
7. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta.
Lisboa, 21 de Maio de 2002 Maria Helena Brito Artur Maurício Luís Nunes de Almeida