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Processo n.º 721/00
2ª Secção Relator - Cons. Paulo Mota Pinto Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional: I. Relatório Em 20 de Novembro de 1996, V... intentou, no Tribunal Judicial de Guimarães, acção de denúncia de arrendamento urbano contra M... e mulher R... alegando necessitar do imóvel para habitação própria. Os demandados contestaram, impugnando, por um lado, os fundamentos invocados pelo autor e alegando, por outro, que a demandada se encontrava em situação de reforma por invalidez, consubstanciando, desta forma, a factualidade prevista no artigo 107º, n.º 1 do Regime do Arrendamento Urbano, obstando à denúncia do contrato. Por sentença de 6 de Março de 2000 a acção foi considerada procedente e os réus condenados a entregar o arrendado livre de pessoas e bens no prazo de três meses após o trânsito em julgado da sentença. Em 3 de Outubro de 2000, inconformados, estes interpuseram recurso de apelação dessa decisão, com os seguintes fundamentos:
'A Ré encontra-se reformada por invalidez. Ora, nos termos do já referido artigo
107º, n.º 1, alínea a) do Regime do Arrendamento Urbano, o direito de denuncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela alínea a) do n.º 1, do artigo 69º, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias: encontrando-se o arrendatário na situação de reforma por invalidez absoluta.
É manifesto de que da matéria de facto provada resulta expressamente que a Ré–esposa, arrendatária, se encontra na situação de reforma por invalidez. Parece, à partida, que a resposta assim dada ao quesito 25º é obscura, pois não se sabe se a situação de reforma em que a Ré esposa se encontra é por invalidez absoluta ou relativa. Porém, tal situação tal diferença não é suficientemente importante porquanto mesmo a situação de reforma por invalidez relativa obsta à denúncia do contrato de arrendamento por parte do senhorio. Na verdade, a lei fala em invalidez absoluta, como sinónimo de pensão de invalidez e como antónimo de incapacidade total para o trabalho. Tal é, aliás, o sentido a retirar das próprias expressões utilizadas pela lei: ‘... se encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando da pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho’. Quando se trate de reforma concedida ao abrigo do Regime Geral de Segurança Social, a expressão ‘reforma por invalidez absoluta’ constante da alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do Regime de Arrendamento Urbano deve ser interpretada restritivamente no sentido de reforma por invalidez absoluta para o exercício da profissão que o arrendatário exerça. Deste modo, tendo ficado provado a situação de reforma por invalidez por parte de arrendatária, facto que obsta ao exercício do direito de denúncia do contrato de arrendamento, e tendo sido decidida a extinção do contrato de arrendamento, por denúncia, é manifesta a contradição entre a matéria de facto dada como provada e a decisão proferida.
5. O artigo 107º, n.º 1, alínea a) do RAU.
5.1. SEM PRESCINDIR, para o caso, que não se admite nem se concede, de se entender que há diferença entre as noções de reforma por invalidez absoluta e a de invalidez relativa, e, deste modo, só aquela, isto é, a invalidez relativa não só à profissão que o arrendatário exercia, mas toda e qualquer profissão, integra a limitação ao direito de denúncia previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do RAU, então a matéria de facto dada como provada é manifestamente obscura e insuficiente para fundamentar a decisão proferida. Na verdade, apenas ficou provado que a arrendatária se encontra reformada por invalidez, ignorando-se deste modo se tal invalidez é relativa à profissão que aquela exercia ou se abarca toda e qualquer profissão.
5.2. ACRESCE que a ser assim, isto é, fazendo a lei a diferença entre a situação de reforma por invalidez relativa e a de invalidez absoluta e dando apenas a esta última a possibilidade de obstar ao senhorio o exercício do direito de denúncia, então é manifesto que a alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do RAU é INCONSTITUCIONAL, por manifesta violação do disposto no artigo 9º, alínea d), e artigo 13º da Constituição. (...)' Por Acórdão de 6 de Novembro de 2000, o Tribunal da Relação do Porto considerou a apelação improcedente com os fundamentos seguintes:
'(...) Há que extrair do preceito [artigo 107º, n.º 1, alínea a), do RAU], portanto, a interpretação de que para a invalidez do arrendatário funcionar como causa limitativa daquele direito do senhorio tem de ser referente a toda e qualquer profissão ou actividade, isto é, absoluta. A invalidez absoluta contrapõe-se à invalidez relativa que é restrita à própria profissão que se exercia ou a profissão equivalente. É o que se resulta dos artigos 2º e 3º do Dec.-Lei n.º 41/89, de 2/2. Deve entender-se, assim, que só a invalidez absoluta confere ao arrendatário a possibilidade de invocar a excepção prevista na mencionada alínea a) do n.º 1 do art. 107º do RAU.
9º. Os Réus alegaram a situação de reforma por invalidez absoluta da ré, arrendatária. O quesito 25º, onde tal alegação foi vertida, teve resposta restritiva, ao dar-se como ‘provado que a ré se encontrava reformada por invalidez.’ Esta resposta não pode ser alterada pela Relação a não ser nas hipóteses admitidas no artigo 712º do C.P.C. e nenhuma delas ocorre. Ora, não pode falar-se de invalidez absoluta equivalente à incapacidade total para o trabalho – para toda e qualquer profissão ou actividade, repete-se – quando apenas se apura a reforma por invalidez, a qual significa o mesmo que invalidez relativa à função exercida. (...)
10º Na última questão, vertida na conclusão 10ª, os apelantes invocam a inconstitucionalidade da apontada al. a) do n.º 1 do artigo 107º, por a interpretação perfilhada (de só a situação de reforma por invalidez absoluta obstar ao exercício do direito de denúncia) violar o disposto nos arts. 9º, alínea d) e 13º da Constituição.
11º Estabelece o citado art. 9º, al. d) ser tarefa fundamental do Estado promover... a igualdade real entre os portugueses... Por sua vez, o art. 13º refere-se ao princípio da igualdade, impondo que todos os cidadãos sejam tratados de forma igual, sem privilégios, benefícios, prejuízos ou privações em razão da... situação económica ou condição social.
É evidente que estes preceitos constitucionais não se mostram violados pelo determinado na referida alínea a) do n.º 1 do art. 107º do RAU já que o que ali se impõe é que haja igual tratamento para o que fôr igual perante a lei, mas já não o prescrevendo para o que fôr desigual. O que se pretende com a dita al. a) é que o arrendatário que esteja na situação de reforma por invalidez absoluta, por padecer de incapacidade para o trabalho, não veja o seu direito à habitação prejudicado em razão da sua impossibilidade para angariar meios económicos, as mais das vezes em idade avançada. Só para esses, e não para os que, como a ré, sofrem de invalidez relativa, é que se justifica que não possa ser exercido o direito de denúncia do contrato por parte do senhorio. A invalidez absoluta é uma realidade jurídica e social diferente da invalidez relativa. Daí que os arrendatários que se encontrem na situação de reforma por uma ou por outra, não se apresentem em igualdade de circunstâncias, aceitando-se e compreendendo-se que sejam merecedores de tratamento diferenciado na norma do RAU em apreço. Não se verifica, portanto, a alegada violação dos arts. 9º, al. d) e 13º da Constituição por essa lei, na interpretação acolhida. (...)' Inconformados, os demandados interpuseram o presente recurso de constitucionalidade desta decisão, com base no artigo 70º, n.º 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
'PRIMEIRA. A alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do RAU – trata desigualmente o que é igual e igual o desigual, pelo que viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da CRP e, como tal, é INCONSTITUCIONAL. SEGUNDA. Tal não seria assim se se entendesse reforma por invalidez absoluta no sentido restrito, ou seja, quando se trate de reforma concedida ao abrigo do Regime Geral de Segurança Social, a expressão ‘reforma por invalidez absoluta’ constante da alínea a) do artigo 107º do RAU deve ser interpretada restritivamente no sentido de reforma por invalidez absoluta para o exercício da profissão que o arrendatário exerça. TERCEIRA. Não o fazendo não permite sequer a quem esteja na situação de invalidez, mesmo que ‘absoluta’, de fazer prova dessa situação uma vez que a lei relativa à Segurança Social apenas trata da situação de invalidez, não distinguindo entre invalidez relativa ou absoluta, tal como se alcança, aliás, do Decreto-Lei n.º 329/93, de 25 de Setembro. QUARTA. É o que dispõe o artigo 13º da CRP que todos os cidadãos têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei. Ser igual perante a lei não significa apenas aplicação da lei. A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos. O princípio da igualdade dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o
à criação de um direito igual para todos os cidadãos, devendo tratar-se por igual o que é igual e desigualmente o que é desigual, tendo em conta a proibição do arbítrio. QUINTA. Tal princípio é violado no caso da desigualdade do tratamento surgir de uma forma arbitrária SEXTA. O que acontece relativamente à referida alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do RAU, pois que a disciplina jurídica aí se estatui não se baseia num fundamento sério e até entra em conflito com a disciplina jurídica da segurança social, estabelecendo uma diferenciação jurídica entre reforma por invalidez absoluta e relativa sem um fundamento razoável.' Por sua vez, o recorrido apresentou contra-alegações a defender que devia ser negado provimento ao recurso, dizendo, designadamente, que:
'(...) só uma situação particularmente grave, como é a de um trabalhador totalmente incapaz de desempenhar qualquer profissão poderá explicar a impossibilidade de ser objecto de despejo. Por outro lado, se a lei estabelece uma distinção entre invalidez absoluta e invalidez relativa do locatário, não se vê como se possa dizer, como fazem os recorrentes, que desse modo a lei diferencia o que é substancialmente igual. Uma coisa é, em sede de política legislativa discutir se é ou não justificável estabelecer uma disciplina jurídica para a invalidez absoluta e uma outra disciplina jurídica para a invalidez relativa, outra coisa, completamente distinta, é dizer que essa distinção contende com o princípio constitucional da igualdade. De facto, é bem diferente a situação do arrendatário que por sofrer, por exemplo, de uma incapacidade por força de uma doença de foro neurológico, não pode exercer qualquer profissão e tem até, eventualmente, necessidade de ser assistido por uma terceira pessoa (invalidez absoluta), da situação de um arrendatário que por sofrer de uma doença da coluna vertebral, não pode transportar cargas, mas pode ser escriturário ou telefonista (invalidez relativa). A lei distingue pois razoavelmente duas situações bem diferentes estabelecendo para uma e outra também soluções distintas.' Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, e tem por objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 107º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano. Como resulta da descrição efectuada, a desconformidade constitucional desta norma foi suscitada pelos recorrentes durante o processo, nas alegações de recurso produzidas perante o tribunal recorrido, e foi a sua aplicação, no segmento em que prevê, como limitação ao direito de denúncia para habitação própria, apenas a situação de reforma do arrendatário por invalidez absoluta, e não já por invalidez relativa, que fundou a decisão de negação de provimento ao recurso de apelação. Há, pois, que tomar conhecimento do presente recurso de constitucionalidade. Dispõe a norma do artigo 107º, n.º 1, alínea a) do Regime do Arrendamento Urbano:
'1 – O direito de denúncia do contrato de arrendamento, facultado ao senhorio pela alínea a) do nº 1 do artigo 69º, não pode ser exercido quando no momento em que deva produzir efeitos ocorra alguma das seguintes circunstâncias: a) Ter o arrendatário 65 ou mais anos de idade ou, independentemente desta, se encontre na situação de reforma por invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de invalidez, sofra de incapacidade total para o trabalho;
(...)' Foi esta redacção da norma, constante já da versão originária do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, a que foi aplicada pelo tribunal recorrido. Recorde-se, a propósito, que, no Código Civil de 1966, não se previam limitações deste tipo ao direito de denúncia do senhorio, para habitação própria (o qual não era aplicável, porém, às casas de saúde e aos estabelecimentos de ensino), tendo tais limitações, ditadas por preocupações de justiça social, sido introduzidas pela Lei n.º 55/79, de 15 de Setembro. Este diploma, no seu artigo
2º, veio excluir o direito de denúncia do arrendamento urbano pelo senhorio facultado pela alínea a) do n.º 1 do artigo 1096º do Código Civil quando o inquilino tivesse 65, ou mais, anos de idade. Pela Lei n.º 46/85, de 20 de Setembro, por sua vez, a alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º dessa Lei n.º 55/79 foi alterada, passando a incluir, como limitação do direito de denúncia, igualmente a circunstância de, independentemente da idade, o inquilino 'estar na situação de reforma antecipada por motivo de doença ou invalidez absoluta, ou, não beneficiando de pensão de reforma, se encontrar incapacitado para o trabalho por invalidez'. E tais limitações relativas à idade e à situação de invalidez ou incapacidade para o trabalho do inquilino foram reproduzidas pela alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do RAU, ora em questão. A alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-B/2000, de 22 de Dezembro – diploma que, autorizado pela Lei n.º 16/2000, de 8 de Agosto, veio, além do mais, restabelecer as previsões do direito de denúncia do contrato para habitação ou construção da residência de descendentes em 1.º grau do senhorio e de um prazo de 30 anos, como período de permanência no arrendado que limita o exercício do direito de denúncia –, pela qual se aditou, no referido artigo
107º, n.º 1, alínea a), às limitações resultantes de reforma por invalidez absoluta e de incapacidade total para o trabalho, a resultante de o arrendatário ser portador de deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços, não é pois relevante no presente caso, tendo-se, aliás, produzido já depois da própria decisão recorrida (e recorde-se que a acção de denúncia do arrendamento para habitação própria fora intentada em Novembro de 1996). O que está em questão no presente recurso não é, porém, a conformidade constitucional da própria previsão do direito de denúncia do contrato para habitação própria do senhorio – vejam-se os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 131/92 e 151/92, e também o Acórdão n.º 174/92 (publicados, respectivamente, em Acórdãos do Tribunal Constitucional [ATC], 21º vol., págs. 505 e segs. e 513 e segs., e no Diário da República [DR], II série, de 7 de Maio de 1992), que não julgaram inconstitucional o artigo 1096º, n.º 1, alínea a) do Código Civil, na parte em que previa a denúncia do arrendamento pelo senhorio que necessitasse da casa arrendada para sua habitação –, ou da existência de limitações a tal direito, resultantes da idade avançada, da invalidez do inquilino, ou da permanência do inquilino no local arrendado, por um determinado período de tempo
– cfr. o Acórdão n.º 425/87 (ATC, 10º vol., págs. 451 e segs.), que não julgou inconstitucional a norma da alínea b) do n.º 1 do artigo 2º da Lei n.º 55/79, de
15 de Setembro, que excluía o direito de denúncia do senhorio para habitação própria quando o inquilino nele se houvesse mantido há mais de vinte anos.; e, mais recentemente, o Acórdão n.º 97/2000 (DR, série I-A, de 17 de Março de
2000), que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 107.º, n.º 1, alínea b), do Regime do Arrendamento Urbano, por violação do artigo 168.º, n.º 1, alínea h), da Constituição, na redacção de
1989. Nem, sequer, se prende tal questão com a comparação das idades ou das situações relativas de senhorio e arrendatário. A questão de constitucionalidade que se pretende ver apreciada refere-se antes, e precisamente, à não inclusão nas limitações ao direito de denúncia para habitação própria também da situação de invalidez relativa, pois foi essa não inclusão que constituiu a ratio decidendi para o tribunal a quo – recorde-se que o quesito respeitante à qualificação da situação da demandada arrendatária como sofrendo de invalidez absoluta foi objecto de uma resposta restritiva, abrangendo apenas uma situação de invalidez.
É certo que o que deva entender-se, para efeitos de excluir o direito de denúncia, por invalidez absoluta, não é definido no próprio Regime do Arrendamento Urbano. Tal conceito de invalidez absoluta era, porém, à data da aprovação do Regime do Arrendamento Urbano – e já mesmo anteriormente –, utilizado na lei para designar a 'invalidez para toda e qualquer profissão ou actividade', contraposto à invalidez relativa, entendida como 'invalidez para a própria profissão' (assim, no Decreto-Lei n.º 41/89, de 22 de Dezembro, nos seus artigos 2º e 3º, para regular a acumulação de pensões de invalidez com rendimentos de trabalho). Pode, pois, presumir-se que o legislador do Regime do Arrendamento Urbano, terá pretendido utilizar a expressão com tal sentido, legalmente consagrado à data. Isto, tanto mais quanto tal interpretação destes conceitos era, também, já perfilhada na jurisprudência anteriormente a 1990 (continuando a sê-lo posteriormente), entendendo-se que a invalidez absoluta tinha de ser entendida como incapacidade total para o trabalho (vejam-se indicações, por exemplo, em Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, Coimbra, 1996, págs. 770 e seg., perfilhando esse entendimento e afirmando que a previsão legal de incapacidade total para o trabalho o reforça, pois as expressões equivaler-se-iam, com a particularidade, porém, de neste último caso faltar uma situação de reforma), e não apenas como uma grande invalidez. E tal conclusão é, ainda reforçada pela própria alteração, já referida, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 329-B/2000, que acrescentou às situações de invalidez absoluta e de incapacidade total para o trabalho, a deficiência a que corresponda incapacidade superior a dois terços.
