Imprimir acórdão
Processo nº 644/01
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - A, identificado nos autos, intentou, no Tribunal Judicial da comarca de Celorico de Basto, acção declarativa, com processo sumário, contra B, com sede no Porto, pedindo a condenação desta ao pagamento de certa quantia, acrescida de juros de mora contados desde a citação.
Para tanto, e em síntese, alegou a ocorrência de um acidente de viação entre dois veículos automóveis, no dia 8 de Fevereiro de
1995, na área dessa Comarca, um dos quais conduzido por si, propriedade de terceiro, e o outro conduzido pela sua proprietária que, ao iniciar uma curva para a esquerda, circulando a velocidade superior a 100 Km/h, invadiu a hemifaixa esquerda de rodagem e foi embater na viatura conduzida pelo autor, que, em consequência, sofreu danos físicos e outros prejuízos, que inventaria.
O Centro Regional de Segurança Social do Norte deduziu um pedido de reembolso de subsídios pagos ao autor.
Por sentença de 14 de Julho de 2000 foi o pedido do autor julgado improcedente e, em consequência, do mesmo absolvida a ré, o mesmo sucedendo quanto ao segundo pedido.
O Tribunal da Relação do Porto, perante a apelação do autor, confirmou a decisão, por acórdão de 8 de Fevereiro de 2001.
Recorreu, então, de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 5 de Julho do mesmo ano, julgou o recurso improcedente e confirmou o aresto recorrido.
2. - Inconformado, interpôs o autor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de
15 de Novembro.
Pretende (após convite nos termos do disposto no artigo
75º-A deste texto legal) que o Tribunal Constitucional aprecie a constitucionalidade da interpretação levada a efeito pelos acórdãos recorridos quanto 'ao nº 3 do artigo 503º do Código Civil, no sentido de considerar que a presunção de culpa se desliga da relação danos/comissário para se afirmar na própria verificação do acidente, independentemente de quem seja o lesado (e até independentemente da existência de danos) [...], o que, no entender do recorrente, viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República (CR).
3. - A questão de constitucionalidade foi suscitada, segundo afirma, quer nas alegações para a Relação do Porto, quer nas da revista.
Com efeito, o autor e ora recorrente equacionou nessas peças processuais a enunciada questão, se interpretada in casu a norma citada do nº 3 do artigo 503º do Código Civil, no entendimento da existência de presunção de culpa.
A sua tese pode ser assim sintetizada.
A presunção de culpa contida na primeira parte do nº 3 do artigo 503º funciona sempre e apenas no sentido dos danos/comissário, determinando a imputação dos danos a título de culpa ao comissário, salvo demonstração em contrário, o mesmo sucedendo no caso de colisão de veículos, onde a presunção funciona apenas no sentido de se considerar que, até prova em contrário, os danos sofridos pelo lesado se consideram provocados pelo comissário.
Sendo a protecção ao lesado a principal razão justificativa do regime legal, o acórdão, ao considerar aplicável ao caso dos autos – em que o lesado é o próprio comissário – essa norma, interpretou-a erradamente e violou-a. A não se entender assim, a norma é inconstitucional, por violação do princípio da igualdade.
4. - Notificadas as partes para alegarem, apenas o recorrente o fez, tendo assim concluído:
'1- Verificou-se um acidente de viação que consistiu na colisão entre dois veículos: um, pesado de mercadorias, conduzido pelo Autor por conta de outrem; outro, ligeiro de passageiros, conduzido pela sua proprietária;
2- Nesse acidente, o Autor sofreu graves ferimentos, de que veio a resultar uma I.P.P. de pelo menos, 44,9 %;
3- A Ré Seguradora pode arrolar como testemunhas a condutora e as passageiras do veiculo ligeiro, únicas testemunhas presenciais do acidente;
4- Por isso, o Autor requereu a sua própria inquirição para que, pela análise das duas versões se pudesse apurar a verdade - o que lhe foi indeferido;
5- Dos factos considerados provados, nada se apurou em concreto quanto à culpa na verificação do acidente;
6- Quer as instâncias, quer o S. T.J., consideraram aplicável à situação a primeira parte do n° 3 do art. 503 do C. Civil: milita contra o Autor uma presunção de culpa que afasta as regras da responsabilidade pelo risco;
7- No entanto, nem a letra da lei nem o seu espírito comportam esta interposição;
8- A letra daquela disposição legal dispõe que o condutor por conta de outrem responde pelos danos que causar (obviamente a terceiros, já que é absurda a presunção de culpa dos danos sofridos pelo próprio...);
9- E nenhum dos fundamentos apontados quer pela doutrina quer pela jurisprudência têm aplicado à situação em que o titular dos danos é o próprio condutor por conta de outrem;
10- Por outro lado, só por via da analogia se pode considerar a aplicação daquela norma - o que se traduz numa violação do art 11 ° do C. Civil já que são excepcionais as normas que criam presunções;
11- De qualquer maneira, a aplicação da presunção de culpa nestes casos - é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da igualdade previsto no art. 13° da Constituição;
12- É que o desfavorecimento da sua posição processual, pela necessidade de ilisão da presunção de culpa, é arbitrária e irrazoável;
13- Na verdade, caem desde logo por terra as razões de protecção ao lesado, porque ele é o próprio comissário;
14- O mesmo se diga com as razões de justiça nas relações internas entre comitente e comissário por se tratar de matéria que tem a ver com a responsabilidade pelos danos causados a terceiros;
15- E quanto ao perigo de afrouxamento na vigilância do veículo e às conduções na situação de fadiga, por se tratar de razões de protecção a terceiros, pelos quais o condutor/lesado não pode ser abrangido;
16- A maior (eventual) facilidade do condutor profissional na elisão da presunção de culpa não se verifica quando ele é o próprio lesado, até porque as lesões consistirão, na quase totalidade dos casos, em ferimentos, que lhe diminuirão ou anularão tal (eventual) facilidade;
17- Aliás, cabe perguntar como é que essa facilidade existe se, sendo ele parte na acção, não pode, em depoimento, esclarecer a sua própria versão do acidente - ao contrário da Ré Seguradora que pode arrolar como testemunha a condutora do outro veículo. Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, declarada a inconstitucionalidade da norma da primeira parte do n° 3 do art. 503º do C. Civil na interpretação que lhe foi dada pela Relação do Porto e pelo STJ, com as consequências legais (art. 80° da Lei do TC).'
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II
1. - Constitui objecto do presente recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade a norma do nº 3 do artigo 503º do Código Civil, nos termos da qual 'aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte'.
2. - No caso sub judice ficou demonstrada – em sede ora insindicável – conduzir o autor por conta da sua entidade patronal, tendo ocorrido uma colisão entre o veículo automóvel pesado que conduzia e um veículo automóvel ligeiro conduzido pela sua proprietária, dela resultando danos para o condutor comissário mas não em terceiros.
Contrariamente ao defendido pelo recorrente, no sentido de que a existência da presunção de culpa, ditada, além do mais, por razões de protecção dos lesados, não se verifica se o veículo conduzido pelo comissário não haja causado danos a terceiros, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu verificar-se uma situação em que 'tudo concorre para que se considere impender sobre ele [o comissário] a presunção de culpa a que alude a primeira parte do nº
3 do citado artigo 503'.
E, a propósito, da invocada inconstitucionalidade ponderou-se no acórdão:
'Encontra-se perfeitamente justificado – e óbvio, aliás – que o mencionado Assento de 14/04/83 haja estabelecido uma conexão entre e os danos causados e a indemnização' [refere-se ao 'assento' nº 1/83, publicado no Diário da República, I Série, de 28 de Agosto de 1983].
No entendimento expresso no acórdão recorrido, o dano é um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, citando-se, em abono desta tese, M.J. Almeida e Costa (Direito das Obrigações, 5ª ed., Coimbra, 1991, págs. 476 e
477):
'Apenas em função do dano o instituto (da responsabilidade civil) realiza a sua finalidade essencialmente reparadora ou reintegrativa. Mesmo quando lhe cabe algum papel repressivo ou preventivo, sempre se encontra submetido, como regra, aos limites da eliminação do dano. Portanto, o facto ilícito culposo só determina responsabilidade desde que cause um dano a terceiro. Também este elemento se acha referido no n° 1 do art. 483° do C. Civil, que proclama o responsável obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da lesão'.
E, ainda, no dizer de Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, vol. 1º, 6ª ed., Coimbra, 1989, pág. 567):
'[...] para haver obrigação de indemnizar, é condição essencial que haja dano, que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém' .
Ao que mais se pondera:
'Não se esquecerá, porém, que além da constatação do dano ( e da necessária verificação do nexo de causalidade entre o facto e o dano ), se impõe como lógico antecedente o nexo de imputação do facto (comportamento) ao agente, quer a título de culpa, quer através do risco. Desta forma, encarada a culpa ( ou o risco) como antecedente necessário relativamente ao dano, pode suceder que um automobilista haja transgredido as regras de trânsito sem danificar coisa alheia, situação esta em que não chega a pôr-se nenhum problema de responsabilidade. Não deixará, no entanto, de haver culpa, no sentido da censurabilidade da conduta do agente, quer essa culpa seja efectivamente provada ( como geralmente
é exigido nos termos do art. 487°, n° 1, do C.Civil), quer ela se presuma por determinação legal, já que, a esse respeito, a lei não distingue entre a culpa presumida e a realmente apurada. Embora sem deixar de se entender que provada a culpa efectiva do lesado, afastada fica a presunção de culpa do condutor por conta de outrem. Assim, 'provando-se apenas que os veículos em causa chocaram um com o outro no decurso de manobras que se encontravam a executar, sendo que não resulta dos autos que qualquer uma delas fosse de execução proibida naquele local, é correcta a inferência ... segundo a qual os factos não permitem imputar a culpa a nenhum dos condutores envolvidos no acidente. Estando reunidos os respectivos pressupostos deverá funcionar a presunção de culpa prevista no n° 3 do art. 503° do C.Civil'. Em consequência, a presunção de culpa que impende sobre o condutor por conta de outrem, prevista no art. 503°, n° 3, do C. Civil, situando-se precisamente em sede do nexo de imputação do facto ao agente, ocorre em todas as situações. Será fonte da obrigação de indemnizar, apenas e tão só, quando da actuação do condutor resultem danos para terceiro. E, não duvidamos, é esta a única conclusão compaginável com a própria unidade do sistema jurídico: é que, de forma em tudo idêntica à que surge no citado preceito, também, nos demais casos em que a lei estabelece presunções de culpa, alude similarmente aos danos causados.
É assim no caso do art. 491° do C.Civil ('as pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras ... são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro'), do art. 492°, n° 1 (' o proprietário ou possuidor de edifício ou outra obra que ruir ... responde pelos danos causados'), 493°, n° 1
(' quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem'), e 493°, n° 2 ('quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los'). Não assiste, pois, razão ao recorrente, deste modo improcedendo a pretensão que, neste âmbito, formulou. A interpretação do Assento de 14/04/83 que acabamos de fazer, única, a nosso ver, consentânea com os princípios gerais e a unidade do sistema jurídico, não sofre de inconstitucionalidade material, já que não contraria qualquer princípio constitucionalmente consagrado, nomeadamente o da igualdade prevenido no art.
13° da Constituição, que o recorrente afirma ter sido violado.'
3. - Nos acidentes de viação entre veículos, se um dos condutores conduzir por conta de outrem, a par da responsabilidade do detentor do veículo, que é objectiva, pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo (nº 1 do artigo 503º), há que contar com a responsabilidade do próprio condutor que, no entanto, não será responsável se provar que não teve culpa no acidente.
No entanto, se esse condutor for culpado – seja porque se fez prova nesse sentido, seja porque não conseguiu ilidir a presunção legal do nº 3 do artigo 503º - responderão solidariamente, pelos danos causados ao terceiro lesado, o próprio condutor e o detentor do veículo.
O assento de 14 de Abril de 1983, citado, ao considerar que a primeira parte do nº 3 do artigo 503º do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele, como lesante, e o titular ou titulares do direito a indemnização, visou pôr termo a uma questão jurisprudencial e doutrinariamente controversa. Com efeito, discutia-se, então, se a presunção de culpa do nº 3 do artigo 503º vigorava apenas no domínio da responsabilidade objectiva do dono ou utente do veículo e nas relações entre este e o condutor
(comissário) ou se se estendia às relações entre o condutor por conta de outrem e o lesado, abrangendo toda a área da responsabilidade civil proveniente dos acidentes de viação (assim, no primeiro sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Outubro de 1978, 16 de Dezembro de 1979 e 31 de Dezembro de
1980, a que o assento alude, e, na doutrina, Joaquim de Sousa Ribeiro, 'O ónus da culpa na responsabilidade civil por acidente de viação', in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, II, 1979, págs. 413 e segs., maxime 443 e segs.; já no sentido indicado em segundo lugar, o acórdão do mesmo Tribunal de 14 de Novembro de 1977, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 271, págs. 229 e segs.).
A este propósito, observou-se no acórdão no acórdão deste Tribunal nº 226/92, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Setembro de 1992:
'Quanto aos danos causados pelo condutor do veículo por conta de outrem, o artigo 503º, nº 3, do Código Civil, na interpretação que lhe foi dada pelo assento acabado de transcrever, estabelece, pois, uma verdadeira presunção da culpa, abrangida na ressalva do nº1 do artigo 487º do Código Civil – presunção de culpa que se aplica às relações entre o lesado e o condutor, que não apenas à hipótese da responsabilidade do dono do veículo, nas relações deste com o condutor-comissário (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, Coimbra, p. 618). Sendo a presunção de culpa de que aqui se trata (ou seja, a presunção de culpa estabelecida no nº 3 do artigo 503º) aplicável nas relações entre o lesado e o condutor do veículo por conta de outrem, claro é que a indemnização devida ao lesado não está sujeita aos limites máximos da responsabilidade civil objectiva, constantes do artigo 508º. Já, porém, se deverá entender que a indemnização devida pelo comissário pode ser limitada nos termos do artigo 494º (cfr., neste sentido, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, citado, pp. 619 e 647, nota 3, Cf. também Antunes Varela, «Parecer», publicado no Boletim da Ordem dos Advogados, nº 22, Janeiro de 1984, pp. 6 e seguintes). Quando o veículo é conduzido por comissário, ocorrendo acidente que cause dano a terceiro, presume-se, pois, que a culpa no acidente é dele comissário. Contrariamente, sendo o veículo conduzido pelo próprio dono, é o lesado, requerente da indemnização, quem, nos termos do artigo 487º, nº 1, tem de provar que a culpa no acidente é daquele. Há, aqui, pois, uma inversão do ónus da prova relativa à culpa que desfavorece o comissário (condutor por conta de outrem).'
Mais tarde, pelo assento nº 3/94, de 26 de Janeiro de
1994, publicado no Diário da República, I Série-A, de 19 de Março de 1994, fixou-se jurisprudência no sentido da extensão da responsabilidade por culpa presumida do comissário, estabelecida no artigo 503º, nº 3, primeira parte, do Código Civil, ao caso da colisão de veículos prevista no artigo 506º, nº 1, do mesmo diploma (em que, sem apuramento de culpa de nenhum dos condutores, resultam danos relativamente aos dois veículos ou a um só deles).
4. - Como já se registou, na perspectiva do recorrente, a interpretação feita pelo aresto recorrido considera que a presunção de culpa desliga-se da conexão danos-comissário para se afirmar na própria verificação do acidente, independentemente de quem seja o lesado – e, até, independentemente da existência de danos –, sentido esse que tem por violador do princípio da igualdade: a extensão do funcionamento da presunção assim interpretada, para além desse eixo de conexão, não só afronta a coerência e unidade do sistema jurídico, como se mostra ilógica e irrazoável e cria, ou pode criar, soluções de manifesta desigualdade das partes no processo, designadamente quando não existem quaisquer razões de protecção ao lesado, ou seja, quando este é o principal prejudicado pelo funcionamento da presunção.
