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Processo nº 365/02
3ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1. - M..., identificado nos autos, reclama para o Tribunal Constitucional, nos termos do nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, do despacho de 19 de Abril último, do Desembargador relator do Tribunal da Relação de Lisboa que, por considerar extemporâneo o respectivo requerimento, não admitiu o recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional de anterior despacho, de 6 de Março de 2002, proferido em autos de recurso crime, vindos do Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa, em que o reclamante é arguido.
O despacho de 6 de Março não admitira, por sua vez, o recurso que o ora reclamante interpôs do acórdão da Relação de Lisboa de 23 de Janeiro anterior, para o Supremo Tribunal de Justiça, com fundamentação que, para melhor compreensão, se transcreve:
'Pretende [o recorrente] interpor recurso do Acórdão desta Relação [...] que negou provimento ao recurso do despacho do juiz a quo perante o Supremo Tribunal de Justiça. A questão que foi objecto do recurso é a do incidente de impedimento, nos termos do artº 40º do CPP, em que o juiz a quo, após requerimento do arguido, veio a entender que não havia lugar a qualquer impedimento. Pretende-se que o recurso, a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça, teria o seu fundamento no artº 432º, al. a), do CPP, ou seja, caberia recurso para o Supremo porque, no entender do recorrente, a decisão desta Relação teria sido proferida em primeira instância. Salvo o devido respeito, não concordamos com tal posição; a decisão desta Relação, e constante do acórdão de fls. 38 e ss., resulta da discordância do, então , recorrente do despacho do Mmo. Juiz a quo que entendeu não haver razão ao seu impedimento; o acórdão desta Relação veio, assim, a apreciar e decidir sobre despacho judicial do Tribunal de 1ª instância de que o arguido discordou e, por isso, veio a interpor recurso. O Acórdão desta Relação não foi, assim, decisão proferida em 1º instância, razão, pela qual não cabe na previsão do artigo 432º, al. a), do C.P. Penal. Só há lugar a recurso para o STJ nos casos taxativamente previstos nas alíneas deste artigo 432º. Não sendo o recurso que se pretende interpor nenhum dos casos aí referidos, haverá que entender que, do Acórdão desta Relação não há recurso para o STJ. Nestes termos, não admito o recurso interposto.
[...].'
2. - Pretendeu, então, o recorrente, ao dirigir-se ao Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, obter a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo
40º do Código de Processo Penal, na interpretação que imputa ter sido dada no acórdão recorrido e que, em seu entender, viola o disposto no nº 5 do artigo 32º da Constituição, ao permitir a intervenção na instrução do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido.
O recurso de constitucionalidade não foi, porém, recebido com fundamento em extemporaneidade, como já se consignou: notificado do acórdão em 18 de Março (fls. 54-v.), o prazo terminou em 2 de Abril (nº 1 do artigo 75º da Lei nº 28/82) mas o requerimento só deu entrada a 9 desse mês, remetido por carta registada expedida a 8 (fls. 61 e 62).
Considera o recorrente que o referido prazo só se inicia a partir do momento em que a decisão que não admitiu o recurso se torna definitiva. Como o despacho só transitou 10 dias após a notificação que lhe foi feita, ou seja, em 28 de Março, apenas no dia 29 se iniciou o prazo de recurso de constitucionalidade que teve o seu termo a 8 de Abril (7, Domingo).
3. - Foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos do nº 2 do artigo 73º da Lei nº 28/82.
O magistrado competente pronunciou-se assim:
'Afigura-se que assiste razão ao reclamante no que se refere à tempestividade do recurso de constitucionalidade interposto, já que o respectivo prazo de interposição apenas se iniciou com a definitividade do despacho de rejeição do recurso ordinário, interposto para o Supremo (e consequente à preclusão da possível reclamação para o Presidente do STJ). Entendemos, porém, que a questão de constitucionalidade suscitada se configura como ‘manifestamente infundada’, o que tornaria admissível a rejeição do recurso no Tribunal ‘a quo’ , com esse específico fundamento, nos termos do artº 76º, nº
2 da Lei nº 28/82 – e cabendo no âmbito da presente reclamação a apreciação de qualquer obstáculo à admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional: não pode, na verdade, pretender transpor-se para as fases do inquérito e da instrução o entendimento acerca da matéria dos impedimentos do juiz que vigora quanto às fases do inquérito e da instrução, por um lado, e do julgamento, por outro, sendo inteiramente procedente a argumentação expendida no acórdão recorrido, a fls. 39/41 dos autos. A tese do reclamante – que, a ser procedente, levaria à necessidade de cindir o papel e as intervenções processuais do juiz do inquérito, da instrução e do julgamento – não tem na devida conta a especificidade funcional da fase do inquérito e a sua irremediável conexão com a instrução que se lhe irá seguir – e cuja função é obviamente inconfundível com a fase de julgamento e as respectivas exigências ao nível de actuação dos princípios do acusatório e da independência e imparcialidade do julgador. Neste termos, somos do parecer que a presente reclamação deverá ser rejeitada, embora por fundamento diverso do constante do despacho reclamado.'
4. - O relator houve, então, por bem lavrar despacho no pressuposto que mesmo a admitir-se a tempestividade do recurso – questão que se deixou em aberto – poderia configurar-se uma manifestamente infundada suscitação da questão de constitucionalidade.
Com efeito, escreveu-se, 'representa-se problemática a pretendida transposição para as fases de inquérito e da instrução do entendimento existente em matéria dos impedimentos do juiz quanto às referidas fases, por um lado, e à do julgamento, por outro (que o acórdão da Relação seguiu): uma coisa será ter em conta a especificidade funcional da fase de inquérito e sua conexão com a instrução que se lhe segue, outra será a respeitante às garantias de independência e de imparcialidade do julgador enquanto tal'.
Ordenou-se a audição do reclamante, em obediência aos ditames do contraditório, mas o reclamante, reafirmando que o objecto da reclamação' é tão só e apenas' a sua não concordância com a não admissão do recurso para o Tribunal Constitucional, reservou-se o direito de se pronunciar sobre a eventualidade de manifesta falta de fundamento na fase própria, ou seja, na das alegações (sic).
Cumpre, assim, decidir, corridos os vistos legais.
II
1. - O prazo para interpor recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade é de 10 dias, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 75º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, e conta-se, em princípio, a partir da notificação da decisão de que se pretende recorrer, ressalvando-se no nº 2 do preceito aqueles casos de não admissão do recurso ordinário por irrecorribilidade da decisão, contando-se então o início do prazo a partir do momento em que se torna definitiva a decisão de não admissão do recurso (cfr. os dois preceitos na redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro).
Os nºs. 2 e 4 do artigo 70º do mesmo diploma dispõem, por sua vez, relativamente à definição das decisões judiciais que podem ser objecto de recurso ao abrigo das alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º do mesmo diploma, aí vigorando a regra de aquelas serem apenas as que não são já susceptíveis de recurso ordinário.
A lei explicita, ainda, que se verifica a insusceptibilidade do recurso ordinário quando este já não for legalmente admissível ou se já foram esgotados todos os que no caso cabiam. Como se sublinhou em recente aresto deste Tribunal que neste ponto se segue de perto – o nº 149/02, inédito – contam-se como recursos ordinários as reclamações para os presidentes dos tribunais superiores dos despachos que não admitiram o recurso ou o retiveram, bem como as reclamações para a conferência dos despachos dos relatores, e, por outro lado, consideram-se esgotados todos os recursos ordinários sempre que haja renúncia ao recurso, tenha decorrido o prazo para o interpôr sem que essa interposição ocorresse e não haja seguimento de recurso ordinário por razões de ordem processual (cfr. aqueles preceitos do artigo 70º).
A esta luz, e com base na matéria de facto já exposta, o recurso mostra-se tempestivamente interposto, contrariamente ao que foi entendido, uma vez que o respectivo prazo apenas se iniciou, como observa o Ministério Público, 'com a definitividade do despacho de rejeição do recurso ordinário, interposto para o Supremo (e consequentemente à preclusão da possível reclamação para o Presidente do STJ)'.
2. - Posto isto, é de considerar que a subjacente problemática de constitucionalidade tem a ver com a interpretação dada ao artigo 40º do Código de Processo Penal no sentido de que o acórdão de 23 de Janeiro de 2002, do Tribunal da Relação de Lisboa, acolheu, permitindo – com alegada violação do nº 5 do artigo 32º da Constituição – a intervenção do juiz que participou no inquérito – aí adquirindo um determinado conhecimento dos factos e robustecendo um certo grau de convicção a respeito dos mesmos – na subsequente fase da instrução.
Ou seja, nesta leitura, não se teria feito distinção entre a especificidade funcional de actuação do magistrado na dinâmica do inquérito, onde formula um juízo indiciário ao presidir a actos jurisdicionais que nessa fase procedimental se exercem, e a presidência do mesmo magistrado a actos próprios da fase instrutória, defendendo-se que o juízo anteriormente alcançado é susceptível de pôr em causa a independência e a imparcialidade do juiz, cuja salvaguarda deve ser aprioristicamente garantida.
O arguido, perante esta 'sobreposição' funcional, recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso não admitido por despacho do Desembargador relator com fundamento no disposto na alínea a) do artigo 432º do Código de Processo Penal, tendo em conta que não se está perante despacho judicial de tribunal de 1ª instância.
3. - Entendeu-se, em despacho oportunamente lavrado, ser manifestamente infundada a questão de constitucionalidade suscitada.
Como então se escreveu, e se repete, uma coisa será ter em conta a especificidade funcional da fase de inquérito e a conexão natural que mantém com a fase de instrução, outra coisa é a que respeita ao julgamento, onde se podem colocar interrogações quanto à integridade das garantias de independência e de imparcialidade exigidas ao julgador se este, porventura, interveio na fase procedimental anterior a um título e com uma intensidade tais que ponham justificadamente em dúvida aquelas garantias, ou a confiança do arguido e do público na observância dessas mesmas garantias.
Por esse motivo, declarou-se inconstitucional, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 40º do Código de Processo Penal na parte em que permite a intervenção no julgamento do juiz que, na fase de inquérito, decretou e posteriormente manteve a prisão preventiva do arguido, por violação do nº 5 do artigo 32º da Constituição: cfr. o acórdão nº 186/98, publicado no Diário da República, I Série-A, de 20 de Março de 1998.
Mas já se entendeu não ser essa norma inconstitucional
(na versão dada pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro), se interpretada no sentido de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, decretou a prisão preventiva, não tendo ulteriormente qualquer outra intervenção no decurso do inquérito – caso, v.g., do acórdão nº 338/99, inédito.
Ou, por exemplo, quando não julgou inconstitucional a mesma norma (na versão do Decreto-Lei nº 58/98, de 25 de Agosto), quando interpretada no sentido de permitir a intervenção no julgamento do juiz que, findo o primeiro interrogatório judicial do arguido detido, determinou a respectiva libertação, mediante a adopção de medidas de coacção não privativas de liberdade, medidas que posteriormente manteve no momento em que recebeu a acusação e marcou dia para o julgamento – caso do acórdão nº 423/2000, publicado no Diário citado, II Série, de 20 de Novembro de 2000.
E vários outros arestos se poderiam citar, sustentando esta linha de entendimento, como é o caso do acórdão nº 29/99, publicado no mencionado jornal oficial, II Série-A, de 12 de Março de 1999.
Por maioria de razão, uma idêntica resposta merece o caso vertente onde a fase de julgamento não está, sequer, em causa e o recorrente parte da falsa premissa da autonomia funcional das fases de inquérito e de instrução.
4. - O caso sub judice integra-se, naturalmente, na previsão da última parte do nº 2 do artigo 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, que determina dever indeferir-se o requerimento de recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º do mesmo diploma quando for manifestamente infundado.
Foi cumprido o contraditório, ao dar-se conhecimento ao reclamante da eventualidade de se concluir nos termos expostos – despacho de 14 de Maio último – como já se registou.
5. - Nestes termos, indefere-se a reclamação, por se considerar o recurso manifestamente infundado.
Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 5 unidades de conta. Lisboa, 19 de Junho de 2002 Alberto Tavares da Costa Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Luís Nunes de Almeida