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Procº nº 228/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 22 de Abril de 2002 lavrou nos autos o relator decisão com o seguinte teor:-
1. Tendo H... proposto no Tribunal de comarca de Viseu e contra J... e mulher, J..., acção, seguindo a forma de processo sumário, solicitando a declaração de nulidade da doação que efectuara aos réus de um imóvel, onde, segundo alegou, residia, sito no lugar de Robalinho, freguesia de São João de Lourosa, concelho de Viseu, e tendo tal acção, por sentença proferida pela Juíza do 3º Juízo Cível daquele Tribunal, sido julgada improcedente, por não provada, da mesma apelou autora para o Tribunal da Relação de Coimbra.
Na alegação adrede produzida, a autora apresentou, para o que ora releva, as seguintes «conclusões»:-
‘C) ‘A casa de morada de família é para uma grande parte das famílias portuguesas, o único bem com algum significado económico de que dispõem...’ lê-se de págs. III-165 do Ac. de 15 de Dezembro de 1998 do STJ e;
D) Logo no artigo 5.º da p.i. alegou a Apelante o ‘... inalienável direito à casa de morada de família (...) único imóvel de que a A. dispunha para a sua habitação ...’; o que, bem se vê, contenderia, em princípio, com o n.º 1 do art.º 65.º da C.R.P., onde se consagra o direito fundamental à habitação, prevalecendo sobre o direito de uso e disposição da propriedade privada’, lê-se do teor do acórdão Tribunal ‘ad quem’ que decidiu o Agravo interposto no presente processo.
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M) Não faz sentido, hoje no século XXI, que o ordenamento jurídico, contenha norma que permita a realização de negócio como o vertente dos autos. Que alguém que não sabe ler nem escrever, possa sup[o]r que exista norma jurídica que permita negócio contr[á]rio não só ao comando constitucional do art.º 65º da CRP como da jurisprudência uniforme em relação aos casos de colisão entre o direito de propriedade e o direito de uso e habitação.
N) A decisão dos autos é materialmente injusta na medida em que atenta não só contra a Ordem Constitucional Portuguesa como ainda aos limites de auto determinação do [indivíduo], ou seja, ‘um limite à liberdade de cada um (haja ou não lesão directa de alguém) e sendo a sua sanção sempre a nulidade dos actos
...’ conforme se lê de folha 55 da TEORIA GERAL DO DIEITO CIVIL, in Sum[á]rios desenvolvidos para uso dos alunos do segundo ano (1ª turma) do ano jurídico de
1980/1981 do saudoso mestre Orlando de Carvalho quanto aos ‘boni mores’, como ainda dele se lê a folhas 56: ‘assim, a violação aos ‘bons costumes’ e não abuso de direito como se sustenta entre n[ó]s (M. Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1976, pag. 376 e seg.) seria a invocação da validade de um neg[ó]cio feito com reserva mental inocente do declaratário mas, com o intuito exclusivo de o dissuadir de um projecto ruinoso (sublinhado nosso). E ruinoso na medida em que o neg[ó]cio - objecto da presente acção, nas circunst[â]ncias do caso é de tal forma ruinoso para a doadora que a coloca em verdadeira situação de ‘capitis deminutio’, como seja, despojada de um dos mais elementares direitos fundamentais, o direito de habitação.
O) Tal entendimento afronta não só a Ordem Constitucional Portuguesa com[o] ainda a Ordem Jurídica, IN TOTUM, quanto mais não seja por revogação de sistema, dada a evidente antinomia daquele sentido dado à norma com as disposições dos artigos 1484.º n.º 2; 1485.º e 1488.º todos do C. Civil, sendo certo que a prevalecer tal sentido, se pode dizer que a autora se despojou de tudo: do direito ao imóvel, ao seu uso e habitação.
P) O Ac. STJ de 15dez1998 já disse que: ‘... o direito à habitação prevalece sobre o direito de propriedade e o Ac. de 23-9-99. pag. III-29, no seu sumário VIII diz: ‘... O direito à iniciativa e à propriedade privada não é um direito absoluto, devendo, antes, conjugar-se com outros direitos constitucionalmente consagrados, nomeadamente de natureza social, tal como o direito à habitação’.
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 29 de Janeiro de
2002, negou provimento à apelação, essencialmente com base em que se não provou a existência de um vício da vontade ou de uma reserva mental por parte da autora ao efectuar a declaração negocial base da doação que foi consubstanciada na escritura pública, e que um tal negócio se apresentasse como violador dos bons costumes ou ruinoso para a mesma autora.
Desse acórdão veio esta recorrer para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, já que, disse, ‘tanto na Petição Inicial como nas Alegações de Recurso invocou a Recorrente a inconstitucionalidade do artigo 940.º do Código Civil, por violação dos artigos 62.º n.º 1 e 65.º n.º 1 da Constituição da Rep[ú]blica Portuguesa’.
O recurso veio a ser admitido por despacho proferido em 2 de Março de
2002 pelo Desembargador Relator daquele Tribunal de 2ª instância.
2. Não obstante tal despacho, porque o mesmo não vincula o Tribunal Constitucional (cfr. nº 3 do artº 76º da citada Lei nº 28/82) e porque se entende que o recurso não deveria ter sido admitido, elabora-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da mesma Lei, a vertente decisão, por intermédio da qual se não toma conhecimento do objecto da presente impugnação.