É certo que o Decreto-Lei n.º 329/93, de 25 de Setembro, que estabeleceu o novo regime de protecção na velhice e na invalidez dos beneficiários do regime geral de segurança social (entretanto alterado já pelo Decreto-Lei n.º 437/99, de 29 de Outubro), veio disciplinar diversamente a acumulação de pensões com rendimentos do trabalho, nos seus artigos 57º a 59º, permitindo a acumulação, mas estabelecendo-lhe limites e prevendo uma redução da pensão de invalidez por efeito da acumulação, e que, dessa forma, abandonou o emprego, para tal efeito, das noções de invalidez absoluta e de invalidez relativa (definindo antes a
'eventualidade invalidez' como 'toda a situação mórbida, de causa não profissional, determinante de incapacidade permanente para o trabalho'). Tal não significa, porém, que a relevância de tal noção de 'invalidade absoluta' tenha – ou deva ter, por motivos constitucionais – de ser abolida para todos os efeitos, quer por se entender que as respectivas previsões foram alteradas, quer por se entender que se não pode fazer prova dessa situação. Na verdade, não só esta prova continua a ser possível – seja ela feita ou não pela respectiva certificação para efeitos da pensão de reforma –, como continuaram a subsistir previsões legais que atribuiram relevância às situações de invalidez absoluta, mesmo posteriormente a 1997 – cfr., para efeitos relacionados com habitação, por exemplo, o artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 165/93, de 7 de Maio (contratos de desenvolvimento para habitação), o artigo 8º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 166/93, de 7 de Maio (regime de renda apoiada), e, posteriormente, o artigo 3º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 109/97, de 8 de Maio. Será, pois, que a previsão, como limite do direito de denúncia do contrato para habitação própria, apenas da situação do arrendatário de reforma por invalidez absoluta, entendida como 'invalidez para toda e qualquer profissão ou actividade', e não também da de reforma por invalidez relativa ('invalidez para a própria profissão'), pode ser considerada inconstitucional? Segundo os recorrentes, tal exclusão das situações de invalidez relativa violaria o artigo 9º, alínea d), da Constituição, e o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado. Ora, pode desde já afastar-se a existência de inconstitucionalidade material por violação desta disposição. Mesmo deixando em aberto a questão de saber se é configurável uma inconstitucionalidade por acção por violação directa de uma das diversas alíneas do artigo 9º da Constituição, que prevêem tarefas fundamentais do Estado, tem-se por adquirido que a norma contida na alínea d), que prevê a tarefa de 'promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais', não seria violada pela falta de previsão dos limites ao direito de denúncia do senhorio para habitação própria contidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 107º do Regime do Arrendamento Urbano. Na verdade, tal tarefa comporta, na sua determinação concreta, múltiplas opções e juízos políticos, não podendo determinar-se a partir da sua previsão, logo ao nível constitucional, uma imposição de previsão de tais limites ao direito de denúncia para habitação própria –tal como não podia dizer-se que, antes da previsão de tais limites (antes de 1979), ou antes da inclusão neles das situações de invalidez (antes de 1985), o desempenho tal tarefa estaria, por isso, a ser contrariado. Os recorrentes invocam, também, a violação do princípio da igualdade, pela exclusão das situações de invalidez que não seja para toda e qualquer profissão. Sobre o sentido do controlo de constitucionalidade material de soluções legislativas que lhe incumbe efectuar à luz do princípio da igualdade, já este Tribunal tomou posição por diversas vezes. Pode, assim, recordar-se o que, recentemente, se escreveu a propósito no ponto 26 do Acórdão n.º 187/01 (DR, II série, de 26 de Junho de 2001):
«(...)
É sabido que o princípio da igualdade, tal como tem sido entendido na jurisprudência deste Tribunal, não proíbe ao legislador que faça distinções – proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos e relevantes. É esta, aliás, uma formulação repetida frequentemente por este Tribunal (cf., por exemplo, os Acórdãos deste Tribunal n.ºs 39/88, 325/92, 210/93, 302/97, 12/99 e
683/99, publicados, nos ATC, respectivamente, vol. 11º, pp. 233 e ss.,vol. 23º, pp. 369 e ss., vol. 24º, pp. 549 e ss., vol. 36º, pp. 793 e ss., e no Diário da República, II Série, de 25 de Março de 1999, e de 3 de Fevereiro de 2000). Como princípio de proibição do arbítrio no estabelecimento da distinção, tolera, pois, o princípio da igualdade a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante. Ao impor ao legislador que trate de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual, esse princípio supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade, e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual, não podem ser arbitrárias. Antes tem de se poder considerar tal justificação para a distinção como razoável, constitucionalmente relevante. O princípio da igualdade apresenta-se, assim, como um limite à liberdade de conformação do legislador. Como se salientou no Acórdão n.º 425/87 (ATC, vol.
10º, pp. 451 e ss.),
'O âmbito de protecção do princípio da igualdade abrange diversas dimensões: proibição do arbítrio, sendo inadmissíveis, quer a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos constitucionalmente relevantes, quer a identidade de tratamento para situações manifestamente desiguais; proibição de discriminação, não sendo legítimas quaisquer diferenciações de tratamento entre os cidadãos baseadas em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; obrigação de diferenciação, como forma de compensar a desigualdade de oportunidades, o que pressupõe a eliminação pelos poderes públicos de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 2ª ed., Coimbra, 1984, pp. 149 e segs.). A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou de decisão dos poderes públicos, servindo o princípio da igualdade como princípio negativo do controlo. Todavia, a vinculação jurídico-material do legislador a este princípio não elimina a liberdade de conformação legislativa, pois lhe pertence, dentro dos limites constitucionais, definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente. Só existe violação do princípio da igualdade enquanto proibição de arbítrio quando os limites externos da discricionariedade legislativa são afrontados por carência de adequado suporte material para a medida legislativa adoptada. Por outro lado, as medidas de diferenciação devem ser materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da praticabilidade, da justiça e da solidariedade, não se baseando em qualquer razão constitucionalmente imprópria.' Mais recentemente, no Acórdão n.º 409/99 (DR, II série, de 10 de Março de 1999) disse-se que:
'O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adopção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (cf., quanto ao princípio da igualdade, entre outros, os Acórdãos nºs 186/90,187/90,188/90,1186/96 e 353/98, publicados in ‘Diário da República’, respectivamente, de 12 de Setembro de 1990, 12 de Fevereiro de 1997, e o último, ainda inédito).' E no Acórdão 245/00 (DR, II série, de 3 de Novembro de 2000) salientou-se que
'(...) tem, de há muito, vindo a afirmar este Tribunal que é ‘sabido que o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionaridade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias – e assumem, desde logo, este carácter as diferenciações de tratamentos fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º da Lei Fundamental –, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável
(vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)’ (cfr., por entre muitos outros, o Acórdão nº 1186/96, publicado no Diário da República,
2ª Série, de 12 de Fevereiro de 1997), ou, dito ainda de outra forma, o
‘princípio da igualdade (...) impõe se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e se trate diferentemente o que diferente for. Não proíbe as distinções de tratamento, se materialmente fundadas; proíbe, isso sim, a discriminação, as diferenciações arbitrárias ou irrazoáveis, carecidas de fundamento racional’ (verbi gratia, Acórdão nº 1188/96, ob. cit., 2ª Série, de
13 de Fevereiro de 1997).'» Nesta perspectiva, há agora que apurar se a norma em apreciação sub specie constitutionis se pode considerar violadora do princípio da igualdade. Como já resulta dos próprios termos da distinção entre 'invalidez absoluta' e
'invalidez relativa', acima efectuada, não pode dizer-se que a distinção entre estas duas situações, para o efeito de obstar à denúncia do arrendamento para habitação própria do senhorio, seja arbitrária ou destituída de fundamento racional. Na verdade, o arrendatário que esteja na situação de reforma por invalidez absoluta, e que não possa, pois, exercer toda e qualquer profissão, não está em situação idêntica à do arrendatário que se tenha reformado por sofrer apenas de invalidez para a própria profissão. Designadamente, enquanto a possibilidade de angariar meios económicos, através do exercício de uma outra profissão não é excluída nesta última situação, já não é assim nas situações de invalidez absoluta. A 'invalidez absoluta' é, aliás, como salienta o recorrido 'uma realidade jurídica e social diferente da invalidez relativa', não tendo a situação dos arrendatários que se encontrem na situação de reforma por uma ou por outra de ser objecto de tratamento idêntico pelo legislador (tendo, aliás, como se referiu, a invalidez absoluta continuado a ser considerada relevante pelo legislador, em 1993 e posteriormente, para diversos efeitos relacionados com o direito à habitação). Não pode, pois, censurar-se como arbitrária ou destituída de fundamento razoável a distinção entre ambos, para os sujeitar a um tratamento diferenciado na norma do Regime do Arrendamento Urbano em apreço – ou seja, tem de aceitar-se que, da perspectiva do legislador, apenas a situação de invalidez para toda e qualquer profissão (invalidez absoluta), e já não a invalidez apenas para a própria profissão que o reformado exercia (invalidez relativa), seja suficientemente grave, da perspectiva da necessidade de protecção do reformado, para justificar que o senhorio não possa exercer o seu direito de denúncia do contrato para habitação própria. Tal justificação para esta desigualdade de tratamento não pode ser considerada arbitrária, antes sendo de considerar como razoável, ligando-se à medida da necessidade de tutela do arrendatário. Não se divisa, pois, qualquer violação do princípio da igualdade na norma em apreço. Refira-se, ainda, que a norma do artigo 107º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano, ao prever como limitação ao direito de denúncia para habitação própria a situação de reforma do arrendatário por invalidez absoluta, e não apenas por invalidez relativa, também não pode considerar-se violadora do disposto no artigo 65º da Constituição, que consagra, como direito social, o direito à habitação. Basta, para o concluir, independentemente de quaisquer outras considerações relativas ao conteúdo preceptivo da norma em questão ou à natureza do direito à habitação referido (cuja concretização pelo Estado está sujeita, e como este Tribunal tem reconhecido, a uma 'reserva do possível', designadamente, do ponto de vista económico e financeiro – veja-se, por exemplo, o que a propósito se diz no Acórdão deste Tribunal, n.º 420/00, DR, II Série, de 22 de Novembro de 2000), a notar que, na situação em causa, estão em confronto as necessidade de habitação tanto do arrendatário como do senhorio, pois a situação de reforma por invalidez releva na norma em questão para excluir o direito do senhorio de denúncia do contrato para habitação própria. Nem, por último, pode dizer-se que a exclusão da situação de reforma por invalidez para a própria profissão que exerciam, mas não para toda e qualquer profissão, do âmbito das circunstâncias que impedem o senhorio de denunciar o arrendamento para habitação própria seja violadora do disposto no artigo 71º, n.º 2, da Constituição. Nesta norma constitucional prevê-se a obrigação do Estado de realizar uma
'política nacional de prevenção e de tratamento, reabilitação e integração dos cidadãos portadores de deficiência e de apoio às suas famílias', de desenvolver uma 'pedagogia que sensibilize a sociedade quanto aos deveres de respeito e solidariedade para com eles' e de 'assumir o encargo da efectiva realização dos seus direitos, sem prejuízo dos direitos e deveres dos pais ou tutores'. Porém, mesmo admitindo que a situação dos reformados por invalidez relativa se enquadra na previsão desta norma, prevêem-se aí deveres de protecção a cargo do Estado cuja concretização depende também da formulação das políticas adequadas para tal. Não pode, porém, fazer-se derivar dessa previsão constitucional o dever de equiparar concretamente a situação dos reformados por invalidez relativa à dos reformados por invalidez para toda e qualquer profissão, para o efeito de obstar à denúncia do arrendamento para habitação própria. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a. Não julgar inconstitucional o artigo 107º, n.º 1, alínea a), do Regime do Arrendamento Urbano, no segmento em que apenas prevê como limitação ao direito de denúncia para habitação própria a situação de reforma do arrendatário por invalidez absoluta, e não por invalidez relativa; b. Consequentemente, negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, no que à questão de constitucionalidade respeita. c. Condenar os recorrentes em custas, com 15 ( quinze) unidades de conta de taxa de justiça. Lisboa, 6 de Maio de 2002 Paulo Mota Pinto Bravo Serra Guilherme da Fonseca Maria Fernanda Palma (votei o Acórdão sob o pressuposto de que uma correcta interposição jurídica do conceito de ainda situações em que os efeitos sociais da incapacidade para uma certa profissão sejam praticamente tão graves como os de uma invalidez absoluta num sentido formal. Penso que a distinção se for assumida formal e rigidamente poderá conduzir a um tratamento injusto e desigual de situações de gravidade social concretamente semelhantes. A distinção entre estes dois tipos de invalidez há-de ser encarada sob a perspectiva de uma fuzzy logic e não de uma distinção conceptual e formal). José Manuel Cardoso da Costa