Nesta óptica, a presunção actua sempre no sentido danos-comissário, imputando sempre, salvo demonstração em contrário, os danos a título de culpa ao comissário. Assim, mesmo no caso de colisão de veículos, quem conduzir por conta de outrem responde pelos danos causados a terceiros, excepto se provar que não houve culpa da sua parte, mas não pode chegar-se a idêntica conclusão quando os danos são sofridos pelo próprio comissário e não por terceiros.
Ora, o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado impressiva e uniformemente a respeito do princípio constitucional da igualdade no sentido de que este não proíbe que se estabeleçam distinções mas tão só que estas não sejam arbitrárias nem irrazoáveis, por carecerem de fundamento material bastante. O princípio da igualdade reclama que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e se trate diferentemente o que for dissemelhante (citem-se, inter alia, os acórdãos nºs. 549/97, 367/99 e 60/01, publicados os dois primeiros, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 4 de Dezembro de 1997 e 9 de Março de 2000, mantendo-se o último inédito).
Designadamente, o Tribunal já teve ensejo de se pronunciar concretamente sobre a norma do nº 3 do artigo 503º do Código Civil, na medida em que esta inverte o ónus da prova relativa à culpa, estabelecendo-o em desfavor do comissário, afastando a argumentação tendente a verificar violação daquele princípio.
É o caso do já citado acórdão nº 226/92 onde se ponderou, quanto à prova de culpa, existirem razões válidas e procedentes, justificativas da distinção entre o condutor por conta de outrem e o condutor por conta própria de um veículo interveniente em acidente de que resultaram danos para terceiros.
Como aí mais se escreveu, abonando-se em Antunes Varela
(Das Obrigações em Geral, cit., págs. 619 e seguintes):
«Os comissários ou condutores do veículo por conta de outrem são, na generalidade dos casos, os camionistas das empresas, os chauffeurs particulares contratados, os motoristas de táxis pertencentes a outra pessoa. Há na condução por conta de outrem um perigo sério de afrouxamento na vigilância do veículo, que a lei não pode subestimar: o dono do veículo (muitas vezes, uma empresa cuja personalidade se dilui pelos gestores) não sente as deficiências dele, porque o não conduz; o condutor nem sempre se apresta a repará-las com a diligência requerida, porque o carro não é seu, porque outros trabalham com ele e o podem fazer, porque não quer perder dias de trabalho ou por qualquer outra de várias razões possíveis. E há um outro perigo não menos grave em que confluem a cada passo a actuação do comitente e a do comissário, que é o da fadiga deste
(causa de inúmeros acidentes), proveniente das horas extraordinárias de serviço; o comitente, para não admitir mais pessoa nos seus quadros; o comissário, para melhorar a sua remuneração. Além disso, os condutores por conta de outrem são por via de regra condutores profissionais: pessoas de quem fundadamente se deve exigir (de acordo com o padrão aceite para a definição da negligência em geral) perícia especial na condução e que mais facilmente podem elidir a presunção de culpa com que a lei os onera, quando nenhuma culpa tenha realmente havido da sua parte, na verificação do acidente. Por último, a presunção de culpa deliberadamente sacada sobre o condutor por conta de outrem (comissário), aliada à responsabilidade solidária que recai sobre o comitente (dono ou detentor do veículo), só pode estimular a realização do seguro da responsabilidade civil em termos que cubram todo o montante da indemnização a que possam estar sujeitos. O condutor por conta própria não é abrangido pela presunção de culpa estabelecida no nº 3 do artigo 503º; em contrapartida, encontra-se sujeito ao regime da responsabilidade objectiva traçada no nº 1 do artigo 503º e no artigo
505º. Goza, é certo, do benefício dos limites máximos fixados no artigo 508º para a responsabilidade sem culpa, cujo montante deve obviamente ser actualizado, de iure condendo, em função da desvalorização da moeda. Mas, em compensação, não tem a cobri-lo, perante o lesado, como o comissário, a responsabilidade solidária do comitente, cujo crédito de regresso será muitas vezes praticamente incobrável.» A isto acresce – prossegue o acórdão – 'que a doutrina do citado artigo 503º, nº
1, do Código Civil há-de, hoje, ser lida no contexto de uma lógica de distribuição de encargos próprios de um sistema de seguro obrigatório. Uma tal distribuição de encargos vem gravar o comitente, pois que – como se escreve em Direito das Obrigações, Coimbra, 1983, p. 313 (texto elaborado por J. Sousa Ribeiro, J. Sinde Monteiro, Almeno de Sá e J. C. Proença, com base nas lições de Rui Alarcão ao 3º ano jurídico) –, «se o direito de regresso deste [ou seja: do comitente] pressupõe culpa do comissário, parece razoável exigir culpa provada, pelo que o ónus da indemnização baseada em mera presunção incidirá em
última análise sobre o comitente» (Cf. também, em idêntico sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Junho de 1975, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 247, 119, e o Acórdão da relação de Coimbra de 20 de Julho de 1973, cujo sumário está publicado no nº 231 daquele Boletim, p. 217). Não sendo arbitrária a distinção estabelecida, o nº 3 do artigo 503º do Código Civil, na interpretação que lhe deu o assento do Supremo Tribunal de Justiça de
14 de Abril de 1983, não viola o princípio da igualdade.'