Na verdade, como à saciedade resulta das transcrições acima efectuadas, não se lobriga minimamente que a ora recorrente, antes de ser tirado o acórdão intentado colocar sob a censura deste órgão de fiscalização concentrada da constitucionalidade normativa, tivesse suscitado a questão da desconformidade com a Lei Fundamental por banda do artº 940º do Código Civil
(que dispõe que a doação é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente - seu nº 1) ou de uma sua qualquer dimensão interpretativa (que, aliás, nem sequer explicitou qual fosse no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal).
Antes, como deflui das transcritas «conclusões» N) e O), o que a recorrente pôs em causa foi a «injustiça» decorrente da sentença proferida na 1ª instância, que seria atentatória da 'Ordem Constitucional Portuguesa' e da ordem jurídica considerada no seu todo, o que significa que, a aceitar-se haver aqui alguma suscitação de vício de inconstitucionalidade (o que somente se admite para efeitos meramente argumentativos) ele seria assacado, não a uma dada norma jurídica (ou a um seu sentido interpretativo), designadamente, e para o que ora interessa, à ínsita no citado artº 940º, mas sim a uma determinada decisão judicial considerada qua tale.
Ora, como se sabe, objecto dos recursos previstos no artº 70º da Lei nº 28/82 são normas constantes do ordenamento jurídico e não outros actos do poder público.
Em face do exposto, não se toma conhecimento do objecto do recurso, condenando-se a impugnante nas custas processuais, fixando a taxa de justiça em cinco unidades de conta'.
É desta transcrita decisão que vem, ao abrigo do nº 3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, interposta reclamação pela autora H..., tendo, em síntese, defendido:-
- que, na resposta apresentada à contestação no tribunal de 1ª instância, invocou que ' ‘ ... que o negócio-objecto do presente litígio tange a sanção da nulidade, em nosso modesto entender, enquanto, nas circunstâncias concretas do caso, é contrário à lei, enquanto reportável à Ordem Constitucional Portuguesa, ex vi n.º 1 do artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa, em vigor, ... e aos bons costumes na justa medida em que, face àquele comando Constitucional, ser inconcebível que alguém, conscientemente, se disponha a negócio gratuito para se oferecer, de bandeja, ... a ter que pernoitar ao
‘relento da noite’, ao pingar da água debaixo do tabuleiro da ponte, quiçá ao coberto de uma portada de um edifício público...’';
- que, tanto no corpo alegatório, como nas conclusões do recurso de agravo interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, sustentou que o artº
940º do Código Civil se encontrava ferido de inconstitucionalidade, na medida em que ela, autora, se via despojada da única casa de que dispunha para habitação;
- que, na apelação para o mesmo Tribunal de 2ª instância, defendeu que o sentido interpretativo conferido ao aludido artº 940º afrontava a ordem constitucional portuguesa;
- que, em face do tipo de acção intentada, era de pressentir que 'o
‘melindre’ da questão de fundo sempre haveria de ‘enfocar’ num recurso de constitucionalidade'.
Ouvida sobre a deduzida reclamação, a ré J... não efectuou qualquer resposta.
Cumpre decidir.
2. Como ressalta do relatório levado a efeito na decisão sob reclamação, aquando do recurso de apelação da sentença lavrada em 31 de Maio de
2001 no 3º Juízo Cível do Tribunal de comarca de Viseu, a ora reclamante não suscitou, reportadamente ao artº 940º do Código Civil, qualquer vício de desconformidade com a Lei Fundamental, tendo-se limitado a dizer que a decisão então apelada era materialmente injusta e atentatória da ordem constitucional portuguesa, pois que não declarou o negócio jurídico em causa como violador dos bons costumes e, em consequência, o anulou, referindo, ainda, que um tal entendimento afrontava não só aquela ordem constitucional, como a ordem jurídico no seu todo.
Há que convir-se que um tal modo de dizer, de todo em todo, não constitui modo adequado para a suscitação de uma questão de enfermidade constitucional dirigida a uma norma ínsita no ordenamento jurídico.
Por outro lado, era efectivamente a alegação do recurso de apelação que consubstanciava o momento processualmente adequado para colocar ao Tribunal de 2ª instância uma questão de inconstitucionalidade normativa, a fim de este a poder equacionar e sobre ela emitir um juízo decisório.
Como tem sido jurisprudência deste Tribunal, a suscitação da questão de inconstitucionalidade «durante o processo», nos casos em que uma dada decisão judicial é impugnável por via de recurso ordinário, tem de ser entendida por forma a que tal questão seja colocada nesse recurso, para sobre ela haver um veredicto do tribunal superior, não podendo dar-se validade, para efeitos de cumprimento desse ónus, à circunstância de aquela questão ser unicamente suscitada perante o tribunal de inferior hierarquia, não vindo, posteriormente, a ser reiterada no recurso. É que, não o sendo, houve um «abandono» dessa mesma questão e, consequentemente, sobre ela não tinha o tribunal superior o dever de se pronunciar.
Ainda de outra banda, mesmo que se aceite o facto, agora invocado pela reclamante, de que, no recurso de agravo em separado que intentou para o Tribunal da Relação de Coimbra e que foi julgado pela decisão tomada em 19 de Dezembro de 2000, aí tivesse, expressamente, pugnado pela inconstitucionalidade do artº 940º do Código Civil quando interpretado no sentido de poder uma doação recair sobre um imóvel que constituía a única possível habitação do doador, o que é certo é que não é tal decisão a impugnada perante o Tribunal Constitucional (sendo que foi objecto de processo autónomo que não é, evidentemente, o presente), não tendo incidido, assim, sobre a questão de fundo apelada e da qual se pretendeu recorrer perante este órgão de administração de justiça.
Termos em que improcede a reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa,3 de Julho de 2002 Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa