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Procº nº 295/2002.
2ª Secção. Relator:- BRAVO SERRA.
1. Em 15 de Maio de 2002 lavrou o relator decisão sumária com o seguinte teor:-
'1. Perante o Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa impugnou
W..., S.A., a liquidação, efectuada pelo 5º Cartório Notarial de Lisboa, de emolumentos notariais, no montante de Esc. 2.513.783$00, devidos pela impugnante em virtude da celebração de uma escritura pública por intermédio da qual foi efectuado aumento do seu capital social e alteração do respectivo pacto social.
Por sentença de 5 de Dezembro de 2001, o Juiz do 3º Juízo daquele Tribunal anulou o acto impugnado, para tanto tendo recusado a aplicação do nº 1 da Portaria nº 996/98, de 25 de Novembro, por violação da alínea i) do nº 1 do artigo 165º da Constituição, já que, no seu entendimento, a Tabela de Emolumentos do Notariado por ela aprovada, no que respeita ao seu artº 5º, se configura como consagrando um imposto e não uma taxa.
É do assim decidido que, pelo Representante do Ministério Público, vem, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artº 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, interposto recurso para o Tribunal Constitucional, com vista à apreciação da inconstitucionalidade do nº 1 da citada Portaria e do artº 5º da Tabela de Emolumentos do Notariado por ela aprovada.
2. A questão aqui em apreço foi já objecto de análise por banda deste
órgão de administração de justiça.
Ocorreu essa análise por intermédio do Acórdão nº 115/2002, tirado em Plenário e ainda inédito, o qual concluiu pela não desconformidade constitucional do aludido artº 5º.
Respiga-se desse aresto a seguinte fundamentação:-
‘............................................................................................................................................................................................................................................
1. - O presente recurso tem como objecto a norma constante do artigo
5º da Tabela de Emolumentos do Notariado, aprovada pelo Decreto-Lei nº 397/83, de 2 de Novembro, que se encontrava em vigor no momento da liquidação e a qual foi efectivamente aplicada.
A disposição em causa segue-se a uma outra (o artigo 4º), onde se estabelecem valores emolumentares fixos para os actos notariais.
O artigo 5º tem o seguinte teor:
Artigo 5º Se o acto que constitui objecto da escritura for de valor determinado, aos emolumentos previstos no artigo anterior acrescem, sobre o valor total do acto, por cada 100$ ou fracção: a. Até 200
000$..............................................................10$00 b. De 200 000$ a 1 000 000$.......................................... 5$00 c. De 1000 000$ a 10 000 000$........................................4$00 d. Acima de 10 000 000$, sobre o excedente....................3$00
A Tabela de Emolumentos do Notariado referida foi entretanto substituída pela Tabela aprovada pela Portaria nº 996/98, de 25 de Novembro, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 145/85, de 8 de Maio
(rectificada pela Declaração nº 22-A/98, publicada no Diário da República I-B de
2 de Dezembro e alterada pelas Portarias nºs 1007-A/98, de 2 de Dezembro e
684/99, de 24 de Agosto). Esta última mantém um regime basicamente semelhante para o cálculo dos emolumentos devidos pela prática de actos notariais de valor determinado, mas introduziu, através do seu artigo 22º, um limite máximo de emolumentos a cobrar por cada acto.
Finalmente, entrou em vigor no dia 1 de Janeiro do ano em curso outro diploma, o Regulamento Emolumentar dos Registos e do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei nº 322-A/2001, de 14 de Dezembro (artigo 1º), introduzindo uma nova disciplina de tributação da actividade notarial e registral, onde, como se lê do respectivo preâmbulo, se pretende obter, a par da simplificação e da sistematização da matéria, o ‘estabelecimento de uma norma de proporcionalidade’.
Confessadamente, a reforma introduzida na área da tributação emolumentar dos actos praticados nos serviços dos registos e do notariado, levada a efeito pelo novo Regulamento que o Decreto-Lei nº 322-A/2001 aprovou, teve em vista a adaptação do regime vigente à jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias (TJCE), na preocupação de assegurar uma actualização atempada dos montantes das taxas previstas, do mesmo passo garantindo a proporcionalidade da tributação ‘pela sistemática e permanente actualização dos tipos de receita relativamente aos fluxos de despesa verificados ano a ano, bem como a avaliação da receita cessante derivada da existência de isenções ou reduções emolumentares’.
Não nos ocuparemos, no entanto, dessa nova disciplina que, por um lado, é irrelevante para a economia do acórdão e, por outro, veio dar resposta a uma questão que se insere em plano diferente do padrão normativo de controlo a ter em conta no presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
2. - O problema de constitucionalidade suscitado reside na alegada violação, pelo artigo 5º da mencionada Tabela, do nº 2 do artigo 106º da Constituição (correspondente ao artigo 103º, na redacção resultante da Revisão Constitucional aprovada pela Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro) e da alínea i) do nº 1 do artigo 168º do mesmo texto (hoje, artigo 165º).
Das duas normas constitucionais citadas decorre a consagração do princípio da legalidade fiscal, quer na sua dimensão de reserva material de lei – directamente assente no nº 2 do artigo 106º –, quer na dimensão da reserva (relativa) de lei da Assembleia da República [alínea i) do nº 1 do artigo 168º], sendo certo que, neste recurso, está fundamentalmente em causa a circunstância de o artigo 5º da Tabela em referência constar de decreto-lei não precedido de autorização legislativa.
O texto constitucional em consideração – ou seja, a versão anterior à IV Revisão Constitucional – integrava a matéria relativa à criação de impostos e sistema fiscal na área da reserva relativa da competência legislativa parlamentar, mas já aí não inseria a respeitante ao regime geral das taxas, como passou a estar incluída após a revisão de 1997.
Deste modo, indagar da eventual incompatibilidade com a Constituição da norma que constitui o objecto deste recurso exige averiguar se o tributo nela previsto deve ser tratado como uma taxa ou como um imposto, tendo em conta a teleologia constitucional.
3.1. - O Tribunal Constitucional já por diversas vezes foi chamado a pronunciar-se sobre o problema da distinção constitucional entre imposto e taxa.
O critério básico de diferenciação com que tem operado consiste na unilateralidade ou bilateralidade dos tributos: enquanto o imposto tem estrutura unilateral, a taxa caracteriza-se pelo seu carácter bilateral e sinalagmático.
Assim, a estrutura das taxas supõe a existência de uma correspectividade entre a prestação pecuniária a pagar e a prestação de um serviço pelo Estado ou por outra entidade pública.
Como se escreveu no acórdão nº 558/98, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Novembro de 1998, que se debruçou sobre a natureza jurídica das ‘taxas de publicidade’ previstas em regulamento de taxas e licenças municipais, a relação sinalagmática característica da taxa implica uma contrapartida do ente público, sendo entendimento da doutrina que ‘são essencialmente três os tipos de situações em que essa contrapartida se verifica e que se consubstanciam na utilização de um serviço público de que beneficiará o tributado, na utilização, pelo menos, de um bem público ou semi-público ou de um bem do domínio público e, finalmente, na remoção de um obstáculo jurídico ao exercício de determinadas actividades por parte dos particulares’ (assim, Teixeira Ribeiro, Lições de Finanças Públicas, 5ª ed., Coimbra, 1995, págs. 252 e segs. e ‘Noção Jurídica de Taxa’ in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 117º, págs. 289 e segs.; Paulo de Pitta e Cunha, José Xavier de Basto e António Lobo Xavier, ‘Os Conceitos de Taxa e Imposto A Propósito de Licenças Municipais’, in Fisco, nºs. 51/52, págs. 3 e segs.).
Mas, como então se escreveu, ‘quando em causa se encontra a terceira daquelas situações (rememore-se, a que consiste no levantamento do obstáculo jurídico ao exercício de determinada actividade por parte do tributado), defende a doutrina que o encargo pela remoção – in casu, a concessão de licenciamento para a afixação ou inscrição de publicidade – só pode configurar-se como ‘taxa’ se com essa remoção se vier a possibilitar a utilização de um bem semipúblico (v. autores por último citados e Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, 4ª ed., vol. 1, p. 33, que, em vez de bens semipúblicos, fala de bens colectivos, quer públicos ou privados de uma perspectiva de provisão pública, quer de bens colectivos impuros)’.
E tem sido esse o entendimento do Tribunal Constitucional.
O legislador, entretanto, veio dispor, na Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro: enquanto as taxas assentam ‘na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo ao comportamento dos particulares’ – nº 2 do artigo 4º – os impostos ‘assentam essencialmente na capacidade contributiva, revelada, nos termos da lei, através do rendimento ou da sua utilização e do património’ – nº 1 do mesmo preceito.
3.2. - A exigência de uma relação sinalagmática, como pressuposto para que se possa falar de taxa, reveste-se de carácter substancial ou material, e não meramente formal.
A este propósito, Cardoso da Costa menciona ‘o relevo que ao tópico da «proporcionalidade» não deixa de ser reconhecido na jurisprudência do Tribunal, como marca de uma real (e não simplesmente aparente) sinalagmaticidade das «taxas» - pese o facto de na teoria destas últimas (como se sabe) tal característica típica essencial dessa figura assumir um relevo fundamentalmente «estrutural-formal», e ser compatível, assim, com taxas de montante superior (e, porventura, até consideravelmente superior) ao custo do serviço prestado’ (cfr. ‘O enquadramento constitucional do Direito dos impostos em Portugal: a jurisprudência do Tribunal Constitucional’ in Perspectivas Constitucionais – Nos 20 anos da Constituição de 1976, II, Coimbra, págs. 404
–405).
Outro autor, Robin de Andrade, defende que a fixação da taxa deve ser feita em valores que tenham uma qualquer relação com a contraprestação proporcionada, sem o que ‘seria meramente formal o seu fundamento, e a taxa facilmente poderia ser utilizada como um verdadeiro imposto, quebrando-se a própria coerência e a consistência do sistema jurídico’
(Cfr. ‘Taxas Municipais – Limites à sua Fixação (Parecer Jurídico)’, in Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº 8, pág. 68). Mas, como também observa, o próprio fundamento da taxa como preço, autoritariamente fixado, por uma utilidade atribuída a um administrado, impõe que ‘o montante da taxa se situe dentro de valores que possam ser reconhecidos como a contrapartida do uso privativo concedido, ou seja, que não excedam o valor que pode ser reconhecido pela ordem jurídica a esse uso’ (loc. cit.).
Casalta Nabais, por sua vez, ao referir-se à relação entre a prestação e a contraprestação que nas taxas está em causa, escreve (O Dever Fundamental de pagar impostos, Coimbra, 1998, págs. 263 – 264) que ‘se, por um lado não exige que, na relação bilateral em que se concretiza a taxa, se verifique uma remunerabilidade idêntica à da relação homóloga dos contratos bilaterais, por outro, também não se pode bastar com a ideia de que é suficiente a existência de uma qualquer «prestação» pública individualmente imputável, para se encontrar preenchido o seu pressuposto de facto. Se o primeiro entendimento reduz directamente o campo das taxas, pois atira a generalidade delas para o domínio dos impostos, o segundo alarga-o extremamente, já que, ancorando-se num critério meramente formal, considera taxas todos os tributos que o legislador assim qualifique, desde que em relação a eles se verifique a mencionada imputabilidade individual, o que significa, nomeadamente, que nelas se incluem as contribuições e tributos especiais que [...], constituem, por via de regra, verdadeiros impostos’.
3.3. - Pode, assim, concluir-se que a qualificação como taxa de um dado tributo não depende da verificação de uma equivalência económica rigorosa entre o valor do serviço e o montante da quantia a prestar pelo utente desse serviço.
De resto, assim o vem considerando a jurisprudência do Tribunal Constitucional, como é o caso do acórdão nº 357/99, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de Março de 2000, onde se ponderou:
‘Tem ainda o Tribunal entendido que se não integra no conceito de taxa a correspondência entre o montante da prestação imposta e o custo do bem ou serviço que constitui a contraprestação do ente público (cfr. Acórdão nº 67/90, in ‘Acórdãos do Tribunal Constitucional’, 15º vol., pág. 241) salvo nos casos em que, entre aqueles montante e custo houver uma «desproporção intolerável» (Ac. nº 1140/96, in DR II Série, de 10/2/97)’..
Esta orientação foi reafirmada nos acórdãos nºs. 410/2000 e 200/2001, publicados no Diário citado, II Série, de 22 de Novembro de 2000 e de 27 de Junho de 2001, respectivamente.
O que é exigível é que, de um ponto de vista jurídico, o pagamento do tributo tenha a sua causa e justificação – material, e não meramente formal – na percepção de um dado serviço (cfr., a este propósito, o acórdão nº 1108/96, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Dezembro de 1996). É esta a fundamentação que justifica a subtracção das taxas ao princípio da legalidade, no seu sentido mais exigente, aplicável constitucionalmente aos impostos e a outras figuras que, para este efeito, lhe têm sido equiparadas – princípio este que constitui uma garantia perante ‘uma intervenção do Estado no domínio da esfera jurídico-privada, [...]’ (Cardoso da Costa, Direito Fiscal, 2ª ed., Coimbra, 1972, pág. 163) em que se traduz o imposto.
Assim, não basta uma qualquer desproporção entre a quantia a pagar e o valor do serviço prestado, para que ao tributo falte o carácter sinalagmático. Será necessário que essa desproporção seja manifesta e comprometa, de modo inequívoco, a correspectividade pressuposta na relação sinalagmática.
Na verdade, se essa correspectividade não for posta em causa – e, com ela, o carácter sinalagmático do tributo – deve este ser tratado constitucionalmente como taxa.
Pode assim dizer-se – acompanhando, nesta parte, o que ponderado foi no acórdão nº 640/95, publicado no Diário da República, II Série, de 20 de Janeiro de 1996 – que o Tribunal Constitucional rejeita o entendimento de que uma taxa cujo montante exceda o custo dos bens e serviços prestados ao utente se deve qualificar como imposto ou de que deve ter o tratamento constitucional de imposto: quando se verifica a correspectividade ou o carácter sinalagmático entre a imposição e um serviço divisível prestado não se está perante um imposto (e é o que se verifica no caso dos autos).
A clara desproporção que afecta o carácter sinalagmático de um tributo não pode relacionar-se apenas com o carácter fortemente excessivo da quantia a pagar relativamente ao custo do serviço; ela há-de igualmente ser aferida em função da utilidade do serviço para quem deve pagar o tributo (cfr. o acórdão nº 1140/96, já citado).
4.1. - O Tribunal Constitucional tem sido, no entanto, cauteloso na apreciação dos excessos indicadores de uma falta de proporcionalidade enquanto desvirtuantes da correspectividade.
Assim, no acórdão nº 410/2000, também já mencionado, teve oportunidade de ponderar, na passagem que se transcreve:
‘A subordinação do imposto à reserva de lei exprime (sempre nesse plano) a exigência de um controlo democrático que tem a ver com o respeito da igualdade e da justiça tributárias, aferidas em função da capacidade contributiva de cada cidadão. Já a taxa se insere numa outra lógica, não necessariamente justificada pelo exacto custo da prestação ou do benefício, se bem que 'juridicamente estruturada através da sinalagmaticidade e correspectividade da prestação, tendo como causa uma prestação de que é beneficiário o cidadão vinculado ao seu pagamento.
Assim, para a função da taxa pode ser menos relevante o custo e, por exemplo, mais relevante a contenção da utilização de um serviço – o que significa (e a jurisprudência constitucional tem-se comprometido nesse sentido) que o carácter sinalagmático da taxa não exige a correspondência do seu montante ao custo do bem ou serviço prestado: a bilateralidade que a caracteriza mantém-se, mesmo na parte excedente ao custo (cfr., v. g., o acórdão nº 205/87, publicado no Diário da República, I Série, de 3 de Julho de 1987); não é, por si só, de qualificar a taxa como imposto, ou de lhe conceder tratamento constitucional de imposto, se o respectivo montante exceder o custo dos bens e serviços prestados ao utente (cfr., v.g., o acórdão nº 640/95, publicado naquele jornal oficial, II Série, de 20 de Janeiro de 1996)’.
Isto para admitir que se o valor da taxa for manifestamente desproporcionado, ‘completamente alheio ao custo do serviço prestado’, então pode duvidar-se se a ‘taxa’ não há-de ser encarada, de um ponto de vista jurídico-constitucional, como verdadeiro imposto, porque desse modo e nessa medida se afectaria a correspectividade, como acautelara já o citado acórdão nº 640/95. A desproporcionalidade, se então verificada, lesaria o critério legitimante da taxa (cfr. o acórdão nº 1108/96, já citado).
Escreveu-se neste último aresto que sendo, embora, a taxa juridicamente estruturada ‘através da sinalagmaticidade e da correspectividade das prestações, tendo como causa uma prestação de que é beneficiário o cidadão vinculado ao seu pagamento’ não há-de ser necessariamente justificada pelo exacto custo da prestação ou do benefício.
Como, então, mais se ponderou, em termos que ora interessa reter (e reflectindo, de certo modo, o exposto precedentemente), ‘[a] base funcional da distinção entre taxa e imposto não impõe, todavia, uma sinalagmaticidade construída juridicamente e um sentido de correspectividade susceptível de ser entendido e aceite como tal pelos cidadãos atingidos’.
Daí se retira que ‘a consignação financeira de uma tal prestação económica que surge como uma elevação de um preço estabelecido em convenção poderá não afectar a natureza de taxa da referida prestação, na medida em que se entenda que a elevação do preço tem o seu fundamento (a sua causa) num determinado modo de relacionamento dos cidadãos com os custos (benefícios ou utilidades) e a própria elevação do preço seja aceitável racionalmente como contrapartida de um benefício’.
Encontra-se implícita, nesta concepção, que a aferição do montante da taxa não decorre tanto do seu ‘custo’ mas, essencialmente, da utilidade que do serviço se extrai.
De resto, nem sequer é necessária, na concepção que tem vindo a ser adoptada, uma efectiva utilização dos bens (quando, por exemplo, se trate de utilização do domínio público). Assim, no mencionado acórdão nº
410/2000, estando em causa uma taxa criada em face da utilização de equipamentos públicos disponibilizados por autarquia, inseridos na actividade pública de prestação de serviços desta, observou-se não só não ser indispensável a correspondência económica absoluta entre as prestações do ente público e do utente, como, inclusivamente, poder nem ocorrer essa utilização, bastando que a taxa seja devida pela simples possibilidade dessa utilização (como defende Teixeira Ribeiro, ‘Noção Jurídica de Taxa’ cit. pág. 243).
4.2. - O Tribunal Constitucional não pode, assim, censurar um critério de determinação das quantias emolumentares em que o legislador teve em conta não só o valor de custo do serviço em causa mas, determinantemente, o valor resultante da utilidade obtida através da prestação do serviço, em si considerada – utilidade que, em princípio, é tanto maior quanto maior for o valor do acto que lhe dá origem.
A esta luz, observar-se-á – de harmonia com o precedentemente escrito e tendo em conta o que mais adiante se acrescentará – que o facto de a tributação ser estabelecida em função de serviços prestados em regime de ‘utilização obrigatória’ e de fixação monopolística não altera a conclusão anterior. Por um lado, porque a utilização obrigatória assenta em razões de segurança jurídica que apenas podem justificar uma reforçada utilidade do serviço; e, por outro lado, porque a fixação monopolística de um preço não lhe retira essa qualidade, sendo certo que, em regra, lhe determina um valor mais elevado.
Entretanto, refira-se que não é decisivo, em princípio, o destino financeiro da receita, mas sim a prestação ou não do serviço (como foi salientado no acórdão nº 76/88, publicado no Diário da República, I Série, de 21 de Abril de 1988), sendo, nessa medida, irrelevante que uma sua parte seja afectada a financiar os encargos resultantes da manutenção e gestão dos respectivos serviços (e mesmo se houver excedente de serviços conexos). A natureza do tributo, ainda que a correspectividade se medisse apenas em função do custo do serviço, não seria abalada mesmo que no montante a pagar não se repercutisse apenas o custo atomizado do serviço prestado, mas também, o conjunto das despesas inerentes ao funcionamento das entidades que realizam o serviço, recaindo sobre os utentes uma percentagem dos custos globais do funcionamento da respectiva actividade da Administração Pública – sempre sob a ressalva da desproporção manifesta. III
1. - A concepção constitucional de taxa assenta, em face do exposto, em determinadas premissas: necessidade da existência de uma relação sinalagmática ; desnecessidade de uma exacta equivalência económica; aferição do respectivo montante em função não só do custo mas também do grau de utilidade prestada; exigência de uma não manifesta desproporcionalidade na sua fixação.
Importa, por último, cuidar de saber se este último parâmetro se verifica no concreto caso: será através do ‘crivo da proporcionalidade’ (acórdão nº 640/95) que o Tribunal Constitucional se pronuncia a respeito da conformidade constitucional da opção do legislador.
2.1. - A determinação do montante emolumentar em causa implica que se conjuguem dois preceitos da Tabela dos emolumentos do notariado (de 1983) em análise: o nº 1 do artigo 1º deste texto diz-nos que o valor dos actos notariais
é, em geral, o dos bens que constituem o seu objecto, enquanto, por sua vez, o artigo 5º dispõe que, sendo de valor determinado o acto que constitui objecto da escritura (como é o caso), acresce aos emolumentos previstos no artigo 4º uma quantia proporcional ao valor do bem a que se refere o acto constante da escritura pública, no seu total, nos termos aí estatuídos, em que a percentagem em função da qual é calculada essa quantia tem natureza regressiva, na medida em que o valor a pagar por cada 100$00 ou fracção vai decrescendo dos 10$00 (para escrituras de valor igual ou inferior a 200.000$00) até aos 3$00 (correspondente
às escrituras de valor superior a 10.000.000$00).
Ponto será que a participação emolumentar prevista no artigo 5º da Tabela – a acumular com a quantia estabelecida pelo artigo 4º –, não proporcione uma situação de relação desrazoável com o custo previsível do serviço (incluindo o montante da comparticipação nos custos da estrutura pública do notariado) ou da sua utilidade, de modo a só se compreender no âmbito de uma lógica estritamente fiscal de obtenção de receitas públicas, descaracterizante da natureza da taxa.
2.2. - A quantia pecuniária apresenta-se como uma parcela a adicionar ao montante emolumentar fixo estabelecido no artigo 4º da Tabela devido pela realização da escritura pública, como acto notarial que é.
Dispondo o artigo 875º do Código Civil que o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública, a intervenção obrigatória do notário consubstancia um verdadeiro serviço prestado aos particulares, garantindo aos actos por eles praticados a segurança e a publicidade que, de outro modo, não teriam: não só, como actos de alienação dos bens imóveis, a intervenção notarial formalizada documentalmente concede-lhes a fé pública que explica a especial força probatória de que gozam os actos notariais, à qual se associa a força de título executivo, como, por outro lado, a dita intervenção notarial pressupõe um controlo de legalidade do acto documentado (cfr. os artigos 173º e 174º do Código do Notariado), podendo o notário ‘prestar assessoria às partes na expressão da sua vontade negocial’ (nº
2 do artigo 1º do mesmo Código), devendo este, em qualquer caso, ‘redigir o instrumento público conforme à vontade das partes, a qual deve indagar, interpretar e adequar ao ordenamento jurídico, esclarecendo-as do seu valor e alcance’ (nº 1 do artigo 4º do mesmo diploma legal).
Deste modo, a escritura pública não pode ser considerada apenas na perspectiva de uma mera operação material, já que nela está pressuposta a actuação de funções próprias do notário: a de controlar a legalidade dos actos das partes e a de as assessorar e aconselhar.
3.1. - Não há lugar a aplicar, por via analógica, os juízos de inconstitucionalidade já formulados por este Tribunal a situações contempladas por outros diplomas legais.
Assim, na denominada ‘taxa da peste suína’, considerou-se ser esta destinada à cobertura dos encargos advenientes da luta contra essa doença e sua erradicação, de modo que se pôde concluir não se estar perante um quadro contraprestacional de serviço prestado, mas sim face a uma forma de financiar uma actividade do Estado vocacionada para a satisfação das necessidades públicas em geral ou, pelo menos, de uma certa categoria abstracta de pessoas (cfr., inter alia, os acórdãos nºs. 369/99 e 473/99, publicados no Diário da República, II Série, de 9 de Março de 2000 e de 10 de Novembro de
1999, respectivamente).
Como se destaca neste último aresto, respondeu-se, então, negativamente, à questão de saber se da satisfação de um ‘tributo’ como esse resultava para o respectivo devedor uma vantagem ou benefício específicos, decorrentes da correspondente actividade pública.
Deste modo, o acórdão nº 96/00, a declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas que estabeleciam a
‘taxa’ em referência (publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Março de 2000), afastou desse tributo a sua qualificação jurídica como taxa porque esta ‘não pode ser perspectivada como uma imposição pecuniária não unilateral visando tão só um encargo marcadamente de índole sinalagmática’.
E não se representa aplicação analógica uma vez que, in casu, a lógica da fixação da taxa – correspondendo à contraprestação de um serviço, moldada como preço monopolisticamente fixado em função de uma utilização obrigatória desse serviço – é ditada através da utilidade que do mesmo se retira, para além de, na cobertura dos custos serem incluídas ainda as despesas atinentes à manutenção e gestão da estrutura que presta o serviço, como caracteristicamente ocorre no direito registral, particularmente no domínio dos actos obrigatórios. Ou seja, não se está perante uma concepção parametrizada apenas pela equivalência ao valor de custo do serviço prestado, mesmo que flexivelmente entendida.
3.2. - Por outro lado, já no tocante aos tributos incidentes sobre a recolha e tratamento de lixos municipais, a jurisprudência constitucional vem considerando os mesmos como taxas, visto lhes assistir, na origem, um fundamento sinalagmático, mesmo que, na realidade, nem todos os munícipes aproveitem do serviço camarário de recolha, depósito, remoção e tratamento dos resíduos sólidos (cfr., inter alia, os acórdãos nºs. 76/88, já referenciado, 1139/96 e
1223/96, publicados no Diário citado, II Série, de 10 e 14 de Fevereiro de 1997, respectivamente).
O mesmo se diga quanto à taxa de justiça, ao reconhecer-se-lhe a natureza de taxa, por não estar em causa a arrecadação de receitas para o Estado como modo de lhe proporcionar os meios necessários para a prossecução dos seus encargos gerais, mas sim a prestação, em parte que seja, de contrapartida para utilização do serviço de justiça – no pressuposto adquirido que, para o conceito de taxa, não há que ‘partir da equivalência económica entre o seu montante e o valor do serviço prestado’ (cfr., por todos, o acórdão nº
49/92, publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Junho de 1992).
Ora, não há quebra do nexo sinalagmático, nesta perspectiva, quando – como é o caso – não se mostra excessiva ou manifestamente desproporcionado o preço devido ao Estado para pagamento da prestação por banda deste de actos a que se confere fé pública, praticados por serviços públicos para o efeito constituídos cuja utilização não compete dissuadir (como poderá suceder com os serviços judiciais) e que representa um encargo para quem deles retira vantagens.
E se é verdade que um limite máximo de emolumentos a cobrar por cada acto só foi posteriormente introduzido – como se deixou consignado – também é certo que a norma sindicanda proporciona o gradual desagravamento da taxa aplicável, na justa medida do aumento do valor total do acto solenizado.
4. - Em face do exposto, conclui-se pela caracterização do emolumento previsto no artigo 5º da Tabela de Emolumentos Notariais, segundo a redacção do Decreto-Lei nº 397/83, de 2 de Novembro, como taxa, não exigindo, por conseguinte, prévia credencial parlamentar, por não se tratar de matéria abrangida pela reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República, nos termos da alínea i) do nº 1 do artigo 168º da Constituição da República, na versão então vigente.
............................................................................................................................................................................................................................................’
3. A argumentação carreada ao dito Acórdão nº 115/2002 é, de todo, transponível para o vertente caso. E, por isso, justifica-se, ex vi do nº 1 do artº 78º-A da citada Lei nº 28/82, a prolação da presente decisão, tendo em conta a jurisprudência que decorre daquele aresto.
Consequentemente, também aqui haverá de concluir que os normativos
ínsitos no nº 1 na Portaria nº 996/98, enquanto aprovou a Tabela de Emolumentos de Notariado, e no artº 5º desta última, não traduzem o estabelecimento de um imposto e, desta sorte, não violaram o que se prescreve na alínea i) do nº 1 do artigo 165º da Constituição, pelo que se concede provimento ao recurso, determinando-se a revogação da decisão impugnada, a fim de a mesma ser reformada em conformidade com o juízo de não inconstitucionalidade que se deixa feito'.
É da transcrita decisão que, pela W..., S.A., vem, nos termos do nº
3 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, apresentada reclamação, sustentando, em síntese, que os normativos sub specie padecem de inconstitucionalidade orgânica e material, por ofenderem os artigos 18º, nº 3,
103º, nº 3, 165º, nº 1, alínea i), e 266º, nº 2 da Lei Fundamental.
A ilustrar tais asserções, a reclamante aduz uma determinada corte de razões que, esteada, no seu entendimento, em ensinamentos sufragados por parte da doutrina, deveriam levar a conclusão diversa do juízo de não inconstitucionalidade que foi levado a efeito na decisão reclamada.
Ouvido o Representante do Ministério Público, o mesmo veio propugnar pela improcedência da reclamação, pois que a reclamante se limita a 'reiterar o seu entendimento sobre a matéria controvertida, sendo certo que a argumentação deduzida nada adita de inovatório relativamente á tese que acabou por fazer vencimento no Plenário deste Tribunal Constitucional'.
Cumpre decidir.
2. O Tribunal entende que os fundamentos carreados na reclamação em apreço não apresentam consistência bastante para infirmar o juízo de não inconstitucionalidade que foi ditado pelo plenário deste órgão de administração de justiça no acórdão nº 115/2002 e que baseou aqueloutro juízo constante da decisão em espécie.
Na verdade, na óptica deste Tribunal, a argumentação que foi utilizada no aludido aresto leva, inquestionavelmente, a um tal juízo de não inconstitucionalidade, sendo que no mesmo acórdão foram devidamente ponderadas as razões que, em contrário, poderiam ser aduzidas (aqui se incluindo as agora brandidas pela reclamante), não se encontrando nelas arrimo para diferentemente se concluir.
Por isso se mantém a decisão sob reclamação, que se indefere, consequentemente se mantendo a concessão de provimento ao recurso e a determinação da reforma, de harmonia com o juízo de não inconstitucionalidade, da sentença proferida em 5 de Dezembro de 2001 no Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em quinze unidades de conta. Lisboa,18 de Junho de 2002- Bravo Serra Maria Fernanda Palma José Manuel Cardoso da Costa