No mesmo sentido outros acórdãos se podem convocar: assim, os nºs. 149/93, 439/94 e 426/95, publicados no Diário da República, II Série, de 10 de Abril de 1993, 1 de Setembro de 1994 e 7 de Novembro de 1995, respectivamente, e os nºs. 374/94 e 439/97, inéditos.
Não se vê razão para afastar o entendimento perfilhado pela citada jurisprudência.
5. - No caso sub judicio, defende o recorrente, como vimos, que a solução que tem sido adoptada , nomeadamente em acórdãos de uniformização de jurisprudência – para além do juízo crítico que sobre ela emite e não compete aqui apreciar – não deve ser seguida por não terem ocorrido danos em qualquer terceiro, verificando-se estes, em contrapartida, no condutor comissário (que, como tal, emerge como lesado).
No aresto recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu que também aqui ocorrem as mesmas razões de maior severidade que ao comissário são exigíveis, decorrentes da diferença de título por que se opera a condução, persistindo, assim, a inversão do ónus probatório, subentendendo uma interpretação que, para efeito de presunção de culpa, considera-a extensível a todos os danos, de modo a abranger todos ou quaisquer danos resultantes de acidente.
Não competindo, obviamente, ao Tribunal Constitucional censurar esta decisão daquele Alto Tribunal, como se de amparo se tratasse, os parâmetros da questão submetida à sua apreciação limitam-se a ajuizar da conformidade constitucional da interpretação normativa acolhida.
Ora, nesta óptica, os postulados que alicerçaram o referido entendimento de não-inconstitucionalidade, por não se surpreender violação do princípio da igualdade, mantém-se incólumes na especificidade do caso concreto, que assenta no comissário como lesado: não é pelo facto de este ser o lesado que insubsiste a argumentação que dita a inversão do ónus da prova, o que deixa intocada a concepção constitucional de igualdade que se sufraga.
Na verdade, como se observou no acórdão recorrido, a presunção de culpa que sobre o condutor por conta de outrem impende situa-se em sede do nexo de imputação do facto ao agente e é ditada pela unidade do sistema jurídico, o que, desde logo, afasta a argumentação avançada pelo recorrente de violação do artigo 11º do Código Civil por implicar o recurso à via analógica dada a ocorrência de uma situação de excepção. A presunção de culpa consagrada no nº 3 do artigo 503º é extensiva a todas as situações contempladas nos artigos
506º a 508º do Código Civil, como anota Antunes Varela (in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 122, pág. 181), sendo certo que, no caso sub judice, ficou demonstrada uma colisão de veículos, um dos quais conduzido pelo autor por conta da sua entidade patronal e o outro pela sua proprietária, numa situação subsumível à doutrina do assento de 26 de Janeiro de 1994.
No plano jurídico-constitucional, a interpretação dada à norma questionada pelo aresto recorrido compadece-se com um juízo de não violação do princípio da igualdade como o sustentado pelos acórdãos do Tribunal Constitucional já mencionados, tirados sobre esta matéria, à luz do assento de
14 de Abril de 1983.
III
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 15 unidades de conta. Lisboa, 26 de Setembro de 2002- Